Apenas 42 hospitais realizam procedimento legal no Brasil, enquanto há 500 mil estupros por ano. Grupos religiosos propõem punitivismo — mas solucionar violência estruturante exigirá ensino de sexualidade e igualdade de gênero nas escolas
Por Cfemea para a Coluna Baderna Feminista, do portal Outras Palavras.
O caso de uma menina de 10 anos que engravidou em decorrência de estupro trouxe à tona mais uma vez o debate sobre o direito ao aborto e sobre o enfrentamento à violência sexual no Brasil. O contexto foi bastante cruel: violência sexual cometida no âmbito doméstico durante anos por um homem da própria família.
O Brasil tem, há mais de 80 anos, uma legislação que garante o direito ao aborto em caso de gravidez decorrente de estupro e risco de morte para a gestante. Em 2012, por decisão do Supremo Tribunal, o direito ao aborto foi assegurado também para o caso de fetos com anencefalia, uma má-formação do cérebro que inviabiliza a vida extrauterina. Subsequente ao Código Penal, há um arcabouço de leis, como a Lei 12.845/2013, que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual, e diferentes normas técnicas do Ministério da Saúde que tratam da violência sexual e regulamentam o acesso ao aborto legal. Alguns exemplos são a norma técnica (NT) que versa sobre a Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes – 1999 e reedições atualizadas, e a NT de Atenção Humanizada ao Abortamento – 2005 e reedições. Além dessas, há toda a legislação que salvaguarda os direitos de crianças e adolescentes, a exemplo do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990 e reedições.
Então, por que uma criança de 10 anos, violentada pelo tio desde os 6, engravida e sofre durante vários dias sob tutela do Estado para ter seus direitos assegurados? A demora, a recusa, a omissão são ações recorrentes do Estado brasileiro e de seus agentes públicos em casos como esse. Algo que deveria ser rápido e imediato levou tempo demais para ser efetivado, aumentando os riscos e o sofrimento da criança e de seus familiares. Está em curso, no Brasil, um projeto de poder alinhado com diretrizes fundamentalistas que impedem e agem para a regressão dos direitos das mulheres, mesmo o de crianças aos dez anos de idade.
Mas não é de se estranhar as dificuldades e a demora na realização do aborto. A falta de serviços é uma das explicações. Dados de 2020, do Mapa do Aborto Legal, apontam que atualmente em todo o Brasil somente 42 hospitais estão realizando o procedimento de aborto previsto em lei. Segundo o DataSUS, são realizados uma média de 26 mil partos de crianças entre 10 a 14 anos por ano. Paralelo a esses dados, o Atlas de Violência, publicado pelo IPEA em 2014, contabiliza que dos mais de 500 mil estupros por ano, mais da metade foram contra meninas de menos de 14 anos.
Tudo isso nos faz refletir sobre questões fundamentais para um país que se deseja democrático: o princípio da laicidade do Estado; o direito a uma vida sem violência; o dever do Estado, previsto na Constituição, de proteger as crianças, adolescentes e jovens de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão; e a autonomia das mulheres sobre seu próprio corpo.
Um Estado Laico é fundamental para a democracia
É fundamental que um Estado que se institui como democrático aja com o máximo de neutralidade e igualdade possível ao tratar das mais diversas pautas. Para a democracia e para os direitos individuais e coletivos, a laicidade – que separa o Estado das religiões – é um princípio crucial. Mas no Brasil, até a Constituição é dúbia em relação ao tema. Afirma a laicidade, assegurando inclusive o direito ao ateísmo, mas, ao mesmo tempo, é promulgada “sob a proteção de Deus”.
A tentativa de se instituir um Estado religioso se dá em vários campos. No Congresso, tramitam inúmeras propostas que ferem a laicidade do Estado, a exemplo das que tentam instituir a obrigatoriedade do ensino religioso (PL 309/2011), do ensino da Bíblia (PL 943/2015 e PL 9164/2017) e até mesmo do ensino do criacionismo (PL 8099/2014 e PL 5336/2016). Propostas estas que, se aprovadas, enfraqueceriam ainda mais a já frágil laicidade do Estado brasileiro.
