Quase lá: Racismo patriarcal: muito além do conceito

Em entrevista com Cleusa Aparecida da Silva, coordenadora da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), ativista feminista e integrante da Casa Laudelina de Campos Mello - Organização da Mulher Negra, instituída em 1989, em Campinas - podemos compreender mais a fundo o que é e como opera o racismo patriarcal nas dimensões sociais, culturais e políticas.

Por Débora Vaz

Fêmea: O que é racismo patriarcal (RP)? Como se define este conceito?

Cleusa Aparecida da Silva: A formulação do conceito racismo patriarcal busca traduzir a vivência e a experiência histórica da exclusão centrada no sexismo e no racismo vigentes desde o sistema colonial escravista. O conceito busca qualificar e ampliar conhecimento sobre a singularidade de ser mulher, ser negra, ser trabalhadora e pobre no Brasil, isto é, de vivenciar no cotidiano vários eixos de subordinação, que vulnerabilizam sua existência, cujos resultados são as desvantagens com impacto estrutural para as mulheres negras, na vida e no mundo do trabalho. No mundo do trabalho, o conceito racismo patriarcal dialoga com a divisão sexual e racial, pois é neste mundo que as mulheres negras vivenciam as maiores desvantagens e sofrem múltiplas formas de violações de direitos e violências oriundas das doutrinas ideológicas do sexismo, do racismo e do capitalismo, pois ocupam as funções mais desvalorizadas e menos remuneradas.

Fêmea: Quais as raízes históricas do racismo patriarcal?

CAS: Podemos afirmar que a luta das mulheres negras no Brasil é a mais longa do território brasileiro, na perspectiva da transformação social, posto que se inicia desde que a primeira mulher negra pisou neste solo. Pode-se verificar que nesta trajetória de luta as mulheres escravizadas reuniam um conjunto de informações no cotidiano do trabalho, e podemos afirmar também que o elemento fundamental desta coleta é o que denominamos de “terceirização do corpo feminino” no Brasil. Se inicia quando os colonizadores alugavam o corpo das mulheres negras para outros engenhos, vilarejos e povoados para prestar serviços como: de mucama, ama de leite, quituteira, rezadeira, parteira, raizeira, benzedeira e ou mercadejar alimentos, entre outras atividades “produtivas” da época.

Fêmea: Quais são os cenários em que ele se torna mais visível atualmente?

CAS: O racismo e o sexismo como sistemas de gestão sistêmica (se organizas, se desenvolves, assim como operas por meio de estruturas: social, econômica, cultural, política, e ambiental) definem o lugar de pessoas, grupos e povos, de acordo com a cor de sua pele, com o tipo de cabelo, com a deficiência, com a identidade de gênero, com a geração, com a situação socioeconômica, de escolaridade, de moradia (campo - cidade), entre outros atributos.

É neste cenário de desapropriação que o racismo patriarcal se expõe, estabelecendo os eixos de subordinação racial e sexual no acesso desigual às riquezas produzidas, resultantes de trabalho coletivo, assim como a apropriação desigual da renda e da riqueza, a partir dos privilégios destinados à população branca com ênfase no masculino - homem branco heterossexual que está no topo da pirâmide de desenvolvimento humano no Brasil e no mundo.

Fêmea: Quem é prejudicado e quem se beneficia com o racismo patriarcal?

CAS: Para além de conquistas dos marcos institucionais e políticos o feminismo negro, pode-se dizer em alto e bom tom - “nós mulheres negras somos as mesmas e vivemos como nossas mães e avós”. Neste universo o prejuízo é de toda sociedade brasileira. Quem se beneficia é todo sistema financeiro e o modelo de Estado patrimonialista que protege a hegemonia branca.

Fêmea: Como o RP influencia decisões tomadas no Congresso Nacional, e consequentemente, a vida da cidadã/cidadão?

CAS: As consequências desta influência prejudicam o desenvolvimento das políticas públicas, nas estruturas de governo e nas formas de organização do Estado brasileiro, que vive a reboque das disputas políticas pelo poder. É necessário potencializar uma série de instrumentos de mobilização e pressionar via incidência política com todas as forças dos movimentos sociais capazes de mover os processos em favor dos interesses de todas as minorias. Somente a ofensiva popular em continuidade pode barrar a perpetuação de privilégios e hegemonias.

