Uma questão que tem se destacado como um problema na situação de confinamento social por conta da pandemia é tanto o agravamento quanto o aumento da violência doméstica contra as mulheres. Lideranças do mundo todo reforçam e tomam medidas para efetivar o isolamento social como medida fundamental para conter o vírus. #Fiqueemcasa está entre as hashtags mais usadas nas últimas semanas em todas as redes sociais, por personalidades, organismos internacionais e Estados. O governo Bolsonaro segue isolado, remando contra a maré. Até Donald Trump, que ensaiou ser contra as medidas de isolamento social, reviu sua posição.
O que é a solução para contenção do ritmo de contaminação do vírus que provoca uma pandemia mundial, é também o gatilho para o aumento significativo da violência contra as mulheres – e também contra meninas e crianças. Segundo reportagem da Folha de São Paulo, “os assassinatos de mulheres em casa dobraram em São Paulo durante a quarentena”. Na segunda quinzena de março, com o aumento do isolamento social, o serviço de atendimento e denúncia de situações de violência contra as mulheres Disque 180 registrou um aumento de 9% nas denúncias em relação à primeira quinzena do mesmo mês [1]. Se o espaço da casa é um ambiente seguro para muitas pessoas, para muitas mulheres pode significar um lugar de violência e medo.
Diante desse fato, as mulheres se movimentam de distintas maneiras. Muitas estão se organizando para criar redes de apoio e proteção, como o projeto “As Justiceiras” que já reúne mais de 700 voluntárias numa lista de whatsapp para prestar assistência médica, psicossocial e legal à mulheres em situação de violência doméstica. Outras estão pendurando panos brancos nas janelas para denunciar que naquele local está ocorrendo violência conjugal. Outras ainda estão elaborando artigos e análises com denúncias, pleiteando de parlamentares e autoridades públicas respostas efetivas a essa situação. Essas ações mostram como um problema que parece ser apenas de algumas afeta, causa indignação e mobiliza o conjunto das mulheres em busca de aliviar a dor das vítimas, denunciar essa injustiça e demandar soluções para o problema.
Para nós, feministas organizadas em movimentos que lutamos por igualdade de direitos a partir da vida concreta e cotidiana das mulheres, para além dessas ações é preciso entender a violência como algo estrutural. A violência contra nós é um pilar do poder patriarcal, uma das mais fortes expressões das desigualdades entre homens e mulheres. Desde o período da redemocratização, os movimentos feministas e de mulheres, em sua ampla diversidade – do campo, das florestas e das cidades, de categorias de classe sindicalizadas ou não, trabalhadoras domésticas, profissionais do sexo, mulheres indígenas, feministas negras, jovens, mulheres com deficiência, lésbicas, bissexuais e transexuais – vêm denunciando a violência sofrida no cotidiano das brasileiras.
Há alguns anos, militantes da Articulação de Mulheres Brasileiras decidiram realizar um processo formativo para aprofundar a reflexão sobre a violência como elemento comum de nossa experiência como mulheres. A compreensão geral era a de que precisávamos complexificar nosso olhar para enxergar as desigualdades entre homens e mulheres, também estruturadas pelo racismo e pelo capitalismo, e ainda considerando a dimensão etária, da lesbofobia e os contextos onde a violência ocorre – espaço urbano ou rural, onde disputas por territórios, faccionados por milícias e traficantes e conflitos agrários tornam ainda mais complexa a violência sofrida pelas mulheres, como as indígenas, quilombolas, pescadoras artesanais, extrativistas, etc.
Foram muitos os aprendizados e ressaltamos aqui dois pontos debatidos neste processo que nos ajudam a perceber como a questão da violência e seu enfrentamento é central para a construção alternativa de projetos de sociedade mais igualitários, justos e democráticos.
O primeiro ponto diz respeito ao modo como a violência, pelo uso da força, da subjugação dos povos originários, da população africana escravizada esteve e segue presente na formação social brasileira – e também na América Latina. Sociedades que foram historicamente estruturadas pelo uso da força e do massacre para a exploração e a dominação econômica, cultural e política. No Brasil, o uso da violência deixou marcas profundas e se perpetuou nas relações de gênero, de classe e baseadas na raça/etnia. Foi um instrumento para a opressão patriarcal no âmbito privado, sobre as mulheres, como também no campo da economia e da política, através do patriarcalismo e do autoritarismo.[2]
O segundo ponto diz respeito à questão da violência como um fator do déficit democrático. Uma sociedade que convive passivamente com o jugo e o domínio de parcela significativa da população, mantendo-a permanentemente sob ameaça e medo não pode ser considerada democrática. Estamos falando de meninas violadas por pais, padrastos, irmãos mais velhos, mulheres lésbicas violentadas por vizinhos e parentes para “corrigir” sua sexualidade, mulheres violentadas por maridos que acreditam que seus corpos estão disponíveis para servir aos seus ímpetos e vontades pessoais. Mulheres indígenas, extrativistas, quilombolas assassinadas e estupradas por grileiros e fazendeiros por exigirem o direito à sua terra e o respeito aos nossos bens comuns. Jovens negros das periferias do Brasil, assassinados cotidianamente por agentes estatais da necropolítica.
