Conclusões apresentadas no documento reforçam pretensão de impedir que meninas e mulheres tenham acesso ao direito previsto em lei
Assim como começaram, os trâmites da CPI do Aborto na Assembleia do Estado de Santa Catarina (Alesc) terminaram com falta de transparência. A investigação, instaurada após a publicação da reportagem sobre a criança que teve seu direito de acesso ao aborto legal violado pela justiça catarinense, feita em parceria com o Intercept, aprovou o seu relatório final em 15 de dezembro, após dois meses de trabalho. O documento final, que é sigiloso, possui 120 páginas, no entanto, a versão pública, disponível no portal da casa legislativa, tem apenas seis páginas.
A CPI foi instaurada com a justificativa de apurar se “o aborto foi realizado legalmente ou se houve cometimento de crime”, depois se foi “realizado ilegalmente sob a falsa comunicação de crime”, se a conduta médica praticada foi “tecnicamente correta e legítima”, além de propor uma investigação dos veículos que divulgaram informações sobre o caso que tramita em segredo de justiça.
Desde o princípio, segundo a advogada Letícia Vella, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, a Comissão é ilegal e inconstitucional.
“No caso, não há qualquer fato a ser investigado: a menina teve acesso a um direito previsto na lei brasileira desde 1940; os profissionais envolvidos cumpriram com o seu dever legal de garantir o acesso a um aborto legal e todas as informações divulgadas no caso devem ser objeto de controle social, já que evidente a prática de diversas violações de direitos”, afirma.
O documentou apontou, entre outras questões, que “não houve qualquer informação aos envolvidos acerca do aborto, das consequências e como seria tal procedimento”; “fortes indícios que o procedimento médico (aborto) foi realizado de forma ilegal e sem a observação das normas técnicas do Ministério da Saúde”; assim como “fortes indícios que a reportagem feita pelo The Intercept Brasil/Catarinas em 20/06/2022 se deu por meio de publicização de informações sigilosa por um(a) advogado(a)”.
De acordo com a gerente de Comissões da Alesc, Luciana Garcia Wink, o relatório final deve ser encaminhado para a Defensoria Pública do Estado, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SC), o Tribunal de Justiça, Ministério Público Estadual e o Ministério Público Federal após o recesso parlamentar, em janeiro. Na Alesc, os procedimentos da CPI do Aborto finalizaram com o encaminhamento da versão pública para a Mesa Diretora.
A ausência de informações sobre a CPI fragiliza as conclusões apresentadas no relatório. Conforme apuramos anteriormente, o caráter sigiloso do processo de investigação levado à frente pelos parlamentares fere os princípios de transparência e publicidade que devem orientar a atuação dos deputados. Além disso, na Constituição, a CPI é descrita como um instrumento para que parlamentares exerçam a sua função de fiscalizar a administração pública, distinto ao que acompanhamos na versão catarinense.
“Ao longo de seu funcionamento a portas fechadas, sem justificativa cabível, o direito à informação da população brasileira também foi violado. Sequer foi dado conhecimento ao relatório final da Comissão, reforçando uma prática de falta de transparência sobre a atuação de agentes públicos que, lamentavelmente, se consolidou nos últimos anos no país”, critica o diretor da Repórteres Sem Fronteiras (RSF) para a América Latina, Artur Romeu.
Para o representante, a realização da CPI, tendo como um dos objetivos a investigação da atuação das jornalistas do Catarinas e do The Intercept Brasil, é mais um “triste e preocupante” episódio de agressão ao trabalho da imprensa e de violação do direito de acesso à informação no Brasil.
