Quase lá: Declaração de Helsinki: uma história de dignidade

Debora Diniz
Antropóloga e diretora da organização não-governamental Anis: Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
Dirce Guilhem
Enfermeira e diretora da organização não-governamental Anis

Em 1964, a Associação Médica Mundial promulgou o texto que viria a ser reconhecido como o documento ético mais importante para a regulamentação da pesquisa clínica envolvendo seres humanos, a Declaração de Helsinki. As denúncias dos crimes cometidos pelos médicos-cientistas engajados no nazismo haviam assombrado a humanidade e abalado definitivamente o idealismo romântico que até então existia em torno da prática científica. A força e a legitimidade ética da Declaração de Helsinki são, ainda hoje, valores incontestáveis para todos os países signatários do documento. Nestes quase quarenta anos de existência, o texto original sofreu pequenas modificações, a maioria de pouca importância, que não foram capazes de ameaçar seus pressupostos humanistas. Essa relativa solidez da Declaração, entretanto, vem sendo duramente contestada desde que a delegação da Associação Médica dos Estados Unidos propôs, em 1997, uma transformação radical na estrutura do documento.

O cerne da controvérsia em torno da Declaração reside na proposta de substituição do artigo que garante o acesso a tratamentos consolidados para as pessoas que se submetem a pesquisas clínicas. Isso significa que, em casos de testagem de novos tratamentos, como ocorre com a Aids, por exemplo, os ensaios clínicos somente poderão ser conduzidos se for assegurado a todos os participantes o tratamento consolidado e reconhecido como eficaz para a doença. Sendo assim, experimentos que desconsideram a existência do AZT, como ocorreu em pesquisas clínicas realizadas com mulheres gestantes em países africanos e asiáticos, às quais não era oferecido o medicamento, deveriam ser considerados anti-éticos, cabendo aos pesquisadores uma série de sanções.

Mas, ao contrário deste universalismo que dignifica igualmente todas as pessoas, a proposta de alteração da Declaração sugere que a referência ética não deva ser o tratamento reconhecido pela medicina como eficaz, mas o tratamento disponível por cada sociedade onde se realiza a pesquisa. Ou seja, para as mulheres africanas que não dispõem de quaisquer tratamentos para a infecção pelo vírus HIV, o critério ético de julgamento será o princípio absurdo do "vale tudo", pois a carência sanitária extrema faz com que qualquer procedimento seja superior ao nada disponível. O resultado perverso desta proposta de mudança é que teremos diferentes protocolos éticos de pesquisa, a depender do fato de as mulheres portadoras do HIV serem norte-americanas ou ugandenses. Para as primeiras, experimentos que desconsiderem a eficácia do AZT não serão sequer aprovados pelos comitês nacionais de ética, ao contrário dos testes indignos que foram realizados nos últimos anos com as africanas, em nome da pobreza, do abandono e da falta de perspectiva sanitária em seus países.

O fato é que esta aparente diferença semântica entre tratamento consolidado e tratamento disponível encobre o real problema em discussão. O que está por trás desta questão não é apenas o avanço da ciência, mas principalmente o falso humanismo com que se justifica a proposta de mudança. Ao contrário dos médicos nazistas que publicamente ignoravam os judeus, os ciganos, os deficientes físicos e mentais, e por isso dispunham de seus corpos como matéria inerte de pesquisa, os grandes laboratórios utilizam-se de uma retórica sedutora e que provoca a simpatia dos mais variados segmentos mundiais. Para os defensores da proposta de modificação da Declaração de Helsinki, o que justifica este retrocesso ético não é o desprezo pelas mulheres negras e pobres da África, mas sim uma alegada solidariedade humanista que justifica que os grandes laboratórios saiam à procura de tratamentos mais adequados à realidade de cada país. Para os ricos norte-americanos, o tratamento consolidado. Para as pobres mulheres ugandenses, o tratamento ainda a ser descoberto, nem que isso custe as suas vidas ou a orfandade de seus filhos. Felizmente, a humanidade não necessita da caridade ou tampouco do humanismo disfarçado dos grandes laboratórios para enfrentar seus dilemas. O que precisamos é, acima de tudo, de coragem para reconhecer que o verdadeiro problema não está na carência dos países pobres: está no excesso no qual os ricos habitantes do Norte descansam sabendo que o avanço científico não depende da concessão de suas vidas.

No dia 8 de fevereiro realizou-se em Brasília o Fórum Nacional Declaração de Helsinki: Perspectivas da Sociedade Brasileira. Com a participação de diversas entidades ligadas aos meios médicos e aos direitos humanos, o Fórum produziu um documento com a posição contrária à reformulação da Declaração. O documento, chamado de "Carta de Brasília", está sendo encaminhado à Associação Médica Brasileira como reivindicação da sociedade civil para que se defenda essa posição nos espaços de discussão da Associação Médica Mundial, destinados a estudar a revisão da Declaração de Helsinki. A discussão final e a decisão sobre as possíveis alterações na Declaração serão decididas nos dias 3 e 4 de outubro, em Edimburgo, na Escócia.


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