Quase lá: A reforma do Código Penal: mais um projeto "engavetado"?

Silvia Pimentel
Professora de Direito da PUC/SP e coordenadora nacional do CLADEM-Brasil
Valéria Pandjiarjian
Advogada e pesquisadora, membro do CLADEM-Brasil e do Instituto para Promoção da Equidade (IPÊ)

No dia 8 de abril de 1999, a Comissão Revisora do Anteprojeto de Reforma da Parte Especial do Código Penal entregou o relatório final de seus trabalhos ao então Ministro da Justiça, Renan Calheiros, que deveria encaminhá-lo ao Congresso Nacional.

O anteprojeto inclui temas de extrema relevância para as mulheres, tais como: a) a ampliação dos permissivos legais para o abortamento; b) a transformação do Título “Dos Crimes contra os Costumes” em “Dos crimes contra a Dignidade Sexual”, evidenciando o fato de que nos crimes de natureza sexual importa mais a liberdade da pessoa no exercício de sua sexualidade, e não a moralidade social; c) a expulsão da figura da “mulher honesta” do Código Penal; d) a tipificação do assédio sexual, embora esse tema deva ser melhor tratado no âmbito preventivo do direito civil e trabalhista; e) a supressão do crime de adultério, que por décadas foi fator de sustentação da tese jurisprudencial da legítima defesa da honra.

Assim é que, dentro do processo democrático de intervenção política jurídico-criminal, podemos constatar que - senão de maneira integral e ideal - várias propostas feministas encontram-se contempladas no anteprojeto, inclusive, algumas constantes do documento “Um olhar feminista sobre a reforma do Código Penal: algumas reflexões e contribuições”, encaminhado à Comissão Revisora (resultante do “Seminário Traduzindo a Legislação com a Perspectiva de Gênero: um Diálogo entre as Operadoras do Direito”, RJ, Ago/98).

Durante os trabalhos de revisão do anteprojeto, vale lembrar, contamos com a fundamental participação da procuradora da República, Ela Wiecko de Castilho, única mulher integrante da Comissão, a qual cumpriu com firmeza o desafio de defender as reivindicações do movimento de mulheres. Entretanto, após um ano de conclusão dos trabalhos da Comissão Revisora, o Anteprojeto ainda não foi apresentado ao Congresso Nacional. O referido Anteprojeto, apesar de suas insuficiências, apresenta-se como pauta mínima que deve ser mantida, e se possível, aperfeiçoada, para encaminhamento ao Congresso Nacional.

Cabe, pois, ao movimento de mulheres, organizar-se no sentido de pressionar a retomada do Anteprojeto pelo Poder Executivo, para que seja aprimorado e encaminhado, na sua integralidade, ao Legislativo. Essa necessidade advém do conhecimento de significativas articulações por parte de pessoas e grupos de setores religiosos conservadores, com o fim de impedir toda e qualquer mudança que possa favorecer a ampliação da liberdade sexual e reprodutiva da mulher.

Ao Poder Executivo e Legislativo, cabe a responsabilidade de sanear a ordem jurídica brasileira, à luz das normas e princípios constitucionais, e, assim, cumprir com os compromissos assumidos pelo Estado Brasileiro perante a comunidade internacional, ao assinar as Declarações e Plataformas de Ação resultantes das principais Conferências Internacionais da ONU (Viena, 93; Cairo, 94; Beijing 95), bem como ao ratificar diversos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos.

Insistimos: urge o saneamento da ordem jurídica brasileira. Alertamos: a reforma da legislação penal segue sendo pauta da agenda feminista, e esperamos seja retomada como prioridade na agenda do governo brasileiro, sob pena de termos, em nossa história jurídico-política e social, mais um relevante anteprojeto “engavetado”.


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