Hildete Pereira de Melo
Professora da Faculdade de Economia da UFF (Universidade Federal Fluminense)
Pensar na condição feminina significa refletir sobre o papel do trabalho doméstico na reprodução humana. Em quase todas as sociedades, o grosso da responsabilidade das tarefas diárias de cozinhar, limpar, atender as crianças e velhos recai sobre as mulheres. Estas atividades são chamadas de "trabalho doméstico" e podem ser acrescidas da produção de alimentos destinados a satisfazer as necessidades de uma família.
Numa perspectiva histórica, nas sociedades pré-industriais, era a FAMÍLIA que organizava estas atividades - construção da moradia, móveis, artigos domésticos, comida, roupas, além da reprodução social, gerando os novos membros da sociedade. Não havia uma separação entre as atividades produtivas e o cotidiano. Mulheres, homens e crianças se misturavam na produção cotidiana da vida.
Nos últimos duzentos anos, a sociedade industrial separou a produção dos bens (mercadorias) do âmbito familiar. As famílias passaram a unidades de consumo e essa separação trouxe conseqüências para os papéis femininos e masculinos:
- distanciamento social e espacial entre o cotidiano e as atividades mercantis dos homens e mulheres;
- a mulher fica responsável pela família, mas estas atividades não geram riquezas;
- a participação das mulheres nas atividades mercantis, fora do lar, gera uma nova desigualdade que é a dupla jornada de trabalho.
Segundo as Nações Unidas, se as tarefas domésticas fossem con-tabilizadas, sua contribuição seria de cerca de 40% do Produto Nacional Bruto dos países industrializados. Foi também estimado que as mulheres desses países trabalham, em média, 56 horas por semana nessas atividades.
Contudo, apesar do avanço do movimento de mulheres, a percepção da sociedade sobre o trabalho doméstico não se alterou. Sua realização permanece uma obrigação feminina. Este caráter especial fica explícito pela utilização de uma legislação específica para regulamentar suas funções. A legislação brasileira que organiza o mercado de trabalho - a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) - estabelece um modelo formal das relações assalariadas, separando atividades incluídas e excluídas do corpo da lei. Os trabalhadores domésticos são excluídos da CLT e regidos por uma legislação especial, que data apenas de 1972. Esta lei define apenas alguns direitos legais para estas(es) trabalhadoras(es). A Constituição de 1988 equiparou os trabalhadores rurais aos urbanos brasileiros, e às domésticas, foram estendidos outros direitos, mas sem o conjunto dos direitos trabalhistas. Um exemplo dos direitos que não tinham sido incorporados a esta legislação específica originária da Constituição de 1988: o seguro-desemprego e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Mesmo assim, em 2000, estes foram estendidos, opcionalmente, para os trabalhadores domésticos, constituindo claro desrespeito à luta que as organizações de trabalhadoras domésticas vinham travando desde a primeira regulamentação na década de 1970.
Como reagem as mulheres a essa "invisibilidade" do trabalho doméstico? O fortalecimento do movimento de mulheres nos últimos trinta anos tem questionado estes estereótipos sobre o papel feminino e abriu novas oportunidades na sociedade para as mulheres. Isto foi favorecido pelo acesso à educação que tanto provocou a incorporação de um maior contingente de mulheres no mercado de trabalho, como aumentou sua participação política na sociedade. Apesar de toda essa mobilização, a reivindicação feminista para colocar a realização e a divisão das tarefas domésticas na agenda política ainda não se concretizou. Esta demanda ainda não se transformou numa consigna política nem no plano internacional, nem no nacional.
Uma boa contribuição para este debate é o projeto pioneiro da Deputada Federal Luci Choinacki (PT/SC) que propõe uma espécie de "aposentadoria" para as donas de casa (PEC 385/01). Este projeto que na realidade é um tipo de renda mínima para as mulheres acima de 60 anos, que passaram suas vidas cuidando dos filhos e da casa e chegaram à velhice sem nenhuma outra fonte de renda. Pagar uma pensão para estas mulheres significa o reconhecimento da sociedade da importância das tarefas domésticas para a vida humana. O movimento feminista tem na discussão deste projeto uma ótima oportunidade para disseminar este debate na sociedade. Afinal, a dupla jornada de trabalho é uma luta que não conseguirá ser vitoriosa se mulheres e homens não acordarem na divisão das tarefas; não há lei ou decreto que obrigue o sexo masculino a dividir estas atividades conosco.
Não podemos perder nenhuma oportunidade de colocar este tema na pauta de nossas reivindicações e assim sonhar que outras relações sociais entre mulheres e homens poderão ser construídas na sociedade. O trabalho doméstico ainda é realizado predominantemente por mulheres e define o eterno lugar e o status inferior da mulher na sociedade. Essa discriminação remete ao tema da invisibilidade do trabalho das mulheres, que é a mais antiga questão levantada pelas feministas na segunda metade do século 20, no debate sobre a nova cidadania.