Quase lá: Antirracismo, tarefa inadiável para as pessoas brancas

Na prisão da ativista Sara Rodrigues, mulher periférica e grávida, o racismo institucional é escancarado. Mas denunciá-lo já não é o bastante: a luta contra a opressão por raça (e gênero) devem ser centrais para transformar a sociedade

Por Sos Corpo para a coluna Baderna Feminista, do portal Outras Palavras

“O colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada.
Uma ferida que dói sempre, por vezes infecta,
e outra vezes sangra”.

Grada Kilomba

Estamos vendo acontecer neste mês de junho de 2020 uma revolta popular contra o racismo, num primeiro olhar, desencadeada a partir da ação do movimento Black Lives Matter, nos Estados Unidos, e que tem irradiado grandes manifestações de pessoas que têm se levantado para a luta racial ao redor do mundo. A morte de George Floyd foi o estopim para as mobilizações de massa em quase todos os estados daquele país, numa ação articulada e liderada por mulheres negras.

No Brasil, movimentos sociais e organizações populares voltaram às ruas, em manifestações puxadas especialmente pelas torcidas antifascistas dos principais clubes de futebol, em defesa da democracia e contra os atos antidemocráticos, reanimando as forças da resistência para continuar a luta no enfrentamento ao bolsonarismo e contra o fascismo que molda toda a política de morte do governo Bolsonaro.

Em meio a estes protestos, a morte de João Pedro pela violência policial na periferia do Rio de Janeiro, o aumento dos casos Covid-19, de vidas negras e indígenas perdidas pela pandemia e da morte banalizada do pequeno Miguel Otávio — mais uma morte que escancara como as crianças negras não são vistas como crianças e que precisam de proteção –, impulsionaram à ida de milhares de pessoas às ruas, para exigir o fim do racismo.

Porém, mesmo que tenhamos tido manifestações o racismo esteve em pauta nas ruas, a resistência antirracista vista nas redes sociais não reverberou potencialmente como o levante estadunidense. A análise que tem sido feita por grande parte do movimento negro e de mulheres negras no país é de como seguimos com o nosso olhar colonizado para o exterior, como se posicionar-se pelo black lives matter invisibilizasse o movimento de vidas negras importam. A crítica se dá, principalmente, pela chuva de pessoas brancas que tem se posicionado como antirracistas nas redes, mas que pouco tem promovido um engajamento real para a mudança sistêmica do racismo, principalmente depois que mais casos de violência policial aconteceram subsequente à morte de George Floyd, como o caso de Micael Silva, de 11 anos, assassinado pela polícia militar no estado da Bahia.

Entre países colonizados e colonizadores, pessoas negras, asiáticas, indígenas e pessoas brancas aliadas têm se deparado com o racismo, uma ferida civilizatória, um sistema complexo e perfeito para (re)produzir desigualdades sociais dentro de uma sociedade racista como a nossa. O que os levantes mundiais — que têm marcado este mês de junho histórico — nos colocam como desafio para seguir na luta por dias melhores, é a necessidade, mais que urgente, de colocarmos no centro de nossas vidas a luta antirracista.

Na construção desta ferida, a ideia de raça foi fundamental para naturalização da condição de subalternidade, de desumanização e de supremacia na qual vivem determinados grupos sociais no processo de desenvolvimento das sociedades. A raça, como uma distinção que justifica relações sociais de poder no mundo, é um aparato de construção ideológica que se expressa na materialidade da vida e foi primordial para o projeto colonial de exploração de territórios. A criação da raça como elemento que legitima a dominação, fundamenta diferentes instâncias da vida, sejam elas materiais, subjetivas ou simbólicas. É a partir da raça que cria-se o racismo como um sistema sofisticado que vai moldar séculos de formação social ao redor do mundo.

O racismo, como define Audre Lorde [1], naturaliza a ideia de que existem seres superiores a outros e sua consequente legitimidade para a dominação é conformada de maneira manifesta na materialidade de nossas vidas ou de maneira subentendida, como a criação dos estereótipos que são reproduzidos, que opera até no silêncio e no apagamento do próprio racismo. O racismo é uma estrutura que faz parte do sistema de poder do capitalismo patriarcal. Entranhada nas relações sociais, este se mostra como um projeto colonial perfeito, como aponta a intelectual negra e jurista brasileira, Dora Lúcia de Lima Bertúlio [2].