Essa dubiedade é agenda do próprio governo federal, e dela se aproveitam setores conservadores que atuam em diversos espaços políticos. Nesse caso recente, a pressão feita por grupos religiosos para que a menina levasse a gravidez à termo, a exemplo dos áudios divulgados nos quais “defensores da vida” pressionam familiares da menina para manter a gravidez, chegando a afirmar que o que aconteceu “foi porque Deus quis”, é um forte exemplo do que estamos falando, e ressalta a importância do princípio da laicidade do Estado.
Junto aos movimentos feministas, que atuaram para garantir a proteção dessa menina, em diálogo com profissionais e parlamentares éticos e responsáveis com a vida e saúde da criança, vimos como a sociedade brasileira mostrou sua indignação com o fato. Acolheu, se movimentou e ecoou junto com as mulheres o absurdo, a revolta diante do ocorrido. Isso não é pouca coisa.
Um dos pilares do patriarcado é o uso da violência para subjugar as mulheres desde muito jovens, como no caso dessa menina, pelo uso da força física. Indignante é ver que parte das instituições religiosas professam uma visão de mundo que nega humanidade às mulheres, enxergando-as como um instrumento para a procriação a qualquer custo e não como uma pessoa com autodeterminação. Essa visão serve, inclusive, para que banalizem o estupro, retirando o direito das mulheres de decidirem se querem ou não dar seguimento a uma possível gravidez decorrente dessa violência.
Mais cruel ainda, é ver que instituições que se dizem religiosas também atuam para criminalizar as mulheres, entram com pedidos na justiça para impedir acesso ao aborto legal e incitam o aparato policialesco para apreender prontuários médicos de mulheres que passaram por procedimentos de aborto. Que padres excomungam as crianças, suas mães e avós, e perdoam os estupradores, pois segundo esses inquisidores medievais, “as mulheres que realizam aborto fruto de estupro são mais criminosas do que o estuprador pois fazem algo pior que é tirar a vida de um feto”. Aspas tiradas de diferentes justificativas de projetos de lei que procuram inviabilizar qualquer forma de interrupção da gravidez no Brasil.
Porém, nos traz alento verificar que estas posições não são unanimidade, e que em paralelo várias organizações e entidades religiosas se manifestaram apoiando a realização do aborto. É o caso da nota publicada pela Frente de Evangélicos em Defesa da Democracia, que se declarou “solidária à criança de dez anos e sua família, vítimas de imensurável dor”, entendendo “que é direito, protegido pela Lei e por decisão judicial, a interrupção da precoce gravidez, resultado do crime de estupro”.
O enfrentamento à violência sexual necessita mais do que punição
Como era de se esperar, e acontece cada vez que algo grave mobiliza a opinião pública, nessas últimas semanas já foram apresentadas mais de duas dezenas de proposições legislativas tratando do tema, na sua grande maioria aumentando a pena para crimes dessa natureza ou instituindo a castração química como parte da punição. Informações sobre cada uma delas podem ser encontradas nas duas últimas edições do Radar Feminista do Congresso Nacional, publicado semanalmente pelo CFEMEA.
Defendemos que para enfrentarmos a violência sexual, medidas repressivas são insuficientes. Temos de mexer na estrutura patriarcal e racista de nossa sociedade, sujeito dessa violência. Para tanto, é fundamental, por exemplo, que nos currículos escolares o debate sobre sexualidade e sobre a igualdade de gênero estejam colocados. Falar sobre igualdade de gênero para que as meninas e mulheres tenham segurança para conversar sobre o assunto e receber apoio para tomar as medidas necessárias. E para que os meninos, desde pequenos, compreendam e promovam a igualdade entre mulheres e homens, rompam com o silêncio e enfrentem entre si a violência patriarcal.
É inaceitável que tenhamos hoje uma ação de movimentos conservadores e do próprio Estado brasileiro pra proibir o debate sobre gênero e sexualidade nas escolas. Nos últimos anos, foram tramitados em todos os estados brasileiros e no governo federal mais de 160 projetos de lei que tentam proibir as escolas públicas de educação básica de discutirem o que chamam de “ideologia de gênero”. A discussão desses temas faz parte das políticas de prevenção. Uma educação não discriminatória, que valorize a diversidade e o respeito faz parte das políticas de prevenção.
Vale ressaltar que a sociedade tem resistido bravamente a essas investidas. No Congresso, no final de 2018, pressões permanentes impediram a aprovação do Projeto de Lei 7.180/2014, conhecido como Escola sem Partido, que foi arquivado. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, tem sido provocado por uma dezena de ações que postulam a inconstitucionalidade dessas leis municipais, e tem acolhido os argumentos dos peticionários, nas legislações já analisadas.
