Esta edição Extra do Jornal FÊMEA tem o objetivo de fornecer subsídios às discussões da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Contém uma análise da execução orçamentária de 2004, de alguns programas estratégicos para a implementação de políticas públicas que visem o combate às desigualdades de gênero e raça. O CFEMEA vem trabalhando a questão do planejamento e orçamento da União com a convicção de que é fundamental para as mulheres a luta pela destinação de recursos que garantam a efetivação de políticas públicas que assegurem os direitos conquistados e a igualdade de gênero. O momento da Conferência é privilegiado para promovermos esta discussão.
Na área orçamentária continuam as restrições de recursos para a aplicação em políticas que gerem desenvolvimento econômico e social sustentável. Enquanto não houver um questionamento das políticas de ajuste fiscal, voltadas para a construção de superávit destinado ao pagamento das dívidas interna e externa não se terá uma aplicação de recursos orçamentários que possibilite o enfrentamento das desigualdades sociais existentes no Brasil. É fundamental que a política econômica siga na mesma direção da política social. Se uma concentrar a riqueza e a outra procurar combater a pobreza, mediante políticas específicas, compensatórias e focalizadas, não teremos um resultado que opere mudanças substanciais na qualidade de vida das mulheres e dos homens que constroem este país. Cada vez mais a realidade brasileira exige programas universais, capazes de contemplar a diversidade existente entre homens e mulheres, entre brancos e negros, jovens e idosos e rurais e urbanos, e políticas afirmativas para superar as desigualdades decorrentes do racismo e do sexismo.
A análise apresentada refere-se a 27 programas da Lei Orçamentária de 2004, vinculados ao atendimento à mulher e/ou à questão de gênero1. São programas selecionados pela possibilidade estratégica de modificação do cotidiano das mulheres e das relações de gênero. As dotações autorizadas (aprovadas na LOA) dos programas e ações selecionados totalizam cerca de R$ 16 bilhões. Deste total já foram pagos R$ 5,9 bilhões, representando 36% de execução no primeiro semestre. Além desse montante, R$ 2,8 bilhões encontram-se em processo de execução (estão empenhados, mas ainda não foram pagos) . Ou seja, 54% do valor das dotações orçamentárias já estão comprometidas, conforme tabela a seguir.
Execução Orçamentária 2004 dos Programas vinculados ao Atendimento à Mulher e/ou à Questão de Gênero
Cod Programa |
Programas Selecionados |
Autorizado (R$) |
Empenhado (R$) |
Liquidado (R$) |
Pagos (R$) |
Pagos/ Autorizados (%) |
Empenhado/ Autorizado (%) |
|
1 | 73 | Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes | 36.470.351 | 24.228.826 | 11.321.070 | 11.170.870 | 30 | 66 |
2 | 153 | Combate à Violência Contra as Mulheres | 10.759.995 | 3.359.108 | 2.800.326 | 2.800.326 | 26 | 31 |
3 | 699 | Assistência Jurídica Integral e Gratuita | 13.586.940 | 8.793.547 | 4.534.395 | 4.508.082 | 33 | 65 |
4 | 6021 | Atenção Integral à Saúde da Mulher | 7.270.000 | 160.000 | - | - | 0 | 2 |
5 | 1216 | Atenção Especializada em Saúde | 21.683.994 | 9.816.083 | 4.407.414 | 4.401.962 | 20 | 45 |
6 | 1214 | Atenção Básica em Saúde | 4.781.232.480 | 2.648.005.493 | 1.973.737.801 | 1.969.167.345 | 41 | 55 |
7 | 1306 | Vigilância, Prevenção e Atenção em HIV/Aids e Outras DSTs | 762.080.009 | 635.692.933 | 284.775.421 | 281.723.513 | 37 | 83 |
8 | 1096 | Avaliação de Políticas Sociais do Governo Federal | 12.000.000 | - | - | - | 0 | 0 |
9 | 1331 | Proteção Social ao Adulto em Situação de Vulnerabilidade | 7.674.700 | 757.500 | - | - | 0 | 10 |
10 | 1215 | Alimentação Saudável | 8.689.849 | 6.057.550 | 1.607.550 | 1.607.550 | 19 | 70 |
11 | 1093 | Atendimento Integral à Saúde | 123.931.000 | 60.125.514 | 12.971.256 | 12.341.256 | 10 | 49 |
12 | 1282 | Proteção Social à Pessoa Idosa (ações selecionadas) | 51.858.611 | 22.618.701 | 13.960.655 | 13.960.655 | 27 | 44 |
13 | 1335 | Transferência de Renda com Condicionalidades | 5.360.453.080 | 2.798.563.091 | 2.689.242.924 | 2.688.346.194 | 50 | 52 |
14 | 1049 | Acesso à Alimentação | 228.138.449 | 102.115.709 | 39.907.572 | 35.065.150 | 15 | 45 |
