Alessandra Guerra
Comunicadora, integrante do grupo de percussão feminista cearense Tambores de Safo e coordenadora da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB)
Era um dia de luta, último dia de jogo da Copa das Confederações, no Estádio do Castelão, em Fortaleza. A manifestação foi marcada para protestar contra os gastos absurdos em detrimento de tanta miséria que demarca o entorno do estádio.
Algumas de nós, das Tambores de Safo, com outr@s parceir@s, resolvemos que nossa resistência seria com arte e por isso levamos nossos instrumentos musicais. No meio da injustificada violência policial, das bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha, nossa música era estímulo para não recuar, era a poesia do propósito.
Foi então que a polícia apareceu sorrateira por um caminho que não esperávamos. Não paramos de tocar, foi com o toque do agogô que mostramos para a polícia que nossos instrumentos não representavam ameaça alguma. A música parou quando, encurralad@s, jogamos os instrumentos no chão como se fossem armas, para então sermos covardemente violentad@s.
Depois de machucad@s - com socos, pontapés, jatos de spray de pimenta e violentos puxões de cabelo -, quatro pessoas do nosso grupo foram presas. Lila M, vocalista das Tambores de Safo, lésbica e negra, teve um dread arrancado e foi a única entre @s mais de cinquenta pres@s que esteve algemada. No meio da revolta e tristeza, nossa música nos fortaleceu:
“Tá caindo fulô, ta caindo fulô / Cai do Céu lá na terra / Ê tá caindo fulô / Lá na rua de baixo / Lá no fundo da horta / Se a polícia me prende ô lê lê / A rainha me solta”
Nós, feministas, sempre protestamos. E quando vimos as multidões nas ruas, trazendo pautas que nos contemplavam, muitas de nós nos extasiamos com a possibilidade de que o poder da pressão e resistência popular traria uma mudança profunda na sociedade. Não estávamos mais sozinhas, éramos uma multidão.
Foi duro constatar que além da humilhante ditadura e da absurda violência policial, nós mulheres ainda teremos que lutar pelo que sempre lutamos sozinhas: pelo fim da misoginia, pela liberdade de amar e pelo direito de ser. Que mundo é esse que essa multidão quer construir onde não há o mínimo respeito às diferenças?
Por que será que estátuas de gesso despedaçadas, fabricadas em série e compradas em uma lojinha no centro da cidade despertaram muito mais a comoção pública que a cusparada na cara que uma manifestante da Marcha das Vadias do Rio de Janeiro levou de um “peregrino” da Jornada Mundial da Juventude? E por que chamam muito mais atenção do que as concretas ameaças de morte e estupro que as companheiras que organizaram a Marcha das Vadias sofrem até hoje?
Nós, mulheres, somos despedaçadas todos os dias, por esse estado machista, que criminaliza o aborto. Por essa igreja que nos queimou e nos cala por milênios. Somos despedaçadas por noss@s companheir@s, que se consideram don@s dos nossos corpos. Por transeuntes que se veem no direito de nos estuprar. Mas, infelizmente para as nossas lutas, ainda estamos sozinhas. Não é tão cômodo questionar as atitudes pessoais como é cômodo questionar políticos e suas políticas.
E seguimos nós, protestando dentro dos protestos, dentro das nossas casas e das nossas músicas. Não temos balas de borracha, mas voz. Nossas alfaias e estandartes são os nossos escudos.