Fêmea: Quais as relações entre a violência contra mulher e o racismo patriarcal?

CAS: O racismo patriarcal se evidencia nas relações - interações - e subordinações, e permite avaliar as desigualdades, as diferenças e iniquidades entre as mulheres negras e brancas; e pode ajudar a visibilizar as potencialidades, as vantagens, as capacidades que cada mulher vítima de violência possui. E a partir desta compreensão é preciso elaborar soluções singulares, individualizadas e transversais para incidir no repertório da violência e suas múltiplas facetas. Para exemplificar, podemos direcionar o foco na gestão de um conjunto de ações voltadas para mulheres negras e jovens que são as maiores vítimas de violências como: agressões físicas, sexuais, psicológicas; homicídios, tráfico sexual, exploração do trabalho, trabalho escravo; e também a força e violência do racismo, do sexismo se entrelaçam nas teias das discriminações cotidianas que dificultam o acesso a bens e serviços.

O racismo patriarcal se evidencia nas relações - interações - e subordinações e permite avaliar as desigualdades, as diferenças, e iniquidades entre as mulheres negras e brancas, e pode ajudar a visibilizar as potencialidades, as vantagens, as capacidades que cada mulher vítima de violência, possui. E a partir desta compreensão é preciso elaborar soluções singulares, individualizadas e transversais para incidir no repertório da violência e suas múltiplas facetas. Para exemplificar, podemos direcionar o foco na gestão de um conjunto de ações voltadas para mulheres negras e jovens que são as maiores vítimas de violências como: agressões físicas, sexuais, psicológicas; homicídios, tráfico sexual, exploração do trabalho, trabalho escravo; e também a força e violência do racismo, do sexismo se entrelaçam nas teias das discriminações cotidianas que dificultam o acesso a bens e serviços.

Fêmea: Onde o RP se encaixa no processo de (não) implantação e (não) efetivação da Lei Maria da Penha?

CAS: Sabemos que a violência de gênero afeta todas as mulheres, independente de situação socioeconômica, de escolaridade, de raças/cores; porém, ativistas do feminismo negro responsabilizam o racismo patriarcal e a falta de políticas públicas voltadas para trabalho descente, saúde integral, moradia/habitação, vivência da seguridade plena e a educação. Para efetiva implementação e eficácia desta política pública, a gestão da Lei Maria da Penha deve levar em consideração a transversalidade de gênero, raça- etnia, orientação sexual, de geração e deficiência, isto é, a singularidade de cada pessoa. Induzindo, assim, transformações efetivas de forma combinada com judiciário, mídia e sociedade um conjunto de ações, projetos, programas e políticas permanentes de cunho socioeducativo para a redução das iniquidades e das discriminações institucionais.

Fêmea: Qual o balanço você faz sobre a PEC 66/2012, conhecida como PEC das domésticas?

CAS: Tenho a mania de falar que a PEC 66/12 é um exemplo clássico de racismo institucional e que é uma vertente do racismo patriarcal, posto que os ministérios de maior prestígio político participaram do Grupo Multidisciplinar responsável pela elaboração do texto, sendo eles: Ministério do Trabalho e Emprego, da Previdência Social, da Fazenda, do Planejamento, Orçamento e Gestão e a Casa Civil. A participação da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), a Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio e Serviços (CONTRACS) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) foram ignorados e invisibilizados antes, durante e depois da aprovação da PEC 66/12, sendo excluídos das grandes decisões. Visibilizamos as ações camaleônicas do racismo patriarcal quando ouvimos de representantes do governo, justificativas para as incoerências do texto da PEC 66/12 que colocam as trabalhadoras domésticas como trabalho de segunda categoria, argumentando com ênfase excessiva ao aumento dos encargos sociais e trabalhistas para o empregador, em detrimento da luta de 6,8 milhões de mulheres cuja organização enquanto classe iniciou-se em 1936.


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