Quase lá: Dos labirintos da democracia na América Latina

Cecília Olea Mauleón
Feminista nascida no Peru e integrante da Articulación Feminista Marcosur. Atualmente, trabalha no Programa de Direitos Humanos das Mulheres, do Centro da Mulher Peruana Flora Tristan

Na América Latina, a nova onda democrática revela-se em vários matizes. Da postura anti-imperialista às concessões feitas à hierarquia da Igreja Católica, há frestas por onde se esvaem conteúdos fundamentais à radicalidade democrática. O artigo a seguir foi elaborado pela feminista peruana Cecília Olea, e serviu de base para a sua exposição no Fórum Social Mundial Policêntrico, realizado em Caracas, em janeiro último. Sua análise refere-se à Venezuela de Chavez, à Bolívia de Evo Morales, ao Chile de Michele Bachelet e ao Uruguai de Tabaré Vasquez. E, como @ leitor@ poderá constatar, guarda muita coerência a realidade política brasileira.

Refletir sobre a crise e os limites da onda democrática na América Latina é uma tarefa grande e complexa, sedutora e estimulante. Nessas linhas, lançarei algumas idéias acerca dos regimes políticos e as agrupações (para não dizer partidos políticos) que estão assumindo alguns dos governos nos países da nossa região. Enfatizarei o exercício da cidadania, a partir da relação entre sexualidade e poder.

O novo signo de alguns governos latino-americanos

Nas duas últimas décadas, na maioria dos países da América Latina, sucederam-se regimes eleitos mediante escrutínio universal. A alternância dos governantes em sucessivas eleições não esteve isenta de debilidades, andou acompanhada de processos eleitorais fraudulentos (como o de Fujimori em 1993, 1995 e 2000); de autogolpes, novamente como o do Peru; de mudança de presidentes antes do cumprimento de seus mandatos, como na Argentina, no Equador e na Bolívia. Ao lado dessa onda democrática dos descumprimentos, as fraturas, as tensões, os limites e as negações constituíram a outra face da moeda das promessas da democracia.

O cumprimento dessas promessas esteve relacionado ao chamado processo de reestruturação econômica. Leia-se aplicação do modelo neoliberal, o que trouxe, como conseqüência, a dilatação da fenda que separa os que mais têm dos que menos têm.

A média de desigualdade no mundo, na década de 1990, foi de 0,381. Na América Latina de 0,576. A reforma econômica - aplicação do modelo neoliberal -, medida entre 0 e 1, passou de 0,58 nos anos 1980 para 0,83 nos anos 2000. Em 1990, os 10% da população latino-americana com rendimentos mais elevados tinham 25,4 vezes a renda dos 10% da população com menos rendimentos. No ano 2002, a diferença já havia crescido substantivamente. Os 10% da população com renda mais elevada tinham 40 vezes a renda dos 10% da população com menores rendimentos.

As duas últimas décadas não foram somente de eleições débeis e de aumento da pobreza. A década dos 1990 também significou o reconhecimento de normas legais que estabeleceram instrumentos para a defesa frente à violência contra as mulheres; a adoção de medidas de ação positiva para garantir a presença das mulheres nos processos eleitorais; e a declaração, por parte de alguns Estados, de seu interesse em ter políticas de gênero efetivadas pela conformação de mecanismos de políticas chamados institutos, secretarias, ministérios ou vice-ministérios.

Escutar o presidente venezuelano dizer "Sr. Bush, você não pode nos impor condições unilaterais". Ver Evo Morales, o defensor da folha de coca, prestar juramento como Presidente Constitucional da Bolívia. A assistir à eleição como presidenta da República de uma mulher agnóstica, duas vezes divorciada (quando no Chile não havia divórcio), além de ter sido presa e torturada por Pinochet. Evidentemente, tudo isso nos enche de alegria. Porém, a força dessa alegria se encontra com a força da preocupação e do desencanto pelos desvios autoritários expressos na tentação do pensamento único na Venezuela, pela incerteza frente a como será o comportamento político dos integrantes do Movimiento al Socialismo (MAS) na Bolívia.

Irão responder a interesses pessoais ou coletivos? Esses regimes antiimperialistas e com características modernas vão enfrentar a hierarquia da Igreja Católica em relação às políticas de saúde sexual e saúde reprodutiva? Ou o aborto clandestino, porém seguro, seguirá sendo privilégio das mulheres com recursos econômicos? A administração de Michele Bachelet questionará o modelo neoliberal que exclui a maioria dos chilenos e chilenas e privatiza o acesso aos direitos?

Sexualidade e Poder: os imaginários da cidadania

O contexto político é lido a partir de realidades e ferramentas, com as quais cada um atua, vive, vivencia e imagina. A prestação de contas aos governos, as demandas que colocamos no espaço público e com que nos organizamos na sociedade respondem a esses imaginários que construímos. Como afirma Gabriel Garcia Márquez, "recordem que as coisas do mundo, desde os transplantes de coração até os quartetos de Beethoven, estiveram na mente de seus criadores antes de estar na realidade". A sexualidade é uma das dimensões constitutivas da identidade do ser humano. É uma construção cujo exercício pode constituir/ser uma fonte de realização, de prática da autonomia individual de liberdade, de vínculo com o outro, de construção de afetividade, de enriquecimento da subjetividade, de sentimento de pertencimento a uma comunidade maior.

