para a Coluna Baderna Feminista, do portal Outras Palavras
A participação social no desenho e na execução de leis e políticas públicas é um pilar da democracia, previsto na Constituição de 1988. Os movimentos de mulheres e feministas sempre foram ativos e atuantes em diferentes frentes. No legislativo federal, por exemplo, são décadas de monitoramento e incidência para a aprovação de legislações não discriminatórias. Estivemos presentes, por exemplo, em debates e votações, apoiando a construção de uma representação coletiva das mulheres parlamentares, que se concretizou na Bancada Feminina no Congresso Nacional.
No âmbito do Executivo, foi grande a nossa mobilização para a criação de um órgão federal responsável pelas políticas para as mulheres. E foi permanente a pressão para que este tivesse recursos reais para combater as violações e promover novos direitos, com orçamento adequado para efetivar as políticas definidas nas Conferências Nacionais de Politicas para as Mulheres e consubstanciadas no Plano Nacional de Politicas para as Mulheres. Situação que ficamos longe de atingir, por sinal. Mas e hoje, diante de uma conjuntura política radicalmente diferente, com um governo autoritário, violento e de um Legislativo que opera em trabalho remoto por conta da pandemia, como fica a nossa participação nas decisões políticas do país?
Com um Governo Federal eleito com a promessa de acabar com qualquer forma de ativismo, não é surpresa que a participação da sociedade esteja em xeque, ainda mais em espaços de tomada de decisões para a elaboração, desenho e execução de políticas. O que preocupa é que, além de acabar com direitos e políticas públicas, a intenção declarada de quem hoje nos governa é de também eliminar os sujeitos políticos que fazem essas lutas.
Com o estrangulamento dos espaços do Executivo, um caminho que continua sendo utilizado por nós, movimentos e organizações de mulheres e do campo dos direitos humanos, é o diálogo e a pressão junto ao Legislativo Federal. Construímos a Frente Parlamentar Feminista Antirracista com Participação Popular, graças ao aumento de parlamentares feministas e antirracistas nesta Legislatura. Mas é diálogo repleto de limites. O perfil predominante no Congresso é extremamente conservador, que atuam com desenvoltura em um Parlamento cada dia mais avesso à participação.
As sessões da Câmara e do Senado sempre demandaram a presença física de parlamentares e assessorias em Brasília. Com a pandemia do Coronavírus, essa rotina foi paralisada. Devido ao risco de contaminação, os trabalhos passaram a ser todos virtuais e devem ficar assim no mínimo até o mês de julho. Câmara e Senado estão funcionando sem debate na maior parte das comissões. Os projetos estão sendo analisados direto em Plenário Virtual. As Medidas Provisórias que tinham prazo de tramitação de 120 dias, agora tem no máximo 12. As sessões, muitas vezes, são convocadas de um dia para o outro e podem ocorrer à noite e nos fins de semana. Tudo isso é prato cheio para as forças antidireitos, antidemocráticas e conservadoras se sentirem mais à vontade para tomar decisões que prejudicam a população brasileira.
Em plena crise sanitária, e na iminência de uma inevitável crise econômica como consequência da pandemia, é assustador que tenhamos que reafirmar que todas as vidas importam. Mas quando governantes falam em vidas descartáveis e colocam em risco a saúde da maior parte da população é que o paradigma dos direitos humanos se revela fundamental. Com ataques cotidianos e urgências que tomam a agenda política podemos achar que o tema da participação social é até supérfluo, só que não. A garantia de participação social na definição dos rumos políticos do país é não só condição para a existência da democracia, mas a busca por mais igualdade, por reparação e por justiça social.
As instituições políticas no Brasil estão se tornando cada vez mais fechadas à participação e incidência da sociedade. Estamos falando de uma democracia desgastada e fragilizada desde o Golpe de 2016, mas também uma democracia que nunca conseguiu incluir a maioria da população, reclame preciso e recorrente dos movimentos de mulheres negras e dos povos indígenas, por exemplo.
