Quase lá: SC: Relatório final da CPI do aborto despreza direito à interrupção legal da gravidez

Conclusões apresentadas no documento reforçam pretensão de impedir que meninas e mulheres tenham acesso ao direito previsto em lei

 

catarinas portalPor Fernanda Pessoa

 
 

Assim como começaram, os trâmites da CPI do Aborto na Assembleia do Estado de Santa Catarina (Alesc) terminaram com falta de transparência. A investigação, instaurada após a publicação da reportagem sobre a criança que teve seu direito de acesso ao aborto legal violado pela justiça catarinense, feita em parceria com o Intercept, aprovou o seu relatório final em 15 de dezembro, após dois meses de trabalho. O documento final, que é sigiloso, possui 120 páginas, no entanto, a versão pública, disponível no portal da casa legislativa, tem apenas seis páginas.

A CPI foi instaurada com a justificativa de apurar se “o aborto foi realizado legalmente ou se houve cometimento de crime”, depois se foi “realizado ilegalmente sob a falsa comunicação de crime”, se a conduta médica praticada foi “tecnicamente correta e legítima”, além de propor uma investigação dos veículos que divulgaram informações sobre o caso que tramita em segredo de justiça. 

Desde o princípio, segundo a advogada Letícia Vella, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, a Comissão é ilegal e inconstitucional.

“No caso, não há qualquer fato a ser investigado: a menina teve acesso a um direito previsto na lei brasileira desde 1940; os profissionais envolvidos cumpriram com o seu dever legal de garantir o acesso a um aborto legal e todas as informações divulgadas no caso devem ser objeto de controle social, já que evidente a prática de diversas violações de direitos”, afirma. 

O documentou apontou, entre outras questões, que “não houve qualquer informação aos envolvidos acerca do aborto, das consequências e como seria tal procedimento”; “fortes indícios que o procedimento médico (aborto) foi realizado de forma ilegal e sem a observação das normas técnicas do Ministério da Saúde”; assim como “fortes indícios que a reportagem feita pelo The Intercept Brasil/Catarinas em 20/06/2022 se deu por meio de publicização de informações sigilosa por um(a) advogado(a)”. 

De acordo com a gerente de Comissões da Alesc, Luciana Garcia Wink, o relatório final deve ser encaminhado para a Defensoria Pública do Estado, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SC), o Tribunal de Justiça, Ministério Público Estadual e  o Ministério Público Federal após o recesso parlamentar, em janeiro. Na Alesc, os procedimentos da CPI do Aborto finalizaram com o encaminhamento da versão pública para a Mesa Diretora. 

A ausência de informações sobre a CPI fragiliza as conclusões apresentadas no relatório. Conforme apuramos anteriormente, o caráter sigiloso do processo de investigação levado à frente pelos parlamentares fere os princípios de transparência e publicidade que devem orientar a atuação dos deputados. Além disso, na Constituição, a CPI é descrita como um instrumento para que parlamentares exerçam a sua função de fiscalizar a administração pública, distinto ao que acompanhamos na versão catarinense. 

“Ao longo de seu funcionamento a portas fechadas, sem justificativa cabível, o direito à informação da população brasileira também foi violado. Sequer foi dado conhecimento ao relatório final da Comissão, reforçando uma prática de falta de transparência sobre a atuação de agentes públicos que, lamentavelmente, se consolidou nos últimos anos no país”, critica o diretor da Repórteres Sem Fronteiras (RSF) para a América Latina, Artur Romeu.  

Para o representante, a realização da CPI, tendo como um dos objetivos a investigação da atuação das jornalistas do Catarinas e do The Intercept Brasil, é mais um “triste e preocupante” episódio de agressão ao trabalho da imprensa e de violação do direito de acesso à informação no Brasil.

