O Dia da Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe se celebra todo dia 28 de setembro desde 1990, quando essa data foi instaurada no 5º Encontro Feminista Latino-americano (EFLAC). O evento, que ocorreu na Argentina, definiu esse dia de luta a partir da sugestão de grupos feministas que sentiam a necessidade de visibilizar a situação do aborto na região e gerar conscientização.
Por que um dia para essa luta?
O Dia da Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe tem um nome tão extenso quanto o histórico de opressão e violência à mulher já vivenciados na América Latina. A ilegalidade do aborto, juntamente com a falta de acesso a serviços de planejamento familiar, ao serviço pré-natal de qualidade, a serviços de emergência obstétrica eficazes e a serviços de qualidade para tratamento de complicações decorrentes de aborto provocado ou espontâneo, são fatores que contribuem para os altos índices de mortalidade materna, segundo estudo da organização sem fins de lucro Ipas, que se dedica à promover a saúde reprodutiva em diversos países.
A Organização Mundial da Saúde publicou em 2017 uma pesquisa que apontava a realização de mais de 6,4 milhões de abortos na América Latina entre 2010 e 2014. Segundo o estudo, mais de 76% dessas interrupções de gravidez foram feitos de forma insegura, colocando a vida de muitas mulheres em risco.
Além disso, a maioria dessas mulheres também teve que lidar com o medo de uma possível repercussão legal, já que os países da América Latina contam com as legislações mais restritivas do mundo sobre o aborto. Países como El Salvador, Honduras, Haiti, Nicarágua e República Dominicana proíbem totalmente o procedimento. Em um estudo realizado pelo Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, mesmo naqueles países que possuem legislações que permitem o aborto em alguns casos, o acesso ao direito é muitas vezes negado ou não existe um claro protocolo de como implementá-lo.
Segundo o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), os países da nossa região estão marcado por um processo colonial com hegemonia da Igreja Católica e de processos de dominação dos corpos das mulheres e da população indígena e negra. “Nosso Estado democrático é patriarcal e reitera essa dominação ao negar o direito da mulher a decidir sobre o seu corpo, o que afeta principalmente as mulheres pobres e negras”, afirmam.
A educadora integrante da equipe do instituto SOSCorpo Silvia Camurça explica que o exercício dessa dominação sobre as mulheres é estratégico. “Este controle do corpo inclui o controle e exploração da sexualidade a serviço do desejo masculino, da indústria da moda, da beleza e da medicina estética , e inclui a regulação da capacidade de gestação do corpo das mulheres”, afirmou ela em entrevista ao Politize!. A educadora explica que esse controle está na base da concentração desigual de poder, riqueza e privilégios masculinos.
Outra problemática relacionado à falta desse direito, segundo organizações feministas, é o alto índice de maternidade infantil. Segundo a Onu, a América Latina é a segunda região com maiores números de meninas virando mães, perdendo apenas para a África. Recentemente no Brasil, uma menina de 10 anos enfrentou várias travas até conseguir o direito de abortar depois de ter sido estuprada por um tio. “Tudo isso, e tantos casos diários, revelam quão longe estamos de um debate honesto com a sociedade sobre a legalização do aborto”, explica representante do Cfemea, defendendo a importância do dia 28 de setembro e como essa data apoia, através de movimentos organizados, para contribuir com o tema.
No continente latino-americano, o Uruguai descriminalizou e legalizou o aborto em 2012, que hoje em dia pode ser realizado no país de forma segura e gratuita até a 12da semana de gravidez. No final de 2020, a Argentina aprovou uma lei que prevê o aborto legal e gratuito no país. Nesses países, as mulheres podem optar pelo aborto independentemente da razão que tenham para fazê-lo, desde que sigam determinados passos definidos pela lei.
O aborto no Brasil
No Brasil, a interrupção da gestação somente é permitida em três casos:
- decorrência de estupro
- se representa risco de morte para a gestante
- quando o feto é diagnosticado com anencefalia fetal
Mesmo para as mulheres que se encaixam no perfil, há muitos obstáculos para concretizar o aborto. Meninas, mulheres e pessoas vítimas de violência sexual são discriminadas e não conseguem interromper a gestação resultado de estupro por negligência, omissão e desinformação, segundo reportagem do portal Catarinas:
“Um terço das Unidades da Federação possui um ou nenhum serviço de aborto legal cadastrado pelo Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (Cnes): Amapá, Alagoas, Rondônia, Goiás, Piauí, Paraná, Roraima, Sergipe e Tocantins. Com exceção do Paraná e Goiás, estes são, também, os Estados com o menor índice de abortos registrados pelo Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS) e com as maiores taxas de estupros por 100 mil mulheres, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019”
A reportagem também aponta que em média entre 7 e 15% das pessoas estupradas acabam grávidas em decorrência da violência. Isso significaria que ao redor de 36 a 79 mil pessoas teriam direito ao aborto legal anualmente no Brasil. No entanto, a média de abortos registrados pelo SUS por ano é de somente 1630.