A luta antirracista não é algo que surge no cenário da Pandemia. O antecede, mas tem nesta atual conjuntura de crise do sistema capitalista, os aditivos necessários para alavancar as mudanças que precisamos. Nos EUA, onde as relações sociais se diferem das brasileiras, bem como a forma que a raça e o racismo são experienciados por lá, produziu grande mobilizações durante dias, confrontos entre manifestantes e policiais, ocupação de ruas, o apoio de pessoas públicas importantes, como Angela Davis, que foi a uma das manifestações na cidade de Oakland, em que trabalhadores ocuparam o porto em protesto contra o racismo.

Em países como a Bélgica e a Inglaterra, as manifestações também foram gigantescas e de lá surgiram os movimentos de remoção das estátuas colocadas em praças públicas em homenagem a mercadores de pessoas escravizadas e genocidas, a exemplo da estátua do Rei Leopoldo II, responsável pela morte de 10 milhões de congoleses durante a colonização belga no Congo. Seja por ações diretas dos manifestantes ou da revisão dos poderes públicos locais que decidiram por retirar as estátuas após a forte onda de pressão popular, as ações desencadeadas por esse momento de levante antirracista no mundo tem fomentado o debate aqui no Brasil também, o que precisa de um olhar cuidadoso e sensível para um complexo contexto no qual o racismo brasileiro se forma e se alastra até os presentes dias.

Tendo, sobretudo, as mulheres negras liderando suas comunidades para resistir ao processo escravocrata que permanece mesmo com a abolição em 1888, a luta antirracista no país está em curso para garantir o direito de (re)existir das populações negras desprotegidas pelo Estado brasileiro e pela própria sociedade, marcadamente racista. Resistir para o povo preto é sobreviver, como bem afirma a historiadora e rapper Preta Rara [3].

Os sistemas racista, capitalista e patriarcal têm garantido, ao longo de séculos e atualmente com o neoliberalismo, que a supremacia branca continue prosperando enquanto outras vidas seguem sem ter nenhuma possibilidade de existir. A mesma necropolítica que avança sobre os corpos pretos e empobrecidos, é a que tem promovido o genocídio de povos indígenas, que junto com as classes populares e populações negras e periféricas, são as que mais têm perdido a vida desde o início da pandemia. Já ultrapassamos as 55 mil mortes notificadas pela covid-19.

Uma parte da nossa sobrevivência é confiscada a cada vez que há uma invasão capitalista ou uma ação terrorista do agronegócio nas terras indígenas, de acordo com professor Kabenguele Munanga. Parte da nossa sobrevivência está se esvaindo com a morte indiscriminada de indígenas, especialmente as anciãs e anciãos de diferentes etnias. São populações que resistem para sobreviver há séculos de políticas de morte e que agora se deparam com um novo genocídio indígena, desta vez provocada pelo coronavírus, mas ampliado pelo sucateamento do Serviço de Saúde Indígena (SESAI), ligado ao Ministério da Saúde, que segue em gestão interina há dois meses [4].

O total descaso do Estado brasileiro, a pouca repercussão midiática e a letargia social provocada pelo sistema, se materializa de forma direta para a manutenção das desigualdades sociais e, sobretudo, nos disparos sempre certeiros do racismo em relação às populações negras e indígenas. O aumento da pobreza, da fome e da morte de populações vulnerabilizadas são algumas das graves violações de direitos humanos que seguem acontecendo no país.

A prisão da ativista de direitos humanos Sara Rodrigues, que está encarcerada desde o último dia 16 de junho, é uma das vítimas recentes da justiça racista brasileira. Militante da Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA), Sara, mulher periférica, mãe de uma criança de cinco anos e grávida de outra, foi presa em casa enquanto organizava a distribuição de cestas básicas e kits de higiene em Água Fria, bairro da periferia de Recife. Mesmo com residência fixa, trabalho com carteira assinada e sem antecedente criminais, policiais militares invadiram sua residência de forma arbitrária, violenta, reviraram seus pertences e forjaram provas para incriminá-la por tráfico e associação ao tráfico, como alega a defesa de Sara.

