Mel Bleil Gallo
Jornalista e assessora de comunicação política do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA)
Imagine a cena: é um daqueles domingos ensolarados e um casal apaixonado resolve passear e celebrar o amor. Decidem ir ao clube, nadar e curtir a natureza. Ao chegarem de mãos dadas, porém, recebem xingamentos de outr@s frequentador@s do local: “Que nojo! Horripilante!”. Você pode se perguntar, “como assim, o que foi feito para merecer um tratamento desses?”. E talvez se surpreenda com a resposta: bastou o fato de ser um casal de mulheres lésbicas, frequentando o Parque Nacional de Brasília, também conhecido como Água Mineral.
Em outros casos, ser mulher já é o suficiente para merecer uma agressão. Foi a história de Noemi Oliveira Silva, de 19 anos, moradora do Paranoá (DF). Ao voltar de uma festa com o namorado, ela foi submetida a uma sessão de exorcismo, na presença de pastores evangélicos e outras pessoas da comunidade. Bateram nas suas tatuagens, arrancaram piercings e jogaram dois gatos pretos pela janela. Tudo isso, a pedidos do seu próprio “companheiro”, inconformado pelo fato de a moça estar bêbada.
Essas duas situações têm muito em comum. Ambas revelam os efeitos perigosos do avanço fundamentalista sobre as liberdades individuais, na nossa sociedade. Uma cultura que agride e desrespeita constantemente quem destoa da ordem conservadora, patriarcal, heteronormativa, racista e elitista. Que exalta preconceitos e invisibiliza opressões.
Na boca do povo
Mas as semelhanças vão além: nenhum desses casos passou despercebido. Na semana seguinte às agressões homofóbicas, manifestantes se reuniram no parque Água Mineral, para realizar um beijaço - protesto político, onde várias pessoas se beijam, independente do gênero e orientação sexual, para combater os preconceitos. Já Noemi prestou queixa por lesão corporal, e o caso está sendo investigado. São vozes que se erguem e resistem contra os fundamentalismos religiosos. E não estão sozinhas.
Quando um pastor evangélico publicamente reconhecido como racista e homofóbico foi eleito para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, mais vozes se juntaram para denunciar esses fundamentalismos. Artistas, movimentos sociais, acadêmic@s e, inclusive, pessoas que normalmente não “gostam de se envolver com política”. Emblemática, uma dessas vozes foi a da atriz Letícia Sabatella, que definiu o deputado como um presente divino.
“O Feliciano é uma benção de Deus. Ele é tão nazista, arcaico e egoísta que enfim estamos acordando para a homofobia e o preconceito. É um mal que vem pra bem. É tão absurdo e forte, como se quem não pensa como ele estivesse associado ao demônio, possuído. Aconteceram coisas que doeram na minha alma. E, para ser contra essa aberração, quem antes não queria chocar a bisavó está se assumindo. Graças a isso, a homofobia daqui a pouco vai acabar, como acabou a escravidão”, disse a atriz pelos corredores dos estúdios da Rede Globo.
Debate interno
Apesar de estimativas como a do pastor Silas Malafaia indicarem que o número de eleitores de Feliciano deve duplicar em 2014, essas polêmicas têm tido também um saldo interessante de debate interno às religiões. Até mesmo evangélicos pediram a saída do Pastor da Comissão. Formada por 39 grupos de evangélicos progressistas, a Rede Fale lançou um abaixo assinado e uma carta aberta na internet, em que dizia ser “estratégico ouvir o clamor das ruas e dos movimentos sociais com respeito à escolha, pelo partido, de um nome que não traga tamanha carga negativa para a presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias”.
Mais recentemente, em julho, essa mesma rede soltou um artigo intitulado “Evangélicos e Estado Laico: reflexão necessária”, no qual ressalta que a laicidade “não apenas reconhece a pluralidade de religiões, mas que nenhum grupo que se valha de sua força ou influência no âmbito dos poderes de nosso país pode usá-la para exercer de forma ilegítima a tirania sobre aqueles que fazem opção de fé diversa àquela que diz professar”. E completa: “como uma rede que tem em sua matriz a fé no Cristo, não podemos aceitar que se use o Estado para converter nosso semelhante na marra”.