A defesa da família

Em nota enviada ao Catarinas, o advogado da família da menina, Wilson Knoner Campos, que assumiu a causa na fase posterior à emissão do relatório, contesta a conclusão de que a família estava alheia às decisões sobre o procedimento. O advogado aguarda acessar o relatório completo para entender como ocorreu a oitiva e o tratamento dado à mãe da criança e outros familiares, e se houve respeito aos seus direitos relacionados à não incriminação, já que diante da CPI são coautores do fato. “Os relatos preliminares a que se teve acesso sobre o depoimento indicam não ter havido falha no consentimento informado (da família em relação à realização do procedimento), mas que pode ter havido no depoimento a descrição de fato aberto e que então recebeu interpretação alinhada à cosmovisão dos integrantes da douta CPI”, pontuou.

O advogado destacou ainda a falta de isenção de membros da CPI para julgar o caso, o que desrespeita princípios constitucionais (art. 5º, XXXVII e LIII) que garantem um julgamento justo por órgãos independentes e imparciais, “o que parece não ter sido respeitado no caso, dada a visão e ideologias abertamente defendidas por membros da CPI quanto ao tema do aborto”. 

Entre os pontos trazidos por Campos, há a possível usurpação de competência da assembleia legislativa em razão de o fato ter ocorrido em unidade hospitalar federal e por servidores federais, assim como a recomendação para a realização do procedimento ter sido feita pelo Ministério Público Federal. “Não se cogitou de desvio funcional e seria mesmo impossível a CPI fazê-lo, já que a competência para tal exame é do Conselho Superior e/ou do CNMP”, disse em relação à atuação do MPF. 

Sobre a conclusão da CPI de que há uma “união de esforços envolvendo diversos profissionais, os quais, de forma organizada e com animus associativo, fomentam a prática do crime de aborto”, o advogado da família é categórico:

“O caso concreto referido pela CPI não parece ter se dado nesse contexto do objeto da investigação, pois aí se teria que presumir má-fé do Magistrado que autorizou o procedimento de interrupção, do membro do Ministério Público que se manifestou favorável no caso concreto, dos médicos e equipe de saúde que fizeram as avaliações e realizaram o procedimento, o consentimento dado pela genitora, e, por fim, ter-se-ia que desconsiderar a norma do art. 128, II, do CP, que exclui crime de aborto quando a gravidez é decorrente de crime de estupro”. 

Leia a nota do advogado na íntegra aqui.


Versão pública do relatório foi apresentada em 15 de dezembro pela CPI. Imagem: Rodolfo Espínola/Agência AL

CPI nega direito ao aborto legal

Em nenhum momento, o relatório reconhece que o aborto é legalizado no país desde 1940, ou seja, não é crime e pode ser realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em três situações específicas: gravidez resultante de estupro, risco à vida da pessoa que gesta e gestação de fetos anencéfalos. Tampouco considera o artigo 217 do Código Penal, que tipifica o estupro de vulnerável como “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”.

“A lei é objetiva e inequívoca nesse ponto: desde 1940, o Código Penal prevê a possibilidade de realização do aborto em casos de estupro como um direito de todas as meninas, mulheres e pessoas que gestam no Brasil. O Código Penal também estabelece que o crime de estupro de vulnerável estará configurado em todas as vezes que houver relação sexual com uma pessoa com menos de 14 anos. A lei considera as dificuldades de discernimento e consentimento inerentes ao desenvolvimento de crianças e adolescentes. E justamente por isso, qualquer gestação de pessoa com menos de 14 anos é presumidamente decorrente de violência sexual. O direito de acessar o aborto legal nesses casos é inquestionável”, afirma a advogada Letícia Vella do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.

Portanto, no caso, não haveria qualquer “união de esforços” para a “prática do crime de aborto”, porque o procedimento realizado é previsto em lei. “As conclusões apresentadas no relatório final, em realidade, apenas reforçam a pretensão declarada pela CPI desde a sua instauração: impedir que outras meninas e mulheres tenham acesso a um direito de realizar um procedimento previsto em lei para a proteção de sua saúde”, afirma Letícia.  

Organizações em defesa dos jornalistas apontam agressão ao trabalho da categoria 

Na visão da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que se manifestou e cobrou responsabilizações ao longo dos meses de repercussão do caso, uma sequência de erros marcou a CPI do começo ao fim.  