Além de ter sido presa em uma ação ilegal, os policiais agiram sem mandado de busca e apreensão, Sara está presa ilegalmente, de acordo com a Lei da Primeira Infância, mostrando como a prisão é uma política racista [5]. No “novo normal” do sistema judiciário brasileiro, onde as audiências de custódia têm acontecido de maneira virtual, sem a participação de acusados e suas defesas, o que influencia diretamente para o aumento da política de encarceramento. Sara Rodrigues é mais uma mulher cuja existência está sendo interditada ou interrompida pelo racismo. A RENFA está com um abaixo assinado pela liberdade de Sara Rodrigues. Assine aqui.

Sara teve seus direitos violados em mais um processo de “guerra às drogas”, termo disseminado jurídica e midiaticamente e que mascara a realidade e os interesses por trás desta política, que é o aprofundamento do racismo institucional, com o encarceramento em massa da população preta e favelada, a criminalização da periferia e das regiões mais empobrecidas das grandes cidades. A guerra, na verdade, é contra o povo preto, como há décadas é denunciado pelo movimento negro brasileiro. Um política com uma forte base retórica e de disputa de sentido, que serve apenas para manter o controle social de uma classe dominante, detentora do poder econômico, midiático e jurídico sobre os corpos descartáveis para o capital.

Questionar as estruturas e confrontá-las é praticar uma ação antirracista. Isso porque racismo não é apenas uma questão individual, que se refere a um detalhe de comportamento de uma pessoa ou outra, mas sim, atinge a todo mundo, em diferentes dimensões. O racismo é um sistema sofisticado, que diz mais respeito sobre as pessoas brancas do que sobre pessoas negras e de cor. Como bem nos lembra Grada Kilomba, o racismo é uma problemática branca [6].

Na história recente do Brasil, quando só em 1988 entra na Constituição Brasileira reivindicações históricas da luta antirracista, pessoas brancas se aliaram ao movimento negro e indígena para defender a erradicação do racismo. Mas, é preciso o reconhecimento dos benefícios dados por esse sistema à branquitude para passarmos para a etapa da reparação, abrindo mão dos privilégios sociais garantidos pelo racismo, sejam eles individuais e/ou coletivos. De acordo com Maria Aparecida Bento, podemos nomear de branquitude “traços da identidade racial do branco brasileiro a partir das ideias sobre branqueamento” [7]. Como uma ideologia, a branquitude reforça a reprodução do racismo em nível sistêmico. Isso quer dizer que a construção da ideia de que há uma supremacia branca reforça e é a base para a também ideia de que há uma inferioridade negra. Nesse sentido, a branquitude sustenta o racismo.

Beneficiárias diretas deste sistema, parece que parte dos indivíduos brancos têm descoberto o antirracismo com os últimos acontecimentos, enquanto outros insistem por ignorá-lo, seja no campo das forças dominantes, seja no nosso campo da transformação social. Contudo, como bem salientam todas e todos intelectuais já citados aqui, não se combate o racismo só com retórica ou com palavras bonitas. O desafio que se lança no atual contexto ao grupo social branco, especialmente aquelas e aqueles que desaprovam publicamente o racismo, é ultrapassar a etapa do reconhecimento para o processo de reparação histórica de todos os prejuízos que o racismo tem jogado no colo das populações negras e indígenas no Brasil há gerações, para além de ações afirmativas.

Para movimentar a estrutura racista, é preciso mais do que uma retórica que só serve para amenizar, na melhor das hipóteses, a culpa pela branquitude e uma ação antirracista exige muito mais que uma simples expiação de culpa, como coloca Kabengele Munanga [8]. Em meio a uma pandemia sem precedentes, dizer-se antirracista não é o suficiente. Enquanto uma prática de genocídio da população negra e indígena no país, o racismo só será combatido com mudanças materiais e políticas, com mais mulheres negras e indígenas sendo ouvidas, estando em lugares de poder para produzir as mudanças reais.

Lutar contra o racismo não pode ser uma luta pontual. Se enfrenta com uma luta política maciça, com políticas públicas e com ações materiais coletivas e individuais, culturais e simbólicas para mudar a sociedade. Em territórios como o Brasil, a luta de classes se materializa e se sustenta na conformação ou na crença de que há raças superiores e inferiores. Para o movimento negro, sobretudo para feministas negras como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro, Erica Malunguinho, Vilma Reis, Marielle Franco e todas aquelas que têm construído em suas comunidades a luta popular antirracista, a raça não pode continuar sendo vista como um recorte ou como uma luta “identitária” quando, na verdade, raça é o fundamento.

