Guacira César de Oliveira
Socióloga, integrante do Colegiado de Gestão do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA) e militante da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) e da Articulação Feminista Marcosul (AFM)
A denúncia contra a ofensiva fundamentalista religiosa ganhou a arena pública e muitos caminhos do ciberespaço, antes mesmo que as ruas do nosso país ficassem lotadas de toda sorte de gente indignada. Feliciano não me representa! O amor não tem cura! Contra a Bolsa Estupro! Contra o Estatuto do Nascituro! Pelo Estado Laico! Por liberdade religiosa! Aborto legal e seguro!
Todas estas palavras de desordem vêm denunciando a retração de muitos partidos políticos e a consequente aversão ao Parlamento e aos governos, frente à legítima e justa exigência de garantias para os direitos sexuais e reprodutivos.
Os enormes blocos político-partidários formados para governar as cidades, os estados e o país, desde que reuniram grupos de todos os matizes políticos e ideológicos para ganhar e se manter no poder, tornaram-se incapazes de combater o fundamentalismo religioso e defender a liberdade religiosa. Afinal, os chefes destas igrejas passaram a ser parte importante destes blocos, não importando para eles se quem está à frente aqui é um líder do PSDB, ali um líder do PT, acolá do PV... Em pelo menos 15 partidos que têm representação no Congresso Nacional, essa vertente conservadora e fundamentalista está entranhada, como mostra o mapa do fundamentalismo, que apresentamos nas próximas páginas.
Tais blocos já não têm razão para combater a corrosão do princípio laico que deveria fundamentar a garantia de direitos e a prestação de serviços públicos. Isto porque os “acordos para a governabilidade” incluem repassar recursos vultosos dos orçamentos públicos para sustentação das organizações dos chefes dessas igrejas.
As alianças construídas entre muitos partidos (esperemos que não todos) e os chefes das igrejas são feitas com o sacrifício dos nossos direitos e dos serviços públicos que deveriam efetivá-los. Assim, o SUS tolera que muitos hospitais conveniados, como as Santas Casas de Misericórdia, se neguem a atender as mulheres vítimas de violência sexual quando elas decidem fazer aborto de feto resultante de estupro.
De acordo com pesquisa da ONG Católicas Pelo Direito de Decidir, 96% d@s brasileir@s não têm informação sobre a que serviços recorrer em caso de violência sexual. E, mesmo depois de o Congresso Nacional ter aprovado por unanimidade o PLC 03/2013 - que garante atendimento imediato no SUS e acesso à informação sobre os direitos legais às mulheres violentadas - o corpo das mulheres é mais uma vez usado como moeda de troca entre Governo e fundamentalistas religiosos, que pediram o veto do texto à presidenta.
As manifestações contra esta ordem fundamentalista sofrem retaliações violentas. Exemplos que comprovam essa afirmação não faltam, como revela o artigo de Tatiana Lionço, nessa edição.
Não por acaso, somos as mulheres, as feministas, que protagonizamos a luta contra o fundamentalismo religioso. Anos atrás, quando a Articulação Feminista MarcoSul lançou a campanha “Tua boca é fundamental contra os fundamentalismos”, denunciamos como todas as expressões fundamentalistas almejam dominar, controlar, sujeitar violentamente as nossas sexualidades, as nossas subjetividades, as nossas vidas.
Vivemos uma crise profunda da representação política, de fato, uma crise institucional da democracia. A superação desta situação, no sentido de maior justiça e igualdade, passa necessariamente pela luta contra os fundamentalismos, pela defesa da laicidade do Estado e pela Reforma do Sistema Político, como parecem apontar, de forma ou outra, todos os textos dessa edição. Uma reforma que promova mudanças radicais na forma como o poder é exercido. Esta edição do Jornal Fêmea pretende ser uma contribuição modesta neste sentido. Esperamos que você tenha uma boa leitura!