De acordo com Leonardo Boff, o caso do pastor Feliciano pode ser considerado um paradigma, pois é “a primeira vez na história em que os evangélicos se colocam como um bloco organicamente articulado, com projeto temático definido: uma pretensa defesa da família”. Para o teólogo da Libertação, “torna-se nítida uma articulação política e ideológica conservadora em diferentes espaços sociais - do Congresso Nacional às mídias - que reflete um espírito presente na sociedade brasileira, de reação a avanços sociopolíticos, que dizem respeito não só a direitos civis homossexuais e das mulheres, como também aos direitos de crianças e adolescentes, às ações afirmativas (cotas, por exemplo) e da Comissão da Verdade, e de políticas de inclusão social e cidadania. Nesta articulação a religião passa a ser instrumentalizada, uma porta-voz”.
O poder da comunicação
A articulação fundamentalista na mídia, aliás, é ponto que merece destaque. A compra da Rede Record pela Igreja Universal do Reino de Deus, em 1989, foi um dos principais impulsos à estratégia de ocupação do poder pelos segmentos neopentecostais. Com o surgimento de partidos políticos como PSC e PRB, foi possível canalizar também recursos públicos para fundos partidários, com horários eleitorais gratuitos, por exemplo. Apesar de mobilizações sociais como o “Projeto de Lei de Iniciativa Popular por uma Mídia Democrática”, não há nenhuma resposta efetiva do poder público contra o proselitismo religioso.
Como denuncia o jornalista Luiz Cláudio Cunha, “o Estado laico assiste, inerte, a invasão da mídia eletrônica por instituições religiosas que compram espaços e vendem milagres em rádio e TV, maldizendo regras da concessão pública de meios de comunicação que deveriam estar imunes a credos e a pregadores de telemarketing. Sem maiores perguntas, o Brasil e suas instâncias do poder temporal assistem de joelhos ao choque de credos numa área de interesse direto do jornalismo e do distinto público: a mídia eletrônica. A igreja católica agrupa mais de 200 rádios e quase 50 emissoras de TV, contra 80 rádios e quase 280 emissoras de oito braços do ramo evangélico”.
No entanto, nos últimos meses, o Brasil observou como a atuação nas redes sociais pode contribuir para mobilizar a sociedade e, inclusive, pautar a grande mídia. Além de debates sobre direitos sociais básicos como transporte, saúde e educação, associados à crítica aos megaeventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, a defesa do Estado laico também chamou a atenção.
Protestos que reuniram milhares de pessoas em todas as regiões do país conseguiram trazer à tona problemas como a aprovação do Estatuto do Nascituro (PL 478/2007) em mais uma comissão da Câmara dos Deputados, os gastos públicos de mais de R$ 180 milhões com a vinda do Papa Francisco ao Brasil e os crescentes atentados diretos à laicidade do Estado, por meio de iniciativas como a PEC 99/2011, que autoriza igrejas a questionarem o Supremo Tribunal Federal (STF).
Um dos resultados dessa movimentação foi o fato de a Marcha das Vadias do Distrito Federal, ter sido convidada, como movimento feminista, a participar de uma reunião com a presidenta Dilma, após mobilizar cerca de oito mil pessoas pelas ruas de Brasília. O encontro reuniu diversos movimentos de juventude e, na ocasião, as Vadias apresentaram a legalização do aborto como uma das demandas dos movimentos sociais.
Não houve, no entanto, uma resposta por parte do governo. O silêncio foi o mesmo diante de tantas atrocidades fundamentalistas que mexeram com o país. Tática de governabilidade ou conivência? Fica difícil afirmar. Fato é que só se pode apostar na atuação dos movimentos sociais e na pressão popular, para construir alternativas. Desde as mais imediatas, até as que possam de fato transformar nosso sistema político e garantir que, nessa proposta de representatividade, tod@s tenham voz e direitos garantidos.