Se relacionarmos o problema da violência como elemento fundante da base social de nosso país com o comando da nação nas mãos de um patriarca, ex-militar que propaga há décadas o discurso da violência para combater a violência temos um resultado dramático. De forma geral, o descaso com as mortes de brasileiros e brasileiras decorrentes da falta de acesso às condições mínimas sanitárias e de saúde no discurso do presidente é desolador. Bolsonaro tem sido motivo de chacota internacional e sua reação ao problema da pandemia o coloca como o pior líder mundial no trato da questão. Ouvimos não uma, mas algumas vezes pessoas que o apoiam propagarem discursos de que algumas milhares de mortes seriam nada mais que um efeito colateral diante do risco maior que as perdas econômicas podem representar para o país, o que rapidamente gerou reações diversas com o mote de que Vidas Valem Mais que Lucro!
Por outro lado, podemos nos perguntar qual é o impacto de tamanha banalização da violência, e ainda, de sua permissão para que siga sendo parte das relações sociais entre nós, dado que até o presidente do país legitima sua perpetuação. Quando confrontado com o problema do crescimento da violência doméstica no contexto da pandemia, o presidente negligenciou suas causas estruturantes e destilou mais um de seus achismos asquerosos ao afirmar que as mulheres estão apanhando em casa durante a quarentena porque os homens não estão saindo para trabalhar e ganhar o sustento da família. A reprodução desse discurso por um líder nacional não é apenas leviana e preconceituosa em relação aos milhões de desempregados e desempregadas que vivem hoje no país, mas cumpre também o papel de naturalizar a violência como algo que pode necessariamente acontecer, e “autorizar” os homens a serem violentos com suas companheiras quando estiverem passando por situações difíceis, quando deveria condená-la em qualquer circunstância.
A partir dessa experiência comum vivida por nós mulheres, o movimentos feministas se articularam e pressionaram por ações efetivas dos poderes públicos para o combate à violência, partindo do pressuposto de que era preciso ter um marco legal que garantisse os direitos das brasileiras e que tais leis pudessem ser efetivas, através da execução de políticas públicas com recursos reais e equipamentos sociais capazes de transformar as relações desiguais entre homens e mulheres, entre a população branca e negra, entre trabalhadores/as e proprietários.
E tivemos muitas vitórias. A Lei Maria da Penha e a lei do Feminicídio são algumas das conquistas na legislação, bem como a fomento de uma rede de atendimento e assistência, a construção de protocolos para o atendimento a situações de violência sexual nos serviços de saúde, entre outras. A maior parte dessas conquistas só foi possível com a criação de organismos dedicados à defesa dos direitos das mulheres, e com a ação de incidência institucional e resistência dos coletivos e movimentos feministas. Foram possíveis graças à redemocratização e às oportunidades que se abriram com o fim da ditadura militar, à criação de espaços de participação social, à atuação dos movimentos nacionais e aos acordos firmados em espaços internacionais. Conquistas essas que, em grande medida, vêm sendo fragilizadas após o golpe de 2016.
Como é base do patriarcado, a violência também se relaciona diretamente com os outros sistemas de opressão – capitalismo e racismo – e outras formas de violência, como LGBTfobia, o capacitismo, entre outras. Assim, atinge as mulheres de diversas maneiras e contribui para a manutenção das desigualdades sociais. A violência não acontece do mesmo jeito em todos os lugares e é por isso que seu enfrentamento não pode ser pensado a partir de um único parâmetro.
O aumento da violência contra as mulheres é real desde que este governo misógino – que não gosta de mulheres – e racista chegou ao poder. Assistimos abismadas ao aumento de casos de feminicídios, mulheres sendo jogadas pela janela, assassinadas dentro de casa; e tudo isso associado à redução drástica de recursos públicos destinados ao enfrentamento da violência, e ao desmonte dos serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência. Ao mesmo tempo, é justamente à frente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – sim “mulher” no singular porque não se governa para o conjunto da diversidade das mulheres brasileiras – que a junção entre o conservadorismo patriarcal e o fundamentalismo religioso toma forma na versão mais assustadora e antifeminista possível. O que dizer da declaração de Damares de que a causa dos estupros cotidianos e da exploração sexual de jovens meninas no norte do país é a falta de calcinhas, e a solução seria, então, fabricá-las, ao invés de interromper o ciclo de violência que autoriza que homens adultos estuprem meninas.
Se já é grave não ter recursos públicos para enfrentar o problema “democrático” da violência contra as mulheres, o que esperar de um governo que subestima a necessidade de políticas efetivas de enfrentamento do problema estruturante da violência? Com a resposta ineficiente e encorajadora de violência deste governo é previsível que, nessa situação extremada de emergência que tem demandado o isolamento social como forma de conter a contaminação do Covid-19, muitas mulheres, meninas e crianças estariam em perigo em suas próprias casas, do que em outros contextos. O silêncio sobre a necessidade de propostas efetivas do governo para conter a violência contra as mulheres em tempos de crise é criminoso.