A passagem de Michel Temer pelo poder foi marcada por uma avalanche de medidas que desmantelaram dezenas de políticas públicas que vinham sendo executadas com o objetivo de diminuir as desigualdades e ampliar direitos. Tivemos a promulgação pelo Congresso Nacional da Emenda Constitucional 95/2016 (PEC do Teto dos Gastos Públicos) que, entre outras coisas, congelou os investimentos em saúde e educação por 20 anos. A chamada reforma trabalhista (Lei 13.467/2017), que retirou direitos conquistados na década de 1940 pelas trabalhadoras e trabalhadores, quando da aprovação da CLT – Consolidação das Leis do Trabalho. A eleição de Jair Messias Bolsonaro, em outubro de 2018, só agravou esse quadro. Para não deixar dúvidas sobre suas intenções, uma das primeiras medidas que tomou ao assumir foi extinguir o Ministério do Trabalho.
O esvaziamento de conselhos de direitos e organismos governamentais já era um processo questionável quando Jair Bolsonaro iniciou seu mandato à frente da Presidência da República. Na comemoração dos seus cem dias de gestão, Bolsonaro publicou o Decreto nº 9.759, de 11 de abril de 2019, que extinguiu e estabeleceu diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal, indicando no Art. 2º que no conceito de colegiado estavam incluídos: conselhos, comitês, comissões, grupos, fóruns, entre outros. O Art. 5º, por sua vez, extinguiu todos os colegiados criados antes da gestão de Bolsonaro; e o Art. 10 revogou o Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014, que instituiu a Política Nacional de Participação Social - PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social - SNPS. Um arranjo no qual os espaços de debate ficaram mais restritos ao governo, com menor ou sem participação da sociedade civil. Em resumo, um decreto para marcar de uma vez por todas que o modelo da participação social não é a proposta de seu governo.
Nesse cenário, vale se perguntar: de que adiantaria participar de espaços de diálogo dentro de uma estrutura de governo autoritária, antidemocrática? Onde a presença da sociedade é vista como um entrave para fazer avançar um projeto ultraliberal de estado mínimo? Vamos fazer parte de um projeto que defende a privatização de serviços essenciais como água, educação, saúde, previdência? que avança sobre territórios de comunidades quilombolas, extrativistas, terras indígenas, eliminando nossos povos originários e destruindo a Amazônia? Faz sentido demandar espaços democráticos de participação diante de um governo que não só não opera com esses parâmetros como atua para nos eliminar, para além de não promover políticas públicas?
Esse é um dilema vivido por organizações da sociedade civil e movimentos sociais atualmente. Os conselhos de participação que hoje ainda se mantêm estão esvaziados ou foram aparelhados. O Conselho Nacional da Amazônia Legal, para citar um exemplo recente, foi retirado do Ministério do Meio Ambiente (onde estava desde 1995) e colocado sob a aba da vice-presidência, conforme o Decreto nº 10.239, de 11 de fevereiro de 2020. Sua nova composição inclui 20 militares, sem contar o vice-presidente, general de reserva Mourão que preside o Conselho. E sua composição não inclui representante do IBAMA - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis e da FUNAI – Fundação Nacional do Índio. O decreto também não previu representação de povos indígenas, pescadores, quilombolas ou qualquer representação das comunidades tradicionais da região.
O primeiro ano do governo Bolsonaro foi marcado pela retirada e a ameaça a direitos já conquistados, o enfraquecimento das políticas sociais e de distribuição de renda, a liberação assustadora de mais de uma centena de agrotóxicos, a entrega de áreas de preservação e demarcação, privatizações e concessões desenfreadas e o desmantelamento das ainda frágeis redes democráticas de participação.
Agora, em meio à pandemia, o governo federal encaminha dezenas de medidas provisórias e publica decretos ou portarias que agravam as desigualdades, favorecem os grandes empresários e as instituições financeiras, retiram mais direitos das trabalhadoras e trabalhadores e garantem a privatização das empresas públicas. No Congresso Nacional, parlamentares de sua base aliada apoiam tais propostas e apresentam outras no mesmo sentido. O projeto neoliberal segue voraz, sendo implantado com mais agilidade e pouco acompanhamento ou denúncia.