15 | 1152 | Gestão da Política de Promoção da Igualdade Racial | 18.761.882 | 6.443.885 | 2.501.987 | 2.453.499 | 13 | 34 |
16 | 1068 | Gestão da Política de Gênero | 5.239.998 | 1.656.840 | 948.556 | 948.566 | 18 | 32 |
17 | 1087 | Igualdade de Gênero nas Relações de Trabalho | 3.810.000 | 700.454 | 400.454 | 400.454 | 11 | 18 |
18 | 101 | Qualificação Social e Profissional | 89.203.999 | 54.297.014 | 2.695.580 | 2.695.581 | 3 | 61 |
19 | 99 | Integração das Políticas Públicas de Emprego, Trabalho e Renda (ações selecionadas) | 8.131.402 | 8.131.402 | 3.436.560 | 3.436.560 | 42 | 100 |
20 | 1329 | Primeiro Emprego | 189.099.997 | 1.808.180 | 439.653 | 428.345 | 0 | 1 |
21 | 351 | Agricultura Familiar - PRONAF (ações selecionadas) | 2.114.157.604 | 1.965.592.533 | 572.874.151 | 572.874.150 | 27 | 93 |
22 | 102 | Rede de Proteção ao Trabalho | 1.360.000 | 923.633 | 532.230 | 491.593 | 36 | 68 |
23 | 1060 | Brasil Alfabetizado | 216.105.579 | 7.853.592 | 3.904.776 | 3.903.965 | 2 | 4 |
24 | 83 | Previdência Social Básica (ações selecionadas) | 1.754.950.841 | 161.356.393 | 161.003.526 | 161.001.643 | 9 | 9 |
25 | 1079 | Proteção Previdenciária | 4.999.996 | 2.495.655 | 159.047 | 154.327 | 3 | 50 |
26 | 70 | Proteção Social à Infância, Adolescência e Juventude | 277.740.387 | 150.453.208 | 103.544.695 | 103.544.695 | 37 | 54 |
27 | 1065 | Educação na Primeira Infância | 4.239.633 | 1.254.155 | 1.174.155 | 1.174.155 | 28 | 30 |
Total | 16.113.900.776 | 8.683.260.999 | 5.892.881.754 | 5.878.600.425 | 37 | 54 |
Fonte: Banco dee Dados da Execução Orçamentária da União da Consultoria de Orçamento da Câmara Federal (atualização 02/07/2004).
Parte desse desempenho positivo, relativamente a outros exercícios, deve-se à legislação eleitoral que prevê a suspensão das transferências voluntárias da União para os municípios, três meses antes das eleições, levando a uma aceleração de assinaturas de convênios no período que antecede esses 90 dias. A restrição não vale para convênios pré-existentes, em andamento e com cronograma já estabelecido. A lei eleitoral não impede que as prefeituras continuem fazendo pleitos. Os pedidos de recursos para novos projetos podem ser apresentados, mas, se aprovados, só serão recebidos depois das eleições municipais de outubro. O objetivo é evitar que o governo federal beneficie prefeitos em campanha pela reeleição ou candidatos de sua preferência.
Os programas com maiores índices de execução são "Transferências de Renda com Condicionalidades" - o Bolsa Família, que já realizou cerca de 50% das despesas previstas, seguido do "Integração das Políticas Públicas de Emprego", que se refere à ação "pagamento do Seguro Desemprego ao Trabalhador Doméstico" com 42% de execução. O Programa Bolsa Família merece uma avaliação crítica mais apurada da própria estratégia de combate à pobreza, bem como do quanto as mulheres têm sido beneficiadas, e também sobrecarregadas por elas, pois é sabido que para receber este benefício, elas têm de arcar com o ônus de cumprir com as condicionalidades exigidas pelo Programa.
Já o pagamento do seguro desemprego para as domésticas, se por um lado representa um avanço receber este benefício, por outro, sua execução elevada pode refletir que é grande a perda de trabalho no seio da categoria.
No entanto, sete programas não foram executados ou apresentam baixíssimos níveis de execução (menos de 10%). Dentre eles destaca-se o Programa "Atenção Integral à Saúde da Mulher", cuja dotação autorizada é de R$ 7,270 milhões e que, em seis meses, apresentou apenas um empenho no valor de R$ 160 mil, que ainda não foi pago. É bom lembrar que cerca de 39% das dotações deste programa são vinculadas às transferências a municípios, que só poderão ser retomadas após o período eleitoral, comprometendo a execução total deste programa. Tal fato não significa que ações relativas ao objetivo do programa que é "Reduzir a morbimortalidade da mulher por complicações na gravidez, parto, puerpério e outros agravos da condição feminina, por intermédio do atendimento ao pré-natal, de políticas de planejamento familiar e de promoção de estudos sobre a saúde da mulher" não estejam sendo desenvolvidas por meio de outros programas, mas que não tiveram reflexo orçamentário, até o momento, neste programa.
