Quase lá: Execução das políticas públicas ainda é insuficiente para garantia de direitos

Baixa execução de recursos orçamentários e falhas na estratégia de implementação das ações atrasam o alcance de resultados práticos

Apesar do aumento superior a 1000% no volume de recursos federais para a melhoria das condições de vida das mulheres brasileiras entre 2002 e 2013, na prática os resultados das ações e políticas voltadas à garantia de direitos femininos ainda avançam lentamente e, em muitos casos, estão aquém das reais necessidades para garantir a independência econômica, a redução das desigualdades de gênero e a proteção contra a violência.

Nesses 12 anos, o CFEMEA tem monitorado a execução do Orçamento Mulher para avaliar em que medida a aplicação de recursos se traduz em melhor qualidade de vida para mulheres. O objetivo é garantir subsídios à atuação do movimento feminista junto ao Congresso Nacional e ao Poder Executivo. O trabalho acompanha desde a dotação inicial, passando pela autorização dos gastos, empenho e liquidação até o efetivo pagamento. Nos últimos anos, esse acompanhamento tem evidenciado dois problemas: a baixa execução dos gastos públicos em algumas ações estratégicas e a postergação de um volume cada vez maior de pagamentos.

Para se ter ideia, do total autorizado de R$ 171 bilhões em 2013 para o Orçamento Mulher, foram empenhados - ou seja, comprometidos com a realização de despesas - R$ 154 bilhões, o que corresponde a 90,1%. Mas só foram efetivamente pagos 67,5%. Isso significa que cerca de R$ 37 bilhões (ou seja, 24%) dos recursos empenhados em 2013 tiveram seu efetivo pagamento adiado para os anos seguintes. Essa prática, segundo o CFEMEA, tem se tornado recorrente nos últimos anos.

Além das questões orçamentárias, há outros fatores que também interferem no resultado prático das políticas voltadas às mulheres. “Se esses 1000% de aumento de recursos não se refletem em 1000% de melhora na vida das mulheres brasileiras, fica evidente a insuficiência na estratégia de implementação dessas ações e programas”, avalia Guacira Cesar de Oliveira, diretora do CFEMEA. “As falhas ocorrem desde a articulação entre os três entes federativos até a falta de orientação e qualificação dos serviços para prestar um atendimento mais resolutivo, seja porque estão desequipados, ou porque seus servidores não foram capacitados para aquele trabalho, ou porque falta integração com outros setores, entre outras explicações possíveis”, detalha.

Essa lacuna entre destinação de recursos e resultados efetivos pode ser ilustrada por três exemplos: a ampliação de vagas e construção de creches públicas para crianças até 48 meses de idade, a redução da mortalidade materna e o combate à violência contra a mulher.

CRECHES - Uma das ações mais importantes para a promoção da autonomia econômica das mulheres e da igualdade de direitos com os homens é o investimento na educação infantil e, em especial, a ampliação de vagas em creches, por que reduz a dupla jornada de trabalho das mulheres, favorece a sua busca por autonomia econômica, inclusive para sua inserção no mercado de trabalho. O governo federal, a partir de 2012, lançou algumas iniciativas neste sentido com o Programa Brasil Carinhoso.

Uma delas foi a antecipação do repasse para unidades públicas de educação infantil que ficaram fora do Censo Escolar, e que por isso não poderiam receber recursos do FUNDEB. A intenção era estimular a ampliação do número de vagas na educação infantil. No entanto, a execução orçamentária dessa ação tem se mantido muito abaixo do planejado. Em 2012, dos R$ 265,7 milhões autorizados, apenas R$ 47,8 milhões foram empenhados (18%), e somente R$ 2,1 milhões foram efetivamente pagos. Em 2013, o desempenho orçamentário é ainda pior, pois da dotação prevista de R$ 333,3 milhões foram empenhados somente 13,3% e pagos 6,2%. A Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2013 previa inicialmente atender a 2,5 mil escolas, o que significa que, proporcionalmente à dotação inicial, apenas 282 escolas foram efetivamente atendidas.

Quando se fala em implantação de novas creches, a baixa execução novamente aparece como um problema. Essa ação teve no orçamento de 2013 previsão de quase R$ 2 bilhões, e 100% desse valor foi empenhado, mas apenas R$ 554 milhões (27,9%) foram liquidados e R$ 220,3 milhões (11,1%), foram efetivamente pagos. Entre 2011 e 2013, foram contratadas 4.741 empreendimentos, com despesas totais de R$ 5,9 bilhões. Mas apenas 14% das obras contratadas em 2011 e 1% das obras contratadas em 2012 foram concluídas.

As dificuldades para cumprimento dos prazos levaram o governo federal a adotar uma nova estratégia para o biênio 2013-2014, no intuito de agilizar o processo. De acordo com o Ministério da Educação, no biênio 2013 e 2014, o governo apoiou a construção de 1.904 creches em 937 municípios e pretende chegar ao final de 2014 com 6 mil unidades implantadas. “Mais importante do que a quantidade de unidades é saber quantas vagas elas efetivamente vão gerar, quantas crianças serão atendidas em turno integral - que é o mínimo necessário para garantir às mães condições de se estabelecerem no mercado de trabalho”, argumenta Guacira. “Essa é uma ação em que tem havido algum avanço recente, mas cujas metas e resultados ainda não estão claros.”