Contudo, a luta antirracista não se efetivará sem a luta por igualdade de gênero. Num país onde mais de sete milhões de mulheres seguem sendo superexploradas por um trabalho de extrema herança escravocrata como as trabalhadoras domésticas, não há como pensar uma luta em defesa da democracia enquanto o racismo ainda moldar a vida de uma grande parcela da nossa população [9]. A luta em defesa do Sistema Único de Saúde, da Renda Básica Universal, por uma Educação Pública gratuita e de qualidade, pela descriminalização do aborto e em defesa da vida de todas as mulheres, a luta crucial por moradia, devem ser encaradas como dimensões urgentes e pujantes da luta antirracista, que é uma luta por emancipação coletiva.

“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras, muda-se a base do capitalismo”. A frase de Angela Davis nos convoca ao movimento [10]. E toda ação de deslocamento, que gera mudança, produz incômodo. E o racismo, como toda ferida colonial, incomoda porque ainda não foi cicatrizada. A luta antirracista exige mudanças que deslocam velhos incômodos, exige desnaturalização de ideias, reconhecimento de privilégios sociais concedidos pelo racismo e exige de nós a ação da coletividade para superarmos as estruturas que nos oprimem.

Para isso precisamos considerar a liderança das mulheres negras, há muito elas nos apontam caminhos que abrem veredas de emancipação para todas as pessoas, não somente para o seu povo. São elas, grande maioria das que tem liderado articulações que tem garantido a sobrevivência de diversas comunidades desassistidas pelo Estado frente ao coronavírus. A luta antirracista é uma luta de solidariedade radical, como aponta a feminista negra brasileira, Rivane Arantes.

Segundo esta intelectual, “a eficácia de uma ação antirracista depende muito, embora não só […] da radicalidade da visão sobre o que é racismo, os modos como ele se constitui e perenizou ao longo da história e […], as formas pelas quais ele se atualiza e segue ordenando o mundo na contemporaneidade” [11].

Assumir a radicalidade da luta antirracista em todas as nossas pautas é acabar com a herança colonialista que ainda existe em nossas relações sociais. O colonialismo que paira sobre nós não deixa essa ferida cicatrizar. A erradicação do racismo depende do poder que temos para derrubar as estruturas que nos oprimem. E essas estruturas reverberam também em nós e em nossas relações sociais dentro e fora dos movimentos.

Baderna Feminista indica – Audácia, Preta Rara:

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[1] Os usos da raiva: mulheres respondendo ao racismo, Audre Lorde: https://www.geledes.org.br/os-usos-da-raiva-mulheres-respondendo-ao-racismo/

[2] Racismo, Violência e Direitos Humanos. Considerações sobre a Discriminação de Raça e Gênero na sociedade Brasileira, Dora Lúcia de Lima Bertúlio, 2001.

[3] Preta Rara: “Para mim, resistir é estar viva” https://www.brasildefato.com.br/2018/11/25/preta-rara-para-mim-resistir-e-estar-viva

[4] Mães Yanomami imploram pelos corpos de seus bebês, Eliane Brum: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-24/maes-yanomami-imploram-pelos-corpos-de-seus-bebes.html?fbclid=IwAR1kaG-gsoNZyRL4X_ZPKswWqGZGRO3GYY2AjPgAafcRcWuPS8kc0qDL0Gk

[5] Desembargador nega pedido de liberdade provisória da ativista grávida Sara Rodrigues, Marco Zero Conteúdo: https://marcozero.org/desembargador-nega-pedido-de-liberdade-provisoria-da-ativista-gravida-sara-rodrigues/

[6] Memórias da Plantação – Episódios do Racismo cotidiano, Grada Kilomba. Tradução: Jess Oliveira. Cobogó, 2019.

[7] Branqueamento e branquitude no Brasil, Maria Aparecida Bento. Vozes, 2014.

[8] #4 Caminhos: Conjuntura da luta antirracista no mundo, Kabengele Munanga, Andreia Beatriz – Diálogo com os Povos:

[9] Enquanto houver RACISMO, não haverá DEMOCRACIA: https://comracismonaohademocracia.org.br/

[10] “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”, Angela Davis: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/570053-quando-a-mulher-negra-se-movimenta-toda-a-estrutura-da-sociedade-se-movimenta-com-ela

[11] Meditações sobre feminismos, relações raciais e lutas antirracistas, Rivane Arantes: http://soscorpo.org/feminismo-relacoes-raciais-e-lutas-antirracistas/


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