Quase lá: A carne mais barata

Ana Cláudia Jaquetto Pereira
Doutoranda em Ciência Política pelo IESP/UERJ

Dionísia era uma moça negra, a mais escura de cinco filhas. Havia puxado mais à mãe e o pai era branco. O pai dizia com desprezo que “essa neguinha” não valia nada e sempre a ofendia. Na casa simples onde moravam, ele encarregava a menina Dionísia do trabalho doméstico mais pesado. Estudo, descanso e lazer eram reservados às outras irmãs, mais claras1. A história de Dionísia nos mostra como gênero e raça se misturam na produção da desigualdade e da violência que atinge as mulheres negras.

O movimento de mulheres negras já denunciou que o estereótipo de mulher doce, delicada e frágil mantido pelo patriarcado só é aplicado às brancas. As mulheres negras são vistas como sujas, brutas, agressivas, promíscuas, feias, seres primitivos que são indignas, a ponto de ter seu trabalho e sua sexualidade exploradas.

No racismo patriarcal, opera a seguinte lógica: as que são vistas como piores seres são relegadas ao que é visto como o pior trabalho. De um lado, qualquer trabalho realizado por uma maioria negra é desvalorizado. De outro, não há espaço para as negras em outras profissões.

Desta forma, se é verdade que o trabalho doméstico tem sido atribuído às mulheres, ele tem sido realizado mais por algumas mulheres do que por outras, de acordo com condições de raça e classe social.

No caso do trabalho doméstico, há grande resistência em entender que ele é uma atividade profissional que, como qualquer outra, requer inteligência e deve ser remunerado e associado a direitos. Nas rodinhas de classe média, ouvimos as reclamações sobre a “burrice” das empregadas domésticas e sobre a conquista de direitos formais pelas profissionais. Ouvimos ofensas racistas sobre médicas, professoras e advogadas negras que teriam “cara de empregada doméstica” ou cabelo “desalinhado”.

A mesma lógica está presente na violência urbana e doméstica. Dizem que a “mulata é a tal”, mas ela só aparece como alguém que dá satisfação sexual e não como a pessoa que recebe. Se o casamento tradicional tem sido um instrumento de opressão da maioria das brancas, muitos homens e mulheres veem as negras como indignas para eles ou acham que elas devem aceitar todo tipo de violência dos companheiros. Os corpos das negras são explorados como objetos sexuais, seja nas relações afetivas, na mídia ou ao circular no espaço urbano.

Não é raro que seus companheiros, familiares e patroas/patrões, além de empregar violência física, questionem sua higiene, inteligência, honestidade e comportamento sexual em falas claramente racistas.

Ao pensar a violência contra mulheres dentro de uma perspectiva do racismo patriarcal, vemos como é a violência cometida por toda a sociedade que até hoje mantém as mulheres negras nas profissões mais precarizadas, sujeitas à discriminação no mundo do trabalho remunerado e não remunerado e no sistema educacional. Compreendemos porque a violência racista em âmbito doméstico, familiar e urbano também deve ser vista como violência contra as mulheres. Concluímos que, para mulheres como Dionísia, não é o fato de ser mulher, e sim o fato de ser mulher e negra que determina o tipo de violência que o pai comete contra ela.

Por fim, passamos a ver a riqueza das estratégias elaboradas pelas negras em resposta ao racismo. Reconhecemos que as mulheres negras não são somente vítimas da sociedade desigual, mas também produtoras pequenos atos de rebeldia e resistência, iniciativas de cuidado e preservação da comunidade, produção científica, cultural e artística e atuação em movimentos sociais. Que, ao invés de aceitarmos a opressão, construímos uma grande teia de resistência que expressa nossa lutas por direitos e justiça para tod@s.

(1) A história de Dionísia é uma versão adaptada de um relato analisado em Pereira, Bruna Cristina Jaquetto. 2013. “Tramas e dramas de gênero e de cor : a violência doméstica e familiar contra mulheres negras.” Pp. 131 in Departamento de Sociologia. Brasília: Universidade de Brasília.


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