A violação do pacto político
A política tem se prestado a re-distribuição de poderes? O exercício político tem conduzido processos de reversão das desigualdades de gênero e étnico-raciais? Passado o primeiro e o segundo turno das eleições, findo o processo eleitoral, estas são algumas das perguntas que não querem calar.
O engajamento das ativistas dos movimentos de mulheres e feministas nas campanhas eleitorais, os debates que elas travaram sobre as plataformas políticas, além do lançamento das candidaturas femininas às câmaras de vereadores e prefeituras contribuíram para dar substância ao debate realizado durante estes meses de campanha eleitoral. Em especial, porque seus discursos e até a simples presença destas mulheres insistem na subversão da ordem que assegura - mediante inúmeros mecanismos extra-legais - quase 90% dos espaços da representação política aos homens brancos. Como diz o sociólogo Francisco de Oliveira, fazer política é interromper a naturalidade dos processos de dominação, pelo estabelecimento da parte d@s que não têm parte.
O desequilíbrio na balança do poder, visto seja sob a perspectiva de gênero ou pela ótica étnico-racial é violento. Há quase uma década da instituição da política de cotas entre os sexos para as candidaturas proporcionais, a exigüidade da presença feminina - apenas 12,6% - no universo de eleitos, fala da quebra de compromissos democráticos, revela o não cumprimento dos pactos políticos consagrados na lei, torna evidente a violação dos acordos, pela prevalência de velhos e encobertos instrumentos da dominação patriarcal.
Se são os dados que revelam a desigualdade de gênero no sistema político, no que se refere às disparidades étnico-raciais, o problema é ao revés: a ausência de dados deixa escapar a decisão oculta de preservar o que ainda resta do mito da democracia racial. A sonegação de informações sobre os diferenciais étnico-raciais na ocupação dos espaços de representação política encobrem a inaceitável exclusão da população brasileira afrodescendente e indígena dos espaços de poder.
O sistema político não pode continuar sendo negligente na resolução das desigualdades de gênero e étnico-raciais, porque no país mais desigual do mundo, elas são estruturantes. Tais negligências são muito mais do que mero descaso. Constituem-se em violência de gênero e racial, expressas ao nível simbólico.
Você se lembra do Hino à República? Dizia: liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós (...) nós nem cremos que escravos outrora, tenha havido em tão nobre país. Hoje, o rubro lampejo da aurora, acha irmãos, não tiranos hostis. Somos todos iguais(...). 115 anos depois, uma reflexão sobre estes versos a partir dos resultados das eleições municipais faz o hino parecer uma velha cantilena, entre tantas outras que se renovam a cada dia, para deixar tudo como está.
Esta edição de novembro do FÊMEA, dá um basta às ladainhas antigas e às modernas, que mantém a exclusão das mulheres, d@s afrodescendentes e indígenas dos espaços de representação política. Apesar de o momento histórico não nos oferecer as condições para contrapor todo um sistema alternativo a esse sistema político excludente, radicalizamos a nossa crítica na tentativa de transformá-lo. Ao mesmo tempo, reafirmamos nosso engajamento nos processos geradores de novas formas de fazer política e definidores de novos conteúdos às culturas políticas democráticas, firmes na convicção de que "outro mundo é possível".
Por isto, a edição deste mês, em vez de de cantilenas, entoa canções de liberdade e igualdade, que dão ritmo intenso à busca da justiça. Soma-se às lutas e celebrações em torno do 20 de novembro - Dia da Consciência Negra, e do 25 de novembro - Dia Internacional da Não-Violência Contra a Mulher, na convicção de que a política tem de ser reinventada, que a democracia tem de ser democratizada, e que os movimentos feminista e anti-racista brasileiros têm uma contribuição significativa neste processo.