MORTALIDADE MATERNA - A mortalidade materna é outro indicador muito claro da baixa qualidade do gasto com a saúde das mulheres. No Brasil, os índices estão caindo mais lentamente nos últimos anos, o que afasta o país do cumprimento da meta dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) de reduzir em 75% a taxa de mortalidade materna até 2015. Segundo o 5º Relatório Nacional de Acompanhamento dos ODM no Brasil, lançado em maio de 2014, o Brasil foi, entre 75 países analisados, o quarto mais lento na redução de óbitos maternos entre 2000 e 2013. Nesse período, a queda foi de 1,7% ao ano, bem abaixo da média dos 75 países, que foi de 3,1% ao ano.

A Rede Cegonha, iniciativa voltada à saúde das gestantes e à redução da mortalidade materna, teve previsão de R$ 957,4 milhões em 2013, dos quais foram empenhados R$ 779,9 milhões, ou seja, 81,5%, e efetivamente pagos 73,9%. O balanço realizado pelo CFEMEA mostra que os recursos de custeio foram todos executados no próprio ano de 2013. No entanto, os recursos destinados aos investimentos para a estruturação da rede apresentaram nível de execução pífio, com apenas 11,% empenhados e nada efetivamente pago em 2013.

“Também no caso da mortalidade materna, parece não haver objetivos muito claros. O governo coloca como meta ampliar o atendimento às gestantes, mas não se compromete com uma meta de redução das mortes maternas ano a ano, nem formula um indicador claro que possa ser utilizado para esse monitoramento. Um outro fator que certamente impede a redução das mortes - evitáveis em sua quase totalidade, é a ilegalidade do abortamento, problema gravíssimo que o fundamentalismo religioso entranhado no sistema político e nos serviços públicos impede que seja enfrentado”, critica a diretora do CFEMEA.

De acordo com o Painel de Monitoramento da Mortalidade Materna do Ministério da Saúde, o país registrou 1.438 óbitos maternos em 2013. Isso significa um índice de 64 óbitos maternos para cada 100 mil nascidos vivos, uma redução de 55% em relação ao índice de 1990. Para cumprir a meta do ODM, no entanto, essa taxa deveria chegar a 35 mortes maternas por 100 mil nascidos vivos até o final de 2015, o que não ocorrerá.

VIOLÊNCIA - As ações de enfrentamento da violência contra as mulheres, quando comparadas ao índice de feminicídios, também ilustram como o volume e a qualidade do gasto governamental nos últimos anos têm atrasado a efetivação da garantia de direitos e a proteção das mulheres. Pesquisa do Instituto Sangari revela que, só na última década, 43,5 mil mulheres foram assassinadas no Brasil. E, ainda mais preocupante, a trajetória desses números é crescente, pois nos últimos 30 anos o número de mulheres assassinadas por ano passou de 1.353 para 4.297, aumentando em 217,6%.

A execução orçamentária das ações de combate à violência contra a mulher mostra que, dos R$ 720,4 milhões previstos para 2013, só foram empenhados R$ 312 milhões (43,3%), liquidados R$ 91 milhões e pagos apenas R$ 86,7 milhões (12%). Paralelamente, até 3 de maio deste ano, foram pagos R$ 43,3 milhões a titulo de “restos a pagar” de exercícios anteriores. Ou seja: os recursos alocados são minguados, o desempenho da execução orçamentária é crítico e ainda parte significativa é transferida para ser executada nos próximos exercícios.

Em março de 2013, o governo federal lançou o Programa Mulher: Viver sem Violência, que abrange ações como a implantação das Casas da Mulher Brasileira - equipamentos públicos onde se concentrarão os principais serviços especializados e multidisciplinares de atendimento às mulheres em situação de violência, entre outras medidas. Apesar de a demanda dos movimentos e dos compromissos do PNPM priorizarem o fortalecimento da rede de atendimento às mulheres, muito mais do que a concentração de serviços em um espaço desse tipo, o fato é que o PLOA 2014 apresentou para esta ação uma previsão de investimento de R$ 28,1 milhões, para sete unidades da federação. Até o momento, entretanto, apenas R$ 9,8 milhões foram efetivamente executados pelo governo federal. Segundo a SPM, ainda não houve conclusão de nenhuma unidade da Casa da Mulher Brasileira. Estão em obras as unidades de Campo Grande (MS), Brasília (DF), São Paulo, Salvador (BA) e Vitória (ES). E já foram contratadas as obras em Curitiba (PR), Fortaleza (CE) e São Luís (MA).

“No caso específico da violência, além da baixa execução orçamentária, há também o despreparo dos serviços e a falta de articulação federativa e intersetorial”, analisa Guacira Oliveira. “Não adianta o governo federal investir em delegacias especializadas, se a política de segurança pública nos estados não prioriza esse combate, se as polícias estaduais estão sucateadas e não são treinadas para atender à mulher vítima de violência ou de executar as medidas protetivas, por exemplo. O que ainda vemos diariamente é que muitas mulheres denunciam a violência mas não são protegidas e acabam sendo vítimas de assassinatos”, diz.

O que estes três exemplos - as creches, a mortalidade materna e os feminicídios - revelam, na visão da diretora do CFEMEA, é que a incidência do movimento feminista precisa se voltar agora para uma necessária correção de rumos. “Isso significa que nossa ação tem que estar muito fortemente territorializada, enfrentando os obstáculos nos municípios e nos estados onde a ação do Estado se efetiva. A luta não deve se restringir a reivindicar maior volume de investimentos, mas também a radicalizar o monitoramento sobre os compromissos assumidos, cobrando seu cumprimento e denunciando quando isso não acontecer. O que implica cobrar mais clareza das metas e indicadores de resultados e maior transparência na divulgação da execução orçamentária dos estados, municípios e governo federal”, explica. “O ano de 2015 será decisivo para isso, já que será o início da elaboração de um novo Plano Plurianual, que vai guiar os orçamentos dos próximos quatro anos”.


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