Carta, assinada por 22 organizações, foi entregue durante a primeira sessão do ano da Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial
Portal Catarinas
21 mar 2024, 10h54
Grupos conservadores têm intensificado a atuação para barrar o aborto legal no Brasil, ao mesmo tempo em que promovem projetos de lei que buscam reverter esse direito. Em resposta, organizações sociais entregaram uma carta aos parlamentares, destacando o impacto negativo dessas restrições nos direitos das crianças e adolescentes vítimas de estupro.
A carta, assinada por 22 organizações, foi entregue durante a primeira sessão do ano da Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial, que passou a ser presidida pela deputada Daiana Santos (PCdoB-RS). A mobilização teve o apoio da Frente Parlamentar Feminista e Antirracista com Participação Popular, da Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto e de integrantes do Programa Autonomia Sexual.
Leia a carta!
Joluzia Batista, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria – Cfemea, menciona que anualmente essas organizações realizam mobilização semelhante no Congresso Nacional, como parte de uma estratégia para conter a tramitação de projetos de lei que ameaçam os direitos, particularmente o direito ao aborto legal.
Joluzia Batista | Crédito: Juliana Duarte.
Nesta edição, intitulada “Onda Verde ocupa congresso por nossas vidas e por justiça reprodutiva”, as organizações escolheram dialogar com parlamentares do centro político, tanto da centro-direita quanto da centro-esquerda. “A ação teve como objetivo nos apresentarmos enquanto fontes, produtoras de análises e também como mobilizadoras sociais, organizações e lideranças que repercutem a pauta de ampliação do direito para as mulheres e meninas e pessoas que gestam”, avaliou Batista em conversa com o Catarinas.
Mariana Pércia, do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, considera que há espaço para diálogos sobre o direito ao aborto legal, e que as deputadas, assim como a maioria da população, reconhecem que mulheres não devem ser obrigadas a ter filhos em casos de gravidez por estupro.
“Fizemos diálogos no sentido de garantir o direito, de mostrar para elas a realidade das crianças sendo mães e sensibilizá-las para que essas infâncias não sejam interrompidas”, destaca.
Monitoramento dos projetos
A carta denuncia a falta de informação sobre o direito, tentativas de punir e responsabilizar as vítimas, e a investida de parlamentares para criminalizar integralmente o direito ao aborto, na linha do Estatuto do Nascituro. Isso significaria negar o procedimento mesmo em casos de estupro, risco de morte e anencefalia, situações em que o aborto é legalmente permitido.
Cerca de 30 projetos de lei foram monitorados nesta iniciativa. Dentre as propostas consideradas negativas, a atenção se volta para 12 projetos em tramitação na Câmara dos Deputados e 6 no Senado Federal.
Desta forma, destaca-se o Projeto de Lei (PL) de 4150/2019, apresentado pela deputada Chris Tonietto (PSL-RJ), que propõe modificação no Código Civil para conceder personalidade jurídica ao embrião e ao feto, prerrogativa essencial para o Estatuto do Nascituro.
Entre os mais exemplares de perseguição está o PL 580/2020, apresentado também por Tonietto, que tem o intuito de criminalizar mulheres que buscam o procedimento no exterior.
Apesar do repúdio público, continua em tramitação, por exemplo, o projeto de Lei 5069/2013, do ex-deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ), que visa criminalizar diversas ações relacionadas ao aborto, incluindo informações de redução de danos por equipe médica.
Por outro lado, 10 projetos na Câmara dos Deputados e 1 no Senado Federal despontam como iniciativas positivas, apoiadas tanto pela bancada do centrão quanto por parlamentares de esquerda.
A proposta 998/2023, de Samia Bomfim (PSOL/SP), visa alterar a Lei n.º 9.455 para incluir a motivação de gênero nos crimes de tortura e criar um novo crime para casos de impedimento ou interferência no aborto legal.
10 projetos na Câmara dos Deputados e 1 no Senado Federal são consideradas iniciativas positivas em relação à justiça reprodutiva | Crédito: Juliana Duarte.
Por outro lado, o PL 2540/2023, de Carol Dartora (PT/PR), institui a Política Nacional de Proteção a Parlamentares em situação de risco e vítimas de violência política de gênero e raça, estabelecendo o Programa Nacional de Proteção a Parlamentares em situação de vulnerabilidade.
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Já o projeto 119/2019, de Renata Abreu (Pode/SP), propõe alterações na Lei Orgânica da Saúde para incluir a atenção humanizada como princípio no Sistema Único de Saúde (SUS), adicionando “abortamento em condições precárias” como uma subdivisão da mortalidade materna.
