Myllena Calasans
Advogada e assessora técnica do CFEMEA para a área de violência e direitos humanos
Em agosto de 2006, quando a Lei Maria da Penha foi aprovada, o CFEMEA e todo o movimento de mulheres comemoraram o que chamamos de uma "vitória" na luta pelo fim da violência contra as mulheres. Agora que a lei completa dois anos de existência foi reafirmado que a Lei representou uma conquista com impacto social e político para a sociedade brasileira.
A violência doméstica não escolhe classe, raça, etnia, orientação sexual, região e idade das mulheres, mas seus impactos as atingem de forma diferenciada e podem requerer ações específicas. Tal característica, aliada à divulgação da Lei e ação de monitoramento desenvolvida pelo poder público e pelos movimentos de mulheres, proporcionam novos desafios para que a Lei Maria da Penha venha atender as mulheres dos vários segmentos que compõem nossa sociedade. Só para termos uma idéia, há vários segmentos que demandam atenção específica: mulheres rurais; mulheres ribeirinhas que vivem em regiões onde não há um só serviço; mulheres indígenas, sem que a lei venha a colidir com a autonomia dos povos indígenas, garantida na Constituição Federal de 1988; aquelas que moram em territórios em contexto de violência urbana aguda e de tráfico de drogas; mulheres que não dispõem de todos os serviços ou são revitimizadas com o atendimento desumanizado que lhes foi prestado, a negação das medidas protetivas de urgência previstas na Lei e a resistência de juízes em enxergar a realidade de que 23% das mulheres brasileiras são vítimas de violência, negando-lhes o acesso à justiça preconizado na Lei.
Um antigo e renovado desafio é a Lei ser incluída no planejamento governamental como prioridade, e ter assegurado mais recursos no orçamento público, da União, Distrito Federal, Estados e Municípios, com gasto total do que foi alocado.
Desde sua aprovação, a Lei foi acompanhada do monitoramento constante da execução do Programa 0156 - Prevenção e Combate à Violência Contra a Mulher, coordenado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e considerado até então o principal programa para dar concretude a Lei; da exigência do não-contingenciamento dos poucos recursos alocados e da inclusão no anexo de metas e prioridades nas Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2007 e 2008; da reivindicação de mais recursos no Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) para o ano de 2007, tendo em vista que o PLOA 2007 enviado pelo Executivo ao Legislativo em 31 de agosto de 2006, logo após a promulgação da Lei, previu 32% a menos de recursos do que o autorizado em 2006.
Além disso, foi proposta a implementação da Lei como ação prioritária nas Conferências Estaduais e Nacional de Políticas para as Mulheres, bem como que tivessem ações específicas - para que os próximos PLOAs reservem recursos para as ações sugeridas pelo movimento - em diversos programas do Plano Plurianual (PPA 2008-2011) com recursos suficientes, metas físicas realísticas e indicadores capazes de auferirem resultados.
Embora o Congresso Nacional tenha aprovado o não contingenciamento dos recursos do Programa 0156 no Projeto da LDO para 2007 (primeiro ano de vigência da Lei) e para a LDO 2009 (em plena comemoração do segundo aniversário), ambas foram vetadas pelo Presidente da República, sob o argumento de que contraria o interesse público. Na verdade é o veto que contraria o interesse público.
A análise da dotação e execução deste Programa demonstra que apesar de ter havido um aumento na dotação orçamentária nos anos do Governo Lula, o mesmo desempenho não ocorre com sua execução. No período de 2003 a 2007, do total de R$ 79,7 milhões autorizados, R$ 34,9 milhões (44%) deixaram de ser gastos (considerando os valores liquidados) devido ao contingenciamento. Só em 2007 foram retidos R$ 6 milhões nos cofres públicos. Em 2008, do total de R$ 28,8 milhões foram liquidados até o momento apenas R$ 9,5 milhões (33%), apesar de o programa estar entre as prioridades na LDO de 2008.
Tudo isso compromete o desafio de atingir a meta de reaparelhar, criar e apoiar os 764 serviços - um desafio que depende dos convênios firmados entre União, Estados e Municípios.
Diante desses desafios, resta a dúvida se o R$1 bilhão da União previstos no PPA 2008-2011 será suficiente para atender o estabelecido na Lei Maria da Penha e se, o governo federal conseguirá cumprir as metas estabelecidas no PPA 2008-2011 para implementação da Lei em todo território nacional. Ou seja, os recursos no valor de um bilhão correm sérios riscos de ficarem somente no papel. Para mudar isso, um passo importante seria garantir na LDO o não-contingenciamento de recursos dos Programas, e exista articulação constante entre os Ministérios e a SPM no intuito de construírem políticas que combatam definitivamente as desigualdades de gênero.