“O trabalho de deputados integrantes se concentrou na retaliação a quem divulgou a história, como se a população não tivesse o direito de ser informada. Também, numa afronta à Constituição, se buscou quebrar o sigilo de fonte. Além de tentar atropelar uma premissa constitucional, que assegura à imprensa o acesso a dados de interesse público que ficariam escondidos, a CPI desconsiderou que já está pacificado pelo STF que jornalistas não podem ser punidos por divulgar informações de processos que estão em segredo de Justiça”, declarou a jornalista Katia Brembatti, presidente da Abraji. 

Em outubro, diversas organizações e redes da sociedade civil, acionaram a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) contra a CPI do Aborto, alertando para a tentativa de criminalizar as jornalistas responsáveis pela reportagem, assim como o risco que isso representa para a liberdade de imprensa. O texto destacava o caráter inconstitucional e persecutório do requerimento de abertura da investigação parlamentar. Com o fim da CPI, o Comitê para Proteção de Jornalistas, uma das organizações signatária do documento, reforçou o seu posicionamento a favor dos dois veículos de comunicação que “corajosamente reportaram sobre as tentativas de impedir uma sobrevivente de estupro de acessar o direito ao aborto legal”. 

“A CPI instaurada pela Alesc foi uma manobra para intimidar a imprensa e ameaçar suas fontes. As autoridades públicas, do estado de Santa Catarina e autoridades federais, devem dar um basta a esta intimidação contra o Portal Catarinas e o The Intercept Brasil e garantir o respeito à liberdade de imprensa e ao sigilo da fonte, direitos garantidos na própria Constituição Federal”, afirma Renata Neder, representante do Comitê. 

Em nota ao Catarinas, a presidente da Abraji comentou: “Esperamos ainda que este relatório, fruto de um processo opaco e enviesado, seja desconsiderado e, mais que isso, se apure o gasto de dinheiro público com essa comissão.” Já o diretor da RSF para a América Latina pediu que o Ministério Público e o Poder Judiciário garantam o restabelecimento do respeito à Constituição brasileira e à liberdade de imprensa, fundamental em qualquer democracia. 

As assessorias do Tribunal de Justiça e do Ministério Público de Santa Catarina informaram que as instituições ainda não receberam o relatório e, portanto, não há base para manifestação. A reportagem também entrou em contato com as assessorias dos deputados Fabiano da Luz (PT), membro da comissão de inquérito, Ismael dos Santos (PSD), presidente, e Ana Campagnolo, relatora, porém não obteve retorno até a publicação da reportagem. A Defensoria Pública do Estado, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SC), e Ministério Público Federal tampouco responderam ao pedido de manifestação realizado por e-mail.

Equipe médica não pode ser criminalizada pelo procedimento

Ao contrário do exposto no documento, que sugere haver “fortes indícios de que o procedimento médico (aborto) foi realizado de forma ilegal e sem a observação das normas técnicas do Ministério da Saúde”, existem normas técnicas específicas para realizar o procedimento de aborto legal. Em entrevista ao Catarinas, o médico obstetra Olímpio Moraes, professor da Universidade de Pernambuco (UPE) e diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), hospital referência em aborto legal em Recife, esclareceu dúvidas sobre o caso, explicando os riscos de uma gravidez na infância, bem como o procedimento indicado em gestações acima de 22-24 semanas.

A integrante do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Letícia Vella, considera que os profissionais permitiram que a criança conseguisse ter acesso à interrupção da gestação em um caso previsto em lei, garantindo a preservação de sua vida e saúde. “São inegáveis os riscos de vida decorrentes de uma gestação precoce e não há idade gestacional para realização do aborto. Além disso, há tanto protocolos do Ministério da Saúde como diversos instrumentos técnicos e normativos nacionais e internacionais que amparam a legalidade do procedimento”. Sobre o relatório, a advogada conclui: “Qualquer compreensão que imponha limites a realização de um direito previsto em lei, como o acesso ao aborto, é ilegal”.

 
Fernanda Pessoa

Jornalista metida a produtora audiovisual. Ativista em movimentos antirracistas e pela descriminalização do aborto. Louca por gatos, dança afro-brasileira e tecido acrobático.

 

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