Quase lá: Combate ao Racismo Ambiental: uma luta justa por justiça ambiental

Cristiane Faustino
Militante da Articulação de Mulheres Brasileiras, do Fórum Cearense de Mulheres. Também é integrante da Rede Brasileira de Justiça Ambiental e do GT Combate ao Racismo Ambiental, além de trabalhadora do Instituto Terramar (CE)

A efervescência dos debates sobre questões ambientais e riscos humanos, que emerge no contexto da Rio+20, nos impõe o desafio de fortalecer na cena pública as diferentes compreensões e fazeres críticos que põem em evidência as injustiças e violações provocadas pelos modelos econômicos, políticos, sociais e culturais dominantes. Romper com a cultura política elitista de “ocultação” das desigualdades e iniquidades, ainda que gritantes na vida real, é fundamental para a emancipação da humanidade desde o fazer democratizante e comprometido com a construção de modos de vidas sustentáveis, se é assim que se quer chamar o porvir de uma sociedade melhor pra todas as pessoas e grupos sociais.

No Brasil e América Latina o racismo é um dos processos de desigualdades mais reais, porém mais ocultados, especialmente pelos agentes que impõem a todas as pessoas e grupos sociais, seu pensamento, suas decisões, suas armas, suas instituições, seus códigos, suas formas de ver, pensar e construir o mundo. Das invasoras caravanas do século XVI aos sofisticados jatinhos, o rastro desses agentes tem sido a dizimação e escravização dos povos originários e negros, marginalizando e subjugando suas gentes e culturas. A violência da expropriação e escravização, antes argumentada pela superioridade e meritocracia divinizada das culturas brancas, hoje se camufla na falácia da democracia, inclusive a racial, e se justifica pelo decantado discurso do desenvolvimento.

Desenvolvimento focado numa racionalidade que transforma os territórios, os ecossistemas, a biodiversidade, os conhecimentos e os corpos, especialmente os das mulheres, em mercadorias; que explora a força de trabalho alheia e extermina os grupos “desnecessários”. Nessas circunstâncias, a pergunta feita por quem percebe, pensa sobre, ou vivencia as violências desse projeto é: desenvolvimento do que e para quem, “cara pálida”? A resposta a essa questão não pode se furtar de trazer à tona o debate sobre o racismo, que movimentou a expansão capitalista e o enriquecimento das metrópoles européias, assim como a formação das elites e marginalização da população negra e indígenas. Racismo que se refunda e se complexifica no moderno desenvolvimento, acelerado pelas políticas de Estado e dos Governos, pelas oportunidades abertas à iniciativa privada e seus negócios poluentes e “sociodegradantes”. Oportunidades que se concretizam na invasão e sobreexploração de imensos territórios, negação e violação dos direitos dos povos, sobretudo daqueles situados como racial e/ou etnicamente inferiores.

É a partir das ideologias hierarquizantes e discriminatórias - que mesmo se não ditas diretamente, são estruturantes da conformação social, e não podem ser subtratadas na análise e práticas críticas- que se encaminham pelos agentes públicos e privados as decisões sobre as políticas ambientais, a implementação dos projetos da iniciativa privada, as remoções das populações, as ordens de despejos, as fronteiras de expansão dos agro e hidronegócios, a defesa, licenciamento

e incentivos às atividades industriais poluentes, as obras de infraestrutura que viabilizam a produção. Enfim, só para citar alguns dos processos que interferem e reconfiguram autoritariamente os territórios, destroem os bens naturais e desalojam as populações que foram historicamente alijadas dos processos políticos e exploradas nos econômicos e que por conseqüência não têm acesso ao poder de decisão e à proteção contra as atividades degradantes e seus impactos.

Nessa “naturalização” das injustiças e desigualdades, na vida real e cotidiana os contingentes negros urbanos enfrentam os grandes dilemas ambientais nas cidades; as populações quilombolas e povos indígenas têm seus territórios e modos de vida dizimados; os trabalhadores e trabalhadoras das atividades degradadoras são as vítimas das contaminações; as populações pobres, em geral não brancas, são destituídos de seus direitos e/ou morrem nas grandes catástrofes.

Nessa cadeia de tragédias, as mulheres negras e indígenas são mais duramente atingidas, porque têm ainda menos acesso ao poder político e foram (e a grande maioria continua a sê-lo) subordinadas, nas diferentes dimensões da vida. Para essas, o histórico de dominação de seu corpo no estupro colonial e na exploração do seu trabalho, se repagina na vida cotidiana de gestão das ausências e na exploração sexual, como parte das cadeias produtivas que articulam cultura machista e pobreza das mulheres e meninas, e não custa dizer: especialmente as de cor!

As necessidades e privações que foram geradas pela situação de subordinação e de negação históricas são “processadas”, nesse desenvolvimento, não como conseqüências da má distribuição do poder e da riqueza, mas como resultado da própria ausência dos investimentos e modelos da sociedade geradora e consumidora de mercadorias. Nesse contexto, a falsa solução da chamada economia verde, que não rompe um milímetro sequer com os modelos dominantes, é também reflexo do cinismo, da arrogância e prepotência daqueles que sempre estiveram nos lugares de privilégios.

Para nós que vamos construir a Cúpula dos Povos, nos desafia a luta articulada contra o racismo e por justiça ambiental. Uma luta que nos mobilize para desvelar as tramas das desigualdades e visibilizar suas diferentes dimensões, com vistas a fortalecer a capacidade de incidir sobre elas a partir de suas complexidades e da nossa velha e boa capacidade de perceber e se indignar com as opressões.


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