Perseguição ao direito
Titular da Comissão de Direitos Humanos, a deputada Reginete Bispo (PT-RS), em conversa com o Catarinas, destacou a importância da campanha “Criança não é mãe” para sensibilizar a sociedade sobre a gravidez resultante de estupro.
“O grande desafio é a pauta recorrente, sobretudo dos homens da extrema direita, de criminalização do aborto legal, através do Estatuto do Nascituro. O que é também uma investida para legitimar o estupro de vulneráveis, quando defendem que criança pode ser mãe”, afirmou.
Bispo é coordenadora da Frente Parlamentar Feminista Antirracista com Participação Popular. Criada em 2019, a frente é composta por organizações e parlamentares engajados com a pauta de direitos. No entanto, sua instalação e a definição da composição de sua coordenação colegiada ainda estão pendentes nesta legislatura.
Movimentos sociais em conversa com a deputada Reginete Bispo (PT-RS) | Crédito: Juliana Duarte.
A parlamentar ressalta a necessidade de combater a desinformação disseminada por grupos extremistas. “A pauta dos extremistas é a criminalização das mulheres. Nós temos uma atuação permanente na desconstrução das fake news que eles propagam para ludibriar a população e colocá-la contra o aborto legal”, afirmou a parlamentar à reportagem.
Extrema direita e o esvaziamento da pauta de direitos
Realizada às vésperas do aniversário do assassinato da vereadora Marielle Franco, a primeira sessão da comissão de direitos humanos do ano teve a marca da violência de gênero enfrentada por parlamentares mulheres durante todo o exercício do mandato.
Encerrou-se devido a um conflito entre deputados, iniciado por comentários ofensivos do delegado Éder Mauro (PL-PA) sobre Marielle Franco. Houve intervenção para separar Mauro, que confrontou Talíria Petrone (PSOL-RJ). A presidenta Daiana Santos lamentou a falta de respeito e anunciou medidas para garantir um debate respeitoso.
Na última quarta-feira (20), as bancadas da federação PSOL/Rede acionaram o Ministério Público Federal para representar contra o deputado Gilvan da Federal (PL-ES) por violência política de gênero, injúria e difamação.
Ao longo de toda a sessão, parlamentares de extrema direita, titulares da comissão, se dedicaram a desvalorizar a agenda de direitos, além de atacar o direito ao aborto. Esses mesmos enalteceram as operações policiais que culminaram em várias mortes de civis.
“Aquela atuação dos deputados foi de uma maneira desrespeitosa e anti-regimental, deixando de transparecer uma boa imagem da política e desta Casa para o povo brasileiro. Uma falta de respeito com as famílias de Marielle Franco e Anderson Gomes. Espero que logo, o caso seja elucidado e os mandantes do crime punidos severamente”, afirmou a presidenta da comissão, Daiana Santos, ao Catarinas.
Daiana Santos | Crédito: Juliana Duarte.
Obstrução ao aborto legal
A estratégia de grupos conservadores de obstrução ao aborto legal tem sido evidente em todo o país. Casos no Piauí, Espírito Santo e Santa Catarina ilustram essa tendência. Recentemente em Tubarão, também em Santa Catarina, uma organização impediu uma adolescente, vítima de estupro, de realizar o procedimento.
“Quando o Estado nega o direito ao aborto, ele está negando um direito fundamental às mulheres, de decisão sobre algo que é muito central na sua intimidade física e psíquica, o de ter um projeto de vida. E falo isso principalmente sobre as mulheres negras e pobres”, posicionou Santos.
O ano de 2022 registrou o maior número de estupros da história, com cerca de 75 mil casos. Crianças menores de 14 anos representam a maioria das vítimas, totalizando 61,4% do total, ou seja, 40.659 vítimas apenas no último ano.
Não à toa, os números de gestações de crianças também são reveladores. A série histórica do DataSus, de 1994 a 2022, aponta uma média de 25 mil nascidos vivos gerados por crianças e adolescentes com menos de 14 anos. Somente em 2022, 14.265 crianças deram à luz.
As meninas dessa idade são consideradas incapazes de consentir, o que torna qualquer ato sexual com elas estupro de vulnerável. Elas têm direito ao acolhimento no Sistema Único de Saúde, incluindo a profilaxia emergencial da gestação, e o direito ao aborto legal, caso já estejam grávidas.
Apesar do estigma social, mais da metade da população brasileira é contrária à prisão de mulheres por aborto. Foi o que apontou a pesquisa ‘Opinião Pública sobre Prisão de Mulheres por Aborto no Brasil’, conduzida por Cfemea, SPW e CESOP, publicada no ano passado.