Nos últimos tempos projetos de lei ainda mais restritivos em relação ao aborto tem avançado no legislativo brasileiro, liderados por legisladores de partidos como o PSD e o PL. Um deles ficou conhecido como o Estatuto do Nascituro, um projeto de lei que defende a proibição do aborto em qualquer caso. Esse projeto em tramitação desde 2007 privilegia os direitos do feto desde a concepção e busca transformar o aborto em crime hediondo. Além disso, estabelece penas de um a três anos de detenção para quem realizar um aborto e de um a dois anos para aqueles que induzirem ou ajudarem uma mulher grávida a praticar o aborto.
Como o aborto é visto na esquerda e na direita?
O Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe
Desde a definição dessa data em 1990, organizações feministas e pelos direitos da saúde de meninas e mulheres colocam o tema aborto e outras questões de gênero e direitos humanos em pauta todo 28 de setembro. Diversas ações como palestras, workshops, exposições e muitas outras atividades são realizadas durante o mês, com foco na reivindicação dos direitos das mulheres. “O dia traz à tona a luta dos movimentos de mulheres e feministas pelo direito ao aborto legal e seguro, marcado por atos, vigílias, panfletagens, debates e outras formas de expressão”, explicou uma representante do Cfemea em entrevista ao Politize!.
Um dos exemplos de ação realizada no dia no Brasil aconteceu em 2008, quando um grande ato público nas ruas de São Paulo marcou o lançamento da Frente Nacional pelo Fim da Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto. Desde então, essa organização trabalha constantemente para gerar mobilização social e pluralizar os argumentos em favor da autonomia reprodutiva das mulheres. O movimento se caracteriza por ocupar espaços virtuais ou não para discutir a necessidade da legalização e descriminalização do aborto, o acesso à saúde e à interrupção segura e gratuita da gravidez indesejada.
Um dia para lutar pelo aborto seguro
Neste 28 de setembro, movimentos de todo o mundo celebram a luta feminista pelo direito de decidir sobre a interrupção da gravidez. Ação ocorre em meio ao acirramento global da disputa em torno do tema
“São tempos incertos”: assim começa a chamada global para o Dia Internacional do Aborto Seguro, convocado por uma rede de movimentos de 130 países para amanhã, 28 de setembro. A data é marcada por ativistas, especialmente latino-americanas, desde os anos 1990 – mas 2022 foi um ano de retrocessos notáveis.
O mais gritante aconteceu nos Estados Unidos, onde a Suprema Corte reverteu uma decisão em prol das mulheres, que agora estão em situação delicada. Mas também a China deu um passo atrás, ao decidir que abortos só podem ser feitos por “questões médicas”. E mesmo o Irã retrocedeu ainda mais, ao restringir até direitos de contracepção e de esterilização voluntária. São tempos incertos.
Na América Latina, os ventos ainda são de mudança, alcançada pela luta feminista. A última vitória aconteceu na Colômbia, onde o aborto foi descriminalizado até a 24ª semana de gestação. Já no Brasil, o tema é interditado por um governo de extrema-direita e um Congresso Nacional conservador. Entre a população, 67% acreditam que a criminalização do aborto não resolve o problema e 77% concordam que mulheres pobres sofrem mais com a proibição.
A Campanha Internacional pelo Direito ao Aborto Seguro reúne mais de 1,6 mil organizações, redes, coalizões e outros coletivos para lutar pelo direito de as mulheres decidirem sobre sua gestação. Também o Movimento pela Saúde dos Povos (MSP) se engaja na campanha: “O acesso aos cuidados de saúde é um direito humano, e as instituições e governos que não reconhecem e não garantem o acesso ao aborto como cuidados de saúde essenciais estão abstendo-se totalmente de suas obrigações de defender, proteger e cumprir os direitos humanos”.
Embora o Brasil pareça afastado dos debates a favor do aborto seguro, foi importante na criação da data de celebração da luta. O dia 28 de setembro foi escolhido a partir da Lei do Ventre Livre, de 1871, que determinou que todo filho que nascesse de uma mulher escravizada seria, a partir de então, livre.
“Em tempos incertos, nos mobilizamos para exigir cuidados de aborto seguros, legais, acessíveis e sem estigma, disponíveis para todos que precisam”, escreve a A Campanha Internacional pelo Direito ao Aborto Seguro em seu manifesto de 2022. “Nos recusamos a recuar, nos mobilizamos e nos organizamos usando as ferramentas à nossa disposição e nos adaptando às realidades de nossas comunidades.”
Movimentos de todos os países são chamados a celebrar em conjunto. A Campanha sugere algumas ações para serem realizadas por feministas em 28/9: compartilhar informações sobre como conseguir pílulas abortivas seguras (é bom lembrar que, no Brasil, o aborto é criminalizado e portanto é preciso garantir a privacidade ao divulgar métodos abortivos); organizar eventos e debates, festivais, seminários, webconferências e eventos culturais; cobrar de legisladores que pautem o tema; doar a organizações feministas que lutam pelo direito. Movimentos feministas também são chamados a participar da rede.
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