Donas da própria vida, donas do próprio corpo
A autodeterminação, o direito de escolha das mulheres, é central no debate sobre o aborto. Quando falamos aqui do direito à interrupção de uma gravidez não desejada, não esquecemos, de forma nenhuma, do direito a uma gravidez desejada, segura e saudável que deveria, da mesma forma, ser assegurada às mulheres. O feminismo das mulheres negras colocou em pauta o debate sobre justiça reprodutiva como um conceito que considera a realidade do racismo na vida das mulheres negras, com o duplo desafio de respeitar sua autonomia para interromperem uma gravidez (fruto de violência ou não desejada), e ao mesmo tempo assegurar-lhes o direito de serem mães – dado o genocídio de crianças e jovens negros, outro debate necessário a enfrentar para que vislumbremos um fim dessa violência estruturante no Brasil.
Vale destacar que no parecer que garantiu o direito ao aborto legal da menina do Espírito Santo, o juiz levou em conta e respeitou o desejo da criança de interromper a gravidez, ainda que pela idade ela seja formalmente considerada incapaz. Se esse direito foi corretamente assegurado a uma menina, como pode hoje em dia, ainda ser questionado quando se trata da interrupção da gravidez de mulheres adultas? Até quando vamos conviver com a posição de que a possibilidade do vir a ser é mais importante do que a vida em si, já existente, das mulheres?
O silêncio do governo sobre o caso, em especial do ministério da Saúde, evidencia a pressão da sociedade para que a interrupção acontecesse. Daí a solução momentânea do ministério de “lavar as mãos” em relação ao caso. Um silêncio que denuncia o descaso, e que foi quebrado com a publicação da Portaria 2282, de 27 de agosto de 2020, que Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. A reação do governo, através de um Ministério da Saúde há mais de três meses comandado por um militar interino, foi publicar uma portaria que dificulta ainda mais a realização do aborto legal no Brasil, levando a delegacia de polícia para dentro dos serviços de saúde, questionando a veracidade da palavra das mulheres, constrangendo profissionais, vítimas e familiares.
Por uma sociedade que se levante em defesa do direito ao aborto
Que a reflexão sobre o sofrimento dessa menina, infelizmente não um caso único e eventual em nossa realidade, nos abra os olhos também para o sofrimento de mulheres de todas as idades que vivem a violência de um estupro e quando engravidam, mesmo com a garantia para a realização do aborto inscrita em lei desde 1940, ainda hoje, 80 anos depois, precisam lutar para que a lei seja cumprida, e sofrem com a falta de hospitais responsáveis por sua realização.
Bastante oportuno foi o lançamento da campanha Tire os Fundamentalismos do Caminho! Pela Vida das Mulheres. A iniciativa é de organizações feministas, entidades baseadas na fé de matriz cristã, afro brasileiras e indígenas, com o objetivo de alertar a sociedade sobre os avanços dos fundamentalismos no Brasil e o risco que representam à vida das mulheres.
Estamos às vésperas de mais um pleito eleitoral. Os movimentos feministas antirracistas vêm há mais de uma década denunciando a presença cada vez maior de representantes de igrejas com atuação fundamentalista na política. Existe um projeto de poder em curso por parte desses grupos, com a ocupação cada vez maior de espaços nos legislativos. O momento eleitoral é chave para nos atentarmos a esses riscos, denunciarmos e rechaçarmos candidaturas misóginas, racistas e fundamentalistas, que atentam contra as vidas de nós mulheres. Seguimos alertas e denunciando esse mal uso da fé de nosso povo em nome de uma ordem moral violenta e intolerante, que prega a volta a um passado medieval que não nos cabe mais!
Em tempos de ascensão fascista, urge nos levantarmos contra as injustiças e as desigualdades sociais, de gênero e de raça, que são enormes em nossa região latino-americana e em especial no Brasil – algo que a pandemia, a ação genocida do governo federal e a violência do Estado sobre os grupos sociais mais vulnerabilizados tem escancarado cotidianamente. Algo que o caso da criança-menina de 10 anos, negra e de comunidade periférica, revelou para todos os olhos da sociedade brasileira. Não mais! Por isso reiteramos que não queremos voltar a uma normalidade que nos oprime, nos viola e nos impede de gozar uma vida plena, com justiça, igualdade e sem violência!