Outro programa que se quer destacar, por também ser uma ação estratégica para nós mulheres e cuja temática vem merecendo a atenção dos movimentos de mulheres é o programa "Combate à Violência Contra a Mulher" que tem, a cada ano, alcançado maior volume de recursos. Em 2000 foram gastos R$ 1, 1 milhões, em 2003 foram pagos cerca de R$ 3,5 milhões, ou seja, um crescimento nominal de quase 220% neste período. No período aqui analisado foram pagos R$ 2,8 milhões e empenhados R$ 3,4 milhões, podendo-se prever que a execução de 2004 deve, mais uma vez, superar o volume executado nos anos anteriores.
Da dotação de R$ 3,8 milhões destinados ao Programa "Igualdade de Gênero nas Relações de Trabalho" apenas foram executadas 11%, ou seja, cerca de R$ 400 mil com a ação "Capacitação de Mulheres Gestoras nos Setores Produtivos Rural e Urbano". Das dotações destinadas à transferência aos municípios, restam ainda cerca de R$ 525 mil que só poderão ser utilizados após as eleições de outubro. As ações previstas neste programa são bastante estratégicas dada a necessidade da administração pública adquirir competência no desenvolvimento de enfrentamento da super-exploração da pobreza e das injustiças que pesam sobre as mulheres. Entre as inovações previstas neste Programa estão o apoio a creches, lavanderias e restaurantes comunitários. Estes são equipamentos essenciais para a autonomia das mulheres, na medida em que reduzem a carga da dupla jornada e lhes permite estar em melhores condições no mercado de trabalho. Por isto, é fundamental que se lute por um desempenho melhor deste programa, cuja execução, nestes primeiros seis meses do ano foi de apenas 18%.
O Programa "Gestão da Política de Gênero" deve ser pouco afetado pela legislação eleitoral, pois menos de 10% dos recursos estão vinculados a transferências aos municípios. Várias ações estão sendo executadas. A ação com maior nível de execução é " Apoio a Conselhos e Organismos Governamentais de Promoção dos Direitos da Mulher" onde já foram pagos 42%. Certamente em função da realização da Conferência de Políticas para as Mulheres já foram empenhados 50% dos recursos destinados à "Promoção de eventos de Políticas para as Mulheres".
No sentido de dar cumprimento ao objetivo do Programa de "Coordenar o planejamento e a formulação de políticas setoriais e a avaliação e controle dos programas na área de igualdade de gênero"2 a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres também deu início à execução de duas importantes ações: "Estudos e Pesquisas sobre Relações de Gênero e Situação das Mulheres" e "Implantação de Sistema de Informações sobre a situação das Mulheres". Outra importante ação, ainda não iniciada do ponto de vista orçamentário, é a "Capacitação de Servidores Públicos Federais em Processo de Qualificação e Requalificação".
É muito baixo o nível de competência instalado na administração pública para lidar com as desigualdades de gênero, promovendo políticas públicas para as mulheres. Definitivamente, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, sozinha, por mais qualificada que possa vir a estar, não dará conta deste desafio. Este é um problema que tem de ser enfrentado por todo o governo e, certamente, com muito mais recursos do que os hoje autorizados para a execução deste Programa. É vital o envolvimento de todos os ministérios. Neste sentido, ganha relevância a ação de capacitação de servidores, referida acima, e preocupa o fato de que nenhum gasto foi realizado até o momento. Capacitar os servidores com uma perspectiva de gênero é imprescindível para fazer avançar as políticas públicas que promovam a igualdade.
O programa "Gestão da Política de Igualdade Racial", cujo objetivo é "Coordenar o planejamento e a formulação de políticas setoriais e a avaliação e controle dos programas na área de promoção da igualdade racial" dispõe de uma dotação autorizada de R$ 18,7 milhões. Até 02 de julho foram pagos R$ 2,5 milhões, ou seja, apenas 13%, mas o processo de execução já teve início em cerca de 34% dos recursos que se encontram empenhados.
A ação "Gestão e Administração do Programa" é a responsável por cerca de 76% do total de despesas pagas.
O atendimento às Comunidades Quilombolas e o fomento ao Desenvolvimento local para Comunidades Remanescentes de Quilombos são as ações finalísticas que apresentam maiores volumes de recursos empenhados, cada uma com cerca de R$ 1,1 milhões.