Bush e a hierarquia da Igreja Católica, entre outros, se deram conta perfeitamente da relação entre sexualidade e poder para tentar disciplinar o ser humano. Parte dos conteúdos com que Bush realizou sua campanha política para a reeleição teve como tema as políticas de sexualidade: proibir os matrimônios de pessoas do mesmo sexo, desprestigiar o uso da camisinha, tornar-se guardião da família nuclear clássica, impor a proibição de ações relacionadas ao acesso ao aborto legal às organizações e aos governos que recebam dinheiro do fundo para atividades de população da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID).

Por sua vez, a hierarquia católica se preocupa em emitir mandatos a serem observados por seus fiéis sobre a conduta ética em sexualidade, como a respeito do uso de métodos anticonceptivos modernos, da exclusão dos/das homossexuais do plano de Deus, da proibição do uso da camisinha.

Na nossa região, por exemplo, essa política se manifesta na instauração do dia do não-nascido e na pressão da hierarquia da Igreja Católica aos executivos e legislativos para que não ampliem o acesso aos métodos anticonceptivos. Nos intentos dos legisladores (como no Peru), para que desapareçam a palavra gênero das políticas estatais.

O comportamento dos governos e sociedades civis antiimperialistas frente a esses elementos não tem sido nem de demonstrar força nem de marcar presença e, muito menos, de dar centralidade política à questão, como a que foi conferida a temas como a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e a dívida externa. Por quê? Se o aborto clandestino e inseguro é a terceira causa de mortalidade materna. A Venezuela Chavista, no entanto, não modifica o Código Penal que criminaliza as mulheres que interrompem a gravidez. Em 2004, o Senado Uruguaio rechaçou a Lei de Defesa da Saúde Reprodutiva, que continha normas para acessar a informação e formação em sexualidade, incluindo o aborto legal e seguro. Até agora, o Uruguai de Tabaré Vásquez não colocou essa matéria na agenda legislativa e o presidente se deu ao luxo de dizer que, se a lei for aprovada, ele a observará. Ele adiantou a sua opinião. Mas com que objetivo? Para ficar bem com a hierarquia Católica em um país de larga tradição laica?

Será que somente nós, as feministas, queremos prazer sexual?

Os temas relativos às políticas do corpo somente são observados por movimentos feministas e os de diversidade sexual. É como se as pessoas que integram os demais movimentos não tivessem corpo, não tivessem desejos, ou não lhes interesse o fato de que seus corpos e desejos sejam disciplinados. Martha Nussbaum e Amartya Sem afirmam que "quando nos perguntamos sobre a prosperidade de uma nação ou região do mundo e sobre a qualidade de vida de seus habitantes... como a determinamos? Precisamos saber de sua saúde e dos serviços médicos, conhecer sua educação - e não somente a sua, mas também de sua natureza e qualidade. É necessário saber acerca do trabalho, de que privilégios legais desfrutam os cidadãos, que liberdades têm para conduzir suas relações sociais e pessoais, e como estão estruturadas as relações familiares e as relações entre os gêneros. Sobretudo, requer saber a forma como a sociedade permite às pessoas imaginar, maravilhar-se, sentir emoções como o amor, a gratidão, que pressupõem que a vida é mais que um conjunto de relações comerciais".

Se recorrermos às agendas dos diversos movimentos sociais, vai parecer que reeditamos a divisão entre o corpo e a mente, entre a produção e a reprodução. Será que os temas relativos à sexualidade seguem, no imaginário, vinculados à reprodução? Será que os revolucionários do século XXI seguem pensando que a reprodução é somente um problema das mulheres?

Desafios

Reinventar os conteúdos e fronteiras da política deve significar voltar a perguntar sobre essa relação hierárquica entre centro e periferia. Temos de recorrer, outra vez, ao público e o ao privado e desmontar as atuais relações de poder entre os dois âmbitos dentro deles mesmos. Temos de nos encarregar de nossas próprias vivências e das decisões que acompanham, sendo que isso deve conter nossos sentimentos. Não podemos deixar nas mãos do Estado, nem de Deus, nem do azar, a responsabilidade que nos cabe em relação ao exercício dos direitos, ao comportamento ético. E isso deve conter as nossas práticas e imaginários sobre a sexualidade e demais campos que acompanham seu exercício.

Temos de seguir fortalecendo o existente e reinventando zonas de fronteira, essas entendidas como espaços de encontro entre diferentes.

O outro mundo possível que queremos construir, nós o imaginamos com seres humanos que assumem seus corpos, seus sentimentos, fantasias e desejos.


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