Quase lá: Criança não é mãe, estuprador não é pai e mulher não é chocadeira


O Estatuto do Nascituro viola a Constituição e pode levar um milhão de mulheres à prisão.

nem presa nem morta


Há 15 anos luta-se para evitar a aprovação do Estatuto do Nascituro (PL 478/2007), que concede a embriões (material biológico da união dos gametas feminino e masculino) e fetos (embriões em gestação) a mesma proteção jurídica de crianças e adolescentes, anulando os direitos fundamentais de todas as mulheres e pessoas que gestam.

Na prática, ao garantir “a integridade física” do nascituro com “plena proteção jurídica” desde a concepção, o projeto impediria toda interrupção da gravidez, mesmo as autorizadas por lei, como em casos de risco de morte da gestante. Mesmo quando o feto não tem chance de vida fora do útero, as gestações deverão ser continuadas – o que já foi reconhecido como tortura pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 54.

Abortos em caso de estupro – outra hipótese prevista na lei – também seriam negados pelo Estatuto do Nascituro, que pode ser chamado de Estatuto do Estuprador, já que obrigaria vítimas de estupro a manterem contato com seus estupradores, que ficariam registrados como pai de seus filhos e teriam direito à “convivência familiar”.

Por fim, milhares de famílias que dependem de reprodução assistida para ter filhos teriam seu sonho vetado em lei. Isso porque o Estatuto do Nascituro também impede o descarte de embriões in vitro não implantados, algo que naturalmente ocorre nesta tecnologia. O mesmo valeria para a utilização de células-tronco embrionárias humanas em pesquisas e terapias.

De saída, o Estatuto do Nascituro vai de encontro à decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 3510, em que se estabeleceu que “o embrião pré-implantado é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere a Constituição”. Da mesma forma, o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (OEA) é que “não se pode conferir ao embrião a mesma proteção atribuída aos nascidos vivos”.

Se de fato estão preocupados com a proteção legal de embriões e fetos, os apoiadores do Estatuto do Nascituro devem se ater ao Código Civil brasileiro, que já preserva a expectativa de direitos dos fetos, mas também é claro ao determinar que o direito à vida e à personalidade se iniciam com o nascimento. Portanto, não se faz necessária uma nova norma neste sentido.

Apesar de violar a Constituição, confrontar as leis vigentes e ir de encontro a diversos tratados internacionais de direitos humanos, das mulheres, e de crianças e adolescentes, o Estatuto do Nascituro voltou à pauta da Comissão dos Direitos das Mulheres da Câmara dos Deputados no apagar das luzes desta legislatura. A tramitação apressada do projeto, de forma impositiva e com agendamentos de última hora, nesse contexto de um fim de ano conturbado, tem impedido o debate qualificado, excluindo as vozes daquelas que serão mais afetadas por sua eventual aprovação. A relatoria está com o deputado Emanuel Pinheiro Neto (MDB - MT).

Estatuto não protege a vida de gestantes

Apoiadores do Estatuto do Nascituro defendem que o projeto “protege a vida” – argumento que não se sustenta de qualquer perspectiva. Diversos estudos mundiais comprovam que países que proibiram o aborto não diminuíram a prática e ainda tiveram um aumento no número de procedimentos inseguros e clandestinos, colocando a saúde e a vida das gestantes em perigo. A pesquisa “Aborto no Mundo 2017: Progresso e Acesso Desigual” mostra que o caminho para proteger a vida está na mão contrária: em países em que o aborto foi legalizado a mortalidade materna e o número de abortos caíram.

No Brasil, seguimos no caminho errado. Apesar de o Brasil ter assumido a responsabilidade de chegar a uma taxa de no máximo 30 mortes para cada 100.000 nascidos vivos no ano de 2030, a razão de morte materna subiu nos últimos anos, e em 2021 esse número ficou em 107/100.000.

