Welton Trindade
Presidente do Estruturação - Grupo Homossexual de Brasília.
Vice-presidente da Associação da Parada do Orgulho de Gays, Lésbicas
e Travestis de Brasília.
Nos últimos dias do ano, boa parte dos brasileiros ficou meio zonza com a notícia de que a cantora Cássia Eller havia morrido. Era (e ainda é) estranho conceber que todo aquele talento, que era muito bem temperado com atitude, simplesmente não vibrava. E já tão cedo.
Um querido amigo meu diz que tinha medo da Cássia Eller, tamanha era sua pose de comigo-ninguém-pode. "Parece que ela queria me bater!", diz ele de forma crível. Pensando bem, ela batia. E com força! Mas não em meu amigo, que é muito sensível e tampouco mereceria isso, mas na cara de uma sociedade hipócrita e desrespeitosa.
Afinal de contas, que história é essa de ela ser lésbica e dizer isso de forma natural, sem se envergonhar? Como ela tinha a ousadia de dizer na televisão que vivia um maravilhoso relacio-namento com outra mulher e que criavam um filho juntas? E mais, que a criança era feliz!? As pessoas preconceituosas não se conformavam com o fato dela considerar sua afetividade como algo... normal.
Além do grande talento musical, Cássia era admirada por gays e lésbicas pela atitude verdadeira em relação a sua sexualidade. É claro que não devem existir regras nem pressões na questão de assumir ou não a homossexualidade, mas é bom saber que uma pessoa com projeção nacional se colocou como lésbica, mostrando que a homossexualidade é uma expressão sexual tão válida, natural e bonita quanto qualquer outra.
Se, em vida, Cássia contribuiu para a nossa caminhada rumo ao reconhecimento e a uma vida plena, a sua morte não foi menos importante. Sim, está sendo uma troca difícil, mas mesmo em um instante tão ruim, a sua grandiosidade como pessoa continua a brilhar. Com a sua morte, o relacionamento de Cássia com a companheira Eugênia ganhou as principais manchetes da imprensa no início do ano. E junto a isso vieram dois fatos que, com certeza, causaram muita reflexão em quem, até agora, não aceitava a homossexualidade. Cássia ainda tinha muito a provocar. A vida conjunta de 14 anos de Cássia e Eugênia mostrou o quão profundo pode ser o amor entre duas pessoas do mesmo sexo. É claro que isso sempre existiu e existirá, mas um caso público como esse é importante porque dribla a cegueira voluntária e covarde das pessoas e contrapõe a imagem de efemeridade e desequilíbrio que tentam impor aos relacionamentos homossexuais. Muitos até devem ter se surpreendido, pois compararam esse caso com a vida de conhecidos ou a sua própria e verificaram que muitos relacionamentos héteros já não possuem tanta força.
O fato do Chicão, filho natural de Cássia, ter feito questão de ficar com sua outra mãe, como ele sempre diz, também foi um tapa na cara de indivíduos preconceituosos e, principalmente, conservadores religiosos. Entre os argumentos pífios e vazios que essas pessoas arrolam para combater a adoção e criação de um filho por pais gays ou mães lésbicas estão a provável instabilidade emocional da criança. Essa conseqüência, além de ser refutada veementemente pela Psicologia, nega o pilar que sustenta uma família, independente do número ou do sexo das pessoas: o amor.
A visibilidade que Cássia Eller conquistou está fazendo com que a opinião pública brasileira reveja seus pré-conceitos e se questione se realmente é humano e digno negar direitos fundamentais a gays e lésbicas. A discussão é tanta que o movimento homossexual brasileiro vê, neste primeiro trimestre, um momento propício para exigir a votação no Congresso Nacional do Projeto de Parceria Civil, que está há seis anos nos corredores da Casa por causa da oposição da bancada católica e evangélica.
Assim, Cássia, por sua força de mulher e lésbica, e sobretudo, humana, obrigado por ter contribuído de forma tão digna pela construção de uma sociedade mais igualitária em sua diversidade. Vamos continuar a lutar e a ser felizes!