Outro destaque, em termos de execução, por ser estratégico, é o Programa "Agricultura Familiar-PRONAF" , que em termos do Orçamento da União já realizou pagamentos da ordem de R$ 574 milhões e empenhou cerca de 93% da dotação autorizada.
Apesar de mostrar este desempenho, no que se refere ao acesso ao crédito, cujos recursos não constam deste montante, o PRONAF ainda tem muito para ser aperfeiçoado. Segundo dados apresentados por Rosangela Piovesan, representante do Movimento de Mulheres Camponesas, no Seminário da Comissão sobre Feminização da Pobreza, apenas 470 mulheres foram contempladas pela linha de crédito do Programa. Segundo ela isto se deve aos critérios e procedimentos burocráticos, ainda repletos de preconceitos e "machismos", que dificultam o acesso das mulheres aos recursos. Este resultado se torna ainda mais grave se for considerado que existe uma linha específica para contemplar as mulheres - o PRONAF/Mulher.
O que ocorre com o PRONAF leva a refletir sobre a importância de se conhecer, com profundidade, as propostas contidas nos programas que compõem o Plano Plurianual (PPA 2004-2007) e como estão sendo executadas. Não basta saber se gastou ou não, importa, também, saber como gastou e com o que gastou. O monitoramento dos gastos públicos é cada vez mais um imperativo para o movimento de mulheres, na luta pela efetivação de direitos por intermédio de políticas públicas eficazes no combate às desigualdades.
Os efeitos das políticas de ajuste fiscal sobre o orçamento da União são extremamente perversos, na medida em que uma parcela significativa dos recursos públicos vem sendo destinada à produção de superávit, ao invés de orientarem-se à promoção da justiça social e da igualdade.
Superávit Primário do Governo Central em 2004*
Período | Superávit Mensal (R$) |
Superávit Acumulado (R$) |
% do PIB |
Janeiro | 7.112.326.556,58 | 7.112.326.556,58 | 5,28% |
Fevereiro | 4.301.420.438,14 | 11.413.746.994,73 | 4,36% |
Março | 6.219.176.707,68 | 17.632.923.702,40 | 4,63% |
Abril | 7.518.864.232,96 | 25.151.787.935,37 | 4,92% |
Maio | 4.195.641.633,00 | 29.347.429.568,37 | 4,50% |
(*) Tesouro Nacional, Previdência Social e Banco Central. Fonte: STN - Resultado do Tesouro Nacional. Elaboração: INESC.
Considerando-se apenas os recursos destinados à promoção das políticas sociais para as mulheres, observa-se um desempenho positivo do ponto de vista orçamentário no conjunto dos programas selecionados, neste primeiro semestre, ao contrário do que acontecia em anos anteriores. Entretanto, é preciso lembrar que 30% do total de programas deste universo, ainda apresentam execução zero ou baixíssima. Se o ritmo de execução não for acelerado nas dotações que não estejam sujeitas às restrições da legislação eleitoral, como transferências a estados e ao DF, transferências à Instituições Privadas e recursos destinados à Aplicação Direta, não alcançaremos os resultados desejados. Vale lembrar que os recursos já repassados aos municípios não sofrerão grandes acréscimos, uma vez que novos repasses só poderão ser feitos após as eleições, tendo apenas um mês para a sua execução.
Para isso, é fundamental a pressão dos movimentos de mulheres e da sociedade civil organizada sobre os Poderes Executivo e Legislativo, visando o fim das políticas de ajuste fiscal e a efetiva aplicação dos recursos orçamentários na busca de atingir o desafio proposto no PPA 2004/2007: PROMOVER A REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES DE GÊNERO, COM ÊNFASE NA VALORIZAÇÃO DAS DIFERENTES IDENTIDADES.
A I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres não pode deixar de considerar diretrizes específicas sobre a questão do planejamento governamental e do orçamento da União. São elas:
- Garantir a efetiva participação da sociedade civil organizada (iniciada com a construção do PPA 2004-2007) em todo o processo orçamentário da União, por meio da criação de canais permanentes e da disponibilização de informações simplificadas.
- Produzir, por intermédio das instituições públicas de estudo e pesquisa, informações e dados desagregados por sexo, faixa etária, raça/etnia, e outros, viabilizando o desenvolvimento de indicadores e de índices periódicos que possibilitem avaliar as desigualdades de gênero, sócio-econômicas, étnico/raciais, geracional, urbano/rural e regional.
(1) Que atendam exclusivamente a mulher; cuja maioria da clientela atendida é mulher; que apresentam definição formal/legal da participação da mulher ou recorte de gênero no programa ou ação; tenham relevância na alteração do cotidiano da mulher.
(2) PPA 2004/2007