Segundo o estudo 20 anos de Pesquisa sobre Aborto no Brasil, do Ministério da Saúde, o aborto já é a quinta causa mais comum de morte materna no Brasil – sendo as mulheres negras as principais vítimas. Estima-se – porque a criminalização impede que se tenha a dimensão exata do problema - que entre 500 mil e um milhão de mulheres induzam o aborto a cada ano, sendo que 250 mil acabam hospitalizadas por terem passado por procedimentos inseguros. Queremos ter um milhão de mulheres presas a cada ano no Brasil?

Não será proibindo o acesso ao aborto legal e seguro que salvaremos mais vidas. Pelo contrário. “A existência de leis muito restritivas, que proíbem o aborto mesmo em casos de incesto, estupro, deficiência fetal ou quando a vida ou a saúde da mãe está em risco, violam o direito da mulher de não ser submetida a tortura ou maus-tratos”, como destaca relatório da Convenção Internacional contra a Tortura e outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes do qual o Brasil é signatário.

Também devemos ressaltar que a morte materna afeta crianças e adolescentes – muitas delas vítimas de violência sexual. No Brasil, mais de quatro meninas de menos de 13 anos são estupradas por hora, de acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. Obrigadas a levar a gestação adiante, essas meninas são expostas a diversos riscos de saúde, como anemia, eclâmpsia, e depressão pós-parto.

Na contramão do direito nacional e internacional

Obrigar uma criança a levar adiante uma gestação, sobretudo fruto de uma violência sexual, fere o artigo 227 da Constituição Federal, que coloca como dever da sociedade manter os jovens “a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Além disso, garantir em lei que estupradores tenham convívio com suas vítimas, como garante o Estatuto do Nascituro, é uma crueldade da qual o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 3º impede por se enquadrar em “tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório”.

Ao equiparar a vida de quem gesta com o embrião ou feto gestado, o Estatuto do Nascituro ignora todas as pessoas capazes de gestar como sujeitos de direitos históricos e políticos e incorre em uma assimetria jurídica ao reduzir quem gesta a apenas um “meio do vir a ser do embrião”, violando explicitamente a dignidade da pessoa humana, segundo a qual nenhuma pessoa pode ser meio, mas sempre fim.

Também viola a igualdade de gênero prevista na Constituição brasileira ao reforçar barreiras estruturais que afetam desproporcionalmente as mulheres e meninas em situação de vulnerabilidade.

O Estatuto do Nascituro colocaria o Brasil na contramão do direito internacional, que estabelece a obrigação dos Estados em prevenir, punir e erradicar todas as formas de discriminação e violência contra as mulheres. A Recomendação Geral n. 35 (2017) da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw), da qual o Brasil é signatário e se obriga a cumprir, estabelece que impedir o acesso a serviços de aborto legal, criminalizar o aborto, ou promover a gestação forçada são formas de violência de gênero contra meninas e mulheres.

Pela rejeição do Estatuto do Nascituro

Diante de tantas evidências científicas comprovadas e garantias jurídicas, fica claro que o objetivo do Estatuto do Nascituro não é proteger a vida, mas sim controlar a sexualidade e a reprodução das mulheres e demais pessoas que gestam, impedindo seu direito constitucional à saúde e à dignidade, violando seu direito fundamental de
autonomia sobre os próprios corpos e expondo-as a tortura física e psicológica, quando não à morte.

Criança alguma deveria ser obrigada a ser mãe. Gravidez forçada é tortura. E o toque de crueldade deste projeto é retroceder nos direitos das pessoas gestantes e dar garantias a estupradores.

Por fim, a redação do Estatuto do Nascituro restringiria até mesmo liberdade de pensamento e de expressão, consagrada no art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ao criminalizar qualquer manifestação pública sobre o aborto como se fosse apologia ao crime - o que configura censura prévia à discussão de ideias, como a de ampliação dos permissivos legais para o aborto.

Por todos os motivos expostos, defendemos a rejeição do Estatuto do Nascituro.

Frente Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto
Campanha Nem Presa Nem Morta

nem presa nem morta

19/12/2022

 

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