Maria Isabel Baltar da Rocha
Pesquisadora do Núcleo de Estudos de População da Unicamp e Secretária Executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos (Rede Saúde).
Não nos surpreende a discussão na Câmara dos Deputados de mais uma proposição com uma postura contrária ao direito ao aborto, inclusive nas situações extremas de risco de vida da gestante e de gravidez decorrente de estupro, situações estas previstas na legislação brasileira.
Não nos surpreende que esse projeto de lei tenha sido apresentado por um parlamentar integrante do grupo católico do Congresso, porque esta iniciativa representa uma postura de reação aos avanços (parciais) que se vêm obtendo no campo dos direitos reprodutivos das mulheres no País. Avanços conseguidos mediante a criação de vários serviços que atendem ao aborto legal, a partir de 1989 e, mais recentemente, com a aplicação da Norma Técnica do Ministério da Saúde que prevê esse tipo de atendimento. Avanços também alcançados mediante autorizações judiciais para a interrupção da gestação em casos de anomalia fetal incompatível com a vida.
O projeto que ora se discute na Câmara, de Severino Cavalcanti, busca instituir o dia do nascituro, com o objetivo de divulgar a idéia da defesa do direito à vida desde o momento da concepção. Neste dia seriam adotadas medidas administrativas pelos Poderes Executivo e Legislativo visando aquela divulgação, de modo programado durante o ano, até a comemoração seguinte.
Por meio desse projeto de lei retomam-se idéias antigas. Idéias sem êxito, apresentadas em outros momentos políticos do Parlamento, por congressistas também identificados com o pensamento da hierarquia da Igreja. Olhando para a história do Congresso encontramos propostas semelhantes, negando o direito ao aborto, inclusive ao aborto previsto em lei: em 1949, Monsenhor Arruda Câmara buscava suprimir do Código Penal os dois permissivos legais referentes ao aborto; em 1986, Nilson Gibson procurava eliminar os referidos permissivos, restringindo ainda mais a possibilidade do abortamento, mediante a proibição de procedimentos e informações consideradas de estímulo a esta prática.
A questão reaparece com ênfase na Constituinte, em 1987 e 1988. Parlamentares adeptos de diferentes religiões tentaram incluir na Constituição uma emenda sobre o direito à vida desde o momento da concepção, porém acabaram sendo derrotados. Como também foi derrotada, na década de 90, durante o processo de Revisão Constitucional, uma proposta com esse mesmo teor, de Severino Cavalcanti: a PEC 25/95. Este deputado, com apoio de membros do grupo parlamentar católico, está no momento buscando sustar, até agora sem êxito, a Norma Técnica acima referida.
Diante da desaprovação dessas idéias no Congresso, não nos surpreende o conteúdo do projeto de lei sobre o dia do nascituro. É mais uma reação conservadora que possivelmente não será aprovada, como as demais propostas parlamentares de teor semelhante. Ela se chocará com alguns avanços já consolidados nesse campo no País, ela encontrará objeções de parlamentares sensíveis aos direitos humanos das mulheres e, por fim, ela se defrontará com a dura realidade da situação do aborto no Brasil: com a morte ou com as sequelas decorrentes do aborto inseguro, sobretudo das mulheres pobres.