O auxílio emergencial de 600 reais dado a trabalhadoras e trabalhadores informais é tratado não como um direito, mas como uma “bondade” do Governo (que por sinal tinha proposto 200 reais). Se no início suscitou um debate sobre a Renda Básica Universal, agora foi reduzido ao termo “coronavoucher”. Isso sem contar a dificuldade de acesso ao benefício, a denúncia de que militares estão acessando indevidamente o recurso e ainda a alteração na lei para que os homens chefes de família monoparentais possam também acessar o benefício em dobro – o que na prática está impedindo este acesso a muitas mulheres, efetivamente chefes de famílias monoparentais.
Mas as organizações dos movimentos sociais também atuam com outras estratégias. Uma delas é o cuidado. Desde que as políticas de isolamento social se iniciaram no Brasil, redes de solidariedade começaram a surgir, ou foram reforçadas, para acolher e acudir milhares de famílias brasileiras. É o povo, trabalhadoras e trabalhadores, militantes e ativistas de movimentos sociais que mobilizam, atuam e dialogam com a sociedade para trazer mais mentes para um projeto alternativo, solidário, justo, onde o cuidado seja valorizado na importância que ele tem para nossas vidas, com respeito aos bens comuns e ao “bem viver”, na conceituação indígena do termo. Não são os governos federal, estaduais ou municipais. Para citar um exemplo, só o tão perseguido, difamado e criminalizado MST (Movimento dos/as Trabalhadores sem Terra) já distribuiu mais de 600 mil cestas básicas para o povo com fome e sem condições de se proteger nas atuais circunstâncias.
Outra estratégia que começa a ganhar força é a campanha pelo fim do governo atual, com a convocação de novas eleições. Precisamos reunir as denúncias e construir as alternativas necessárias para isso. Que a dominação masculina branca cristã encerre seu mandato para que possamos, sim, construir modelos mais radicais de participação da sociedade na condução política do país. Que a cidadania seja a referência de uma política mais comunitária, paritária, coletiva e diversa em sua representação. Que outro sistema político seja parte do projeto democrático, nos moldes do que defendemos na Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.
Com o executivo cada vez mais reativo à participação social, com o legislativo ainda menos poroso em tempos de sessões virtuais, as organizações da sociedade civil voltam a se concentrar no que sempre foi a sua força: a articulação entre si. Como sociedade civil organizada, estamos trabalhando para fortalecer nossas redes de solidariedade, para intervir publicamente nas propostas em debate e denunciar as violações e os retrocessos de direitos em curso, na tentativa de ao menos reduzir os danos.
Recentemente, nós do Centro Feminista de Estudos e Assessoria – CFEMEA e SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia (que assinamos esta coluna), junto com um grupo de organizações sociais e movimentos populares (dentre eles, o MST, CONAQ, Articulação de Povos Indígenas do Brasil, Terra de Direitos, justiça Global, Criola, Artigo 19) lançamos o Observatório dos Direitos Humanos - Crise e covid-19. Por meio dessa iniciativa, reconhecemos a importância da existência de múltiplas vozes, olhares e acúmulos das entidades que integram o Observatório, destacando que os esforços da sociedade civil são centrais e indispensáveis para combater as desigualdades econômicas, políticas e sociais, sobretudo na perspectiva de gênero e raça, que assolam uma parcela grande da sociedade.
Com o Observatório, esperamos somar os esforços na denúncia de violações e retrocessos, bem como fortalecer as redes de solidariedade. Além disso, queremos pautar a importância da democracia e dos seus mecanismos de controle social. Seguimos insistindo no respeito à vida humana e na garantia da sua dignidade em todos os aspectos. Isso significa que seguimos insistindo na democracia e na ideia radical de que toda a humanidade é digna de existir. É a total antítese da política autoritária e fascista que vivemos hoje. Por isso insistimos que o caminho para superarmos este momento de crise é pela garantia dos direitos humanos.