No âmbito do poder legislativo, estão sendo discutidas e aprovadas uma série de propostas para enfrentar a crise gerada pela pandemia do coronavírus, algumas para apoiar as mulheres e populações vulnerabilizadas, como o projeto que criou a Renda Básica Emergencial para trabalhadoras e trabalhadores informais e autônomos. Outras estão mais preocupadas com as elites econômicas, sacrificando direitos trabalhistas e obrigando a classe trabalhadora a pagar pela crise, como a Medida Provisória 905/2019 que cria o contrato de trabalho verde e amarelo, ou a PEC 20/2020 (Orçamento de Guerra), que aumenta o poder do governo federal na gestão dos recursos públicos durante a crise.
Já no intuito de tentar conter o aumento do número de casos de violência, mulheres parlamentares propuseram uma série de medidas. Entre os projetos em debate (talvez já tenham sido aprovados quando esse texto tiver sido publicado), o PL 1267/2020, da Deputada Talíria Petrone e outras tem o objetivo de ampliar a divulgação do Disque 180 enquanto durar a pandemia da covid-19. O PL 1291/2020, apresentado pela Deputada Maria do Rosário, entre outras, que visa assegurar medidas de combate e prevenção à violência doméstica já previstas no código penal brasileiro enquanto durar a declaração de estado de emergência de caráter humanitário e sanitário em território nacional. O PL 1552/2020, da Deputada Sâmia e outras, que dispõe sobre a proteção de mulheres em situação de violência enquanto durarem as medidas de quarentena e restrições de atividades no contexto da pandemia da covid-19.
São medidas importantes, ainda que insuficientes, já que estão centradas no punitivismo, lançando mão de uma rede de atendimento que já era frágil e que nos últimos anos vem sendo desmontada. Durante os Governos Lula e Dilma, ensaiamos a construção de uma Rede Nacional que pudesse efetivar uma política acessível a todas as mulheres. No entanto, a falta de priorização dos recursos e a forma como a política foi conduzida manteve diversas desigualdades entre os estados e não conseguiu dar escala à proposta e garantir sua universalização. Agora, no Governo Bolsonaro, ao contrário do que alardeia a ministra responsável pelo tema, temos um orçamento cada vez mais reduzido, que não sustenta nem os serviços e equipamentos existentes.
É inegável a maior visibilidade do debate sobre violência na sociedade. No entanto, esse debate, ainda está muito centrado em torno da necessidade de denúncia e punição do agressor. O foco está centrado na violência aberta, aquela que é reconhecida imediatamente pela sociedade. A perspectiva feminista antirracista nos desafia a ir além, precisamos enfrentar a violência estrutural ou sistêmica, vinculada às formas de dominação e opressão vigentes. Temos vistos propostas em diferentes países de criação de alternativas emergenciais de locais para abrigar mulheres vivendo essa situação durante a pandemia, como o uso de hotéis e espaços públicos em desuso durante o isolamento, um debate que temos feito nos movimentos de mulheres junto com a divulgação dos serviços que estão funcionando, além de redes solidárias de acolhimento com escuta para essas mulheres se encorajarem a sair dessa situação; afinal, ceder às várias formas de violência não significa aceitar.
A violência estrutural é camuflada por sua conformidade às regras; é naturalizada por sua presença permanente na tessitura das relações sociais; é invisibilizada porque, ao contrário da violência aberta, não aparece como uma ruptura da normalidade. Em particular, a violência estrutural tem beneficiários, mas não tem necessariamente perpetradores particularizáveis.
A demanda do movimento feminista não pode ser pautada pela punição, fortalecimento das forças de segurança, do judiciário e do sistema prisional. Porque diante de um sistema prisional como o nosso, marcado pela desigualdade de classe e de raça, seria ilusório imaginar que a punição seria suficiente para acabar com o problema da violência. É preciso criar mecanismos culturais e sociais. É preciso avançar na desconstrução das relações desiguais do poder patriarcal.
Para isso, é fundamental a construção da autonomia das mulheres. É preciso criar condições para que as mulheres rompam com o ciclo da violência, contribuindo para que as mulheres a seu redor também o façam. É preciso fortalecer a ação coletiva feminista e garantir recursos e políticas adequadas para o atendimento, acolhimento e proteção às mulheres vítimas para que não sejam elas a serem punidas e retiradas de seus lares; urge com que os homens discutam, escutem nosso pleito e sejam também atores para a interrupção desse ciclo que muito se mantém pela conivência social masculina. Enfim, é preciso que o tema seja discutido amplamente como uma questão democrática de respeito e dignidade de cada uma de nós mulheres que temos cotidianamente nosso principal território, nosso corpo físico e nossa subjetividade, violado.
[1] Coronavírus: sobe o número de ligações para canal de denúncia de violência doméstica na quarentena
[2] O processo formativo realizado na Articulação de Mulheres Brasileiras foi sistematizado na forma de um documento interno com um marco teórico sobre a violência contra as mulheres. Parte da reflexão trazida neste texto vem dessa sistematização.
Pelo CFEMEA, na coluna Baderna Feminista