A defesa da família
Em nota enviada ao Catarinas, o advogado da família da menina, Wilson Knoner Campos, que assumiu a causa na fase posterior à emissão do relatório, contesta a conclusão de que a família estava alheia às decisões sobre o procedimento. O advogado aguarda acessar o relatório completo para entender como ocorreu a oitiva e o tratamento dado à mãe da criança e outros familiares, e se houve respeito aos seus direitos relacionados à não incriminação, já que diante da CPI são coautores do fato. “Os relatos preliminares a que se teve acesso sobre o depoimento indicam não ter havido falha no consentimento informado (da família em relação à realização do procedimento), mas que pode ter havido no depoimento a descrição de fato aberto e que então recebeu interpretação alinhada à cosmovisão dos integrantes da douta CPI”, pontuou.
O advogado destacou ainda a falta de isenção de membros da CPI para julgar o caso, o que desrespeita princípios constitucionais (art. 5º, XXXVII e LIII) que garantem um julgamento justo por órgãos independentes e imparciais, “o que parece não ter sido respeitado no caso, dada a visão e ideologias abertamente defendidas por membros da CPI quanto ao tema do aborto”.
Entre os pontos trazidos por Campos, há a possível usurpação de competência da assembleia legislativa em razão de o fato ter ocorrido em unidade hospitalar federal e por servidores federais, assim como a recomendação para a realização do procedimento ter sido feita pelo Ministério Público Federal. “Não se cogitou de desvio funcional e seria mesmo impossível a CPI fazê-lo, já que a competência para tal exame é do Conselho Superior e/ou do CNMP”, disse em relação à atuação do MPF.
Sobre a conclusão da CPI de que há uma “união de esforços envolvendo diversos profissionais, os quais, de forma organizada e com animus associativo, fomentam a prática do crime de aborto”, o advogado da família é categórico:
“O caso concreto referido pela CPI não parece ter se dado nesse contexto do objeto da investigação, pois aí se teria que presumir má-fé do Magistrado que autorizou o procedimento de interrupção, do membro do Ministério Público que se manifestou favorável no caso concreto, dos médicos e equipe de saúde que fizeram as avaliações e realizaram o procedimento, o consentimento dado pela genitora, e, por fim, ter-se-ia que desconsiderar a norma do art. 128, II, do CP, que exclui crime de aborto quando a gravidez é decorrente de crime de estupro”.
Leia a nota do advogado na íntegra aqui.
Versão pública do relatório foi apresentada em 15 de dezembro pela CPI. Imagem: Rodolfo Espínola/Agência AL
CPI nega direito ao aborto legal
Em nenhum momento, o relatório reconhece que o aborto é legalizado no país desde 1940, ou seja, não é crime e pode ser realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em três situações específicas: gravidez resultante de estupro, risco à vida da pessoa que gesta e gestação de fetos anencéfalos. Tampouco considera o artigo 217 do Código Penal, que tipifica o estupro de vulnerável como “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”.
“A lei é objetiva e inequívoca nesse ponto: desde 1940, o Código Penal prevê a possibilidade de realização do aborto em casos de estupro como um direito de todas as meninas, mulheres e pessoas que gestam no Brasil. O Código Penal também estabelece que o crime de estupro de vulnerável estará configurado em todas as vezes que houver relação sexual com uma pessoa com menos de 14 anos. A lei considera as dificuldades de discernimento e consentimento inerentes ao desenvolvimento de crianças e adolescentes. E justamente por isso, qualquer gestação de pessoa com menos de 14 anos é presumidamente decorrente de violência sexual. O direito de acessar o aborto legal nesses casos é inquestionável”, afirma a advogada Letícia Vella do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.
Portanto, no caso, não haveria qualquer “união de esforços” para a “prática do crime de aborto”, porque o procedimento realizado é previsto em lei. “As conclusões apresentadas no relatório final, em realidade, apenas reforçam a pretensão declarada pela CPI desde a sua instauração: impedir que outras meninas e mulheres tenham acesso a um direito de realizar um procedimento previsto em lei para a proteção de sua saúde”, afirma Letícia.
Organizações em defesa dos jornalistas apontam agressão ao trabalho da categoria
Na visão da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que se manifestou e cobrou responsabilizações ao longo dos meses de repercussão do caso, uma sequência de erros marcou a CPI do começo ao fim.
“O trabalho de deputados integrantes se concentrou na retaliação a quem divulgou a história, como se a população não tivesse o direito de ser informada. Também, numa afronta à Constituição, se buscou quebrar o sigilo de fonte. Além de tentar atropelar uma premissa constitucional, que assegura à imprensa o acesso a dados de interesse público que ficariam escondidos, a CPI desconsiderou que já está pacificado pelo STF que jornalistas não podem ser punidos por divulgar informações de processos que estão em segredo de Justiça”, declarou a jornalista Katia Brembatti, presidente da Abraji.
Em outubro, diversas organizações e redes da sociedade civil, acionaram a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) contra a CPI do Aborto, alertando para a tentativa de criminalizar as jornalistas responsáveis pela reportagem, assim como o risco que isso representa para a liberdade de imprensa. O texto destacava o caráter inconstitucional e persecutório do requerimento de abertura da investigação parlamentar. Com o fim da CPI, o Comitê para Proteção de Jornalistas, uma das organizações signatária do documento, reforçou o seu posicionamento a favor dos dois veículos de comunicação que “corajosamente reportaram sobre as tentativas de impedir uma sobrevivente de estupro de acessar o direito ao aborto legal”.
“A CPI instaurada pela Alesc foi uma manobra para intimidar a imprensa e ameaçar suas fontes. As autoridades públicas, do estado de Santa Catarina e autoridades federais, devem dar um basta a esta intimidação contra o Portal Catarinas e o The Intercept Brasil e garantir o respeito à liberdade de imprensa e ao sigilo da fonte, direitos garantidos na própria Constituição Federal”, afirma Renata Neder, representante do Comitê.
Em nota ao Catarinas, a presidente da Abraji comentou: “Esperamos ainda que este relatório, fruto de um processo opaco e enviesado, seja desconsiderado e, mais que isso, se apure o gasto de dinheiro público com essa comissão.” Já o diretor da RSF para a América Latina pediu que o Ministério Público e o Poder Judiciário garantam o restabelecimento do respeito à Constituição brasileira e à liberdade de imprensa, fundamental em qualquer democracia.
As assessorias do Tribunal de Justiça e do Ministério Público de Santa Catarina informaram que as instituições ainda não receberam o relatório e, portanto, não há base para manifestação. A reportagem também entrou em contato com as assessorias dos deputados Fabiano da Luz (PT), membro da comissão de inquérito, Ismael dos Santos (PSD), presidente, e Ana Campagnolo, relatora, porém não obteve retorno até a publicação da reportagem. A Defensoria Pública do Estado, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SC), e Ministério Público Federal tampouco responderam ao pedido de manifestação realizado por e-mail.
Equipe médica não pode ser criminalizada pelo procedimento
Ao contrário do exposto no documento, que sugere haver “fortes indícios de que o procedimento médico (aborto) foi realizado de forma ilegal e sem a observação das normas técnicas do Ministério da Saúde”, existem normas técnicas específicas para realizar o procedimento de aborto legal. Em entrevista ao Catarinas, o médico obstetra Olímpio Moraes, professor da Universidade de Pernambuco (UPE) e diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), hospital referência em aborto legal em Recife, esclareceu dúvidas sobre o caso, explicando os riscos de uma gravidez na infância, bem como o procedimento indicado em gestações acima de 22-24 semanas.
A integrante do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Letícia Vella, considera que os profissionais permitiram que a criança conseguisse ter acesso à interrupção da gestação em um caso previsto em lei, garantindo a preservação de sua vida e saúde. “São inegáveis os riscos de vida decorrentes de uma gestação precoce e não há idade gestacional para realização do aborto. Além disso, há tanto protocolos do Ministério da Saúde como diversos instrumentos técnicos e normativos nacionais e internacionais que amparam a legalidade do procedimento”. Sobre o relatório, a advogada conclui: “Qualquer compreensão que imponha limites a realização de um direito previsto em lei, como o acesso ao aborto, é ilegal”.