As mulheres querem mais do que o enfrentamento da pobreza pelas políticas de transferência de renda. As mulheres querem romper com o legado histórico da dominação, que tem a dependência econômica como elemento fundamental para a sua manutenção.
A queda do desemprego feminino. A posição do Brasil em terceiro lugar no ranking latino-americano sobre paridade econômica e laboral entre homens e mulheres, elaborado pela Articulación Feminista MarcoSur. A crescente presença das mulheres no mundo público e a desconstrução da figura masculina como única provedora do consumo da unidade familiar. Esses avanços, no entanto, não vem sendo acompanhados de uma divisão mais equânime das responsabilidades familiares com o cuidado de crianças, idosos, enfermos e com as tarefas domésticas. A permanência da concentração deste trabalho nas mãos das mulheres faz com que seu lugar na família, particularmente o fato de ter ou não filh@s pequen@s, influencie diretamente no seu desempenho no mundo do trabalho.
Essa situação agravou-se com a crise financeira internacional. O enfrentamento da crise favoreceu setores da indústria intensivos em mão-de-obra quase que exclusivamente masculina. As atividades produtivas que concentravam a força de trabalho feminina, saúde, educação, por exemplo, não desfrutaram das mesmas medidas e as trabalhadoras ficaram ainda mais desprotegidas. Ademais, a atividade reprodutiva, que onera sobremaneira as mulheres, face a escassez de recursos nas famílias (agravada pela crise) e a falta de infraestrutura social para os cuidados, terminou por cobrar ainda mais horas das mulheres no trabalho não remunerado.
O professor titular do mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE), José Eustáquio Diniz Alves, explica que quanto maior o peso das atividades domésticas, menor é a disponibilidade de tempo que as mulheres podem ofertar ao mercado de trabalho remunerado. “Por exemplo, famílias com muitos filhos pequenos exigem maior presença feminina no cuidado de seus membros, o que, em uma enviesada divisão sexual do trabalho, limita o potencial produtivo das mulheres”. José Eustáquio levanta questões que se colocam, em termos de políticas públicas e de redivisão sexual do trabalho, e interroga: como liberar as mulheres para o exercício do seu direito ao emprego remunerado, como comprometer os homens com a economia do cuidado e como o Estado pode fornecer os instrumentos para a redução da distância entre a produção e a reprodução social.
A naturalização do trabalho reprodutivo como sendo necessariamente feminino em um contexto no qual as mulheres já se encontram amplamente inseridas no mercado de trabalho traz à tona a relevância de se pensar o papel do estado neste processo, é o que afirma Moema Guedes em seu livro A economia do cuidado: as instituições no Brasil. “Nesse sentido, as análises sobre as políticas públicas nos campos de saúde e educação básica e creches são de suma importância para a visualização do tipo de encargo sofrido pelas famílias, particularmente as mulheres, quando são compostas por membros que requerem cuidados especiais (crianças, idosos, indivíduos doentes etc.). Além disso, esse olhar amplia o escopo da discussão acerca da dupla jornada de trabalho feminina para além da esfera familiar e a recoloca numa dimensão pública, dando visibilidade a um tipo de trabalho que é tradicionalmente ocultado”.
O Estado e a infraestrutura social
O debate sobre o novo Plano Plurianual do governo federal está em curso. O governo respondeu às reivindicações de participação social nesse processo, criando um Fórum específico para o debate com conselheir@s e representantes de organizações da sociedade civil. A Articulação das Mulheres Brasileiras (AMB) enfatiza a importância de instituir a prioridade estratégica da infraestrutura reprodutiva enfrentando a divisão sexual do trabalho e a superexploração das mulheres. E ressalva a proposta de inserção no PPA da Infraestrutura para economia do cuidado: construção de creches, restaurantes populares, casas de repouso, hospitais-dia, escolas em tempo integral etc).
Segundo o informe da CEPAL, “Que tipo de Estado? Que tipo de igualdade?” a conciliação entre a vida profissional e familiar baseada na redistribuição das tarefas de cuidado entre o Estado, o mercado e as famílias continua a ser o ponto cego das políticas públicas da América Latina e do Caribe. As obrigações legais com o cuidado de descendentes e ascendentes não correspondem aos serviços, a infraestrutura e as provisões disponíveis para sua realização. Nesta situação, as desigualdades de gênero são evidentes. Segundo Alicia Bárcena, Secretária Executiva da CEPAL, na apresentação do documento, não será possível conseguir igualdade de trabalho para as mulheres enquanto não for resolvida a carga de trabalho não remunerado e de cuidados que recai historicamente sobre nós.
Para José Eustáquio existem duas coisas importantes a serem tratadas: “primeiro responsabilizar os homens pelo cuidado. As tarefas reprodutivas (cuidado com crianças, idosos, tarefas domésticas etc.) não podem ser vistas como atividades exclusivas das mulheres - a maternagem e a paternagem. Em segundo lugar, é preciso DESFAMILIZAR as políticas públicas. Isto é, tirar os encargos de cima da família e o Estado responsabilizar por políticas relacionadas à economia do cuidado. Por exemplo: creche e educação infantil é fundamental para liberar as mulheres para o mercado de trabalho”.
O cuidado de idos@s, deficientes e o acesso da população à saúde
O quadro de tarefas e atribuições socialmente construídas como femininas que se articulam à chamada economia do cuidado é formado não apenas pela educação e cuidado com os filhos mas também pela assistência à todos os integrantes familiares que necessitem de atenção especial como idos@s ou enferm@s. Moema Guedes explica a importância do acesso da população a programas de saúde que assegurem atendimentos integrais com serviços médicos de enfermagem, e outros cuidados, ao invés de transferir para as famílias, particularmente às mulheres, os ônus de tempo e gastos que envolvem os tratamentos necessários para a plena recuperação e estabilidade da saúde dos indivíduos.
Dados do Suplemento de Saúde, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), divulgados em março de 2010, referente a perspectiva da economia do cuidado, mostram que 59,5 milhões de pessoas sofrem de doenças crônicas, como diabetes (3,6%), artrite ou reumatismo (5,7%), hipertensão (14%), bronquite ou asma (5%), doenças de coração (4%), depressão (4,1%) e problemas de coluna 13,5%). Outro dado apontado é a existência de uma clara relação entre envelhecimento, dependência e o desenvolvimento de deficiências. Nem todos @s portador@s de deficiência são pessoas idosas mas est@s são a maior parte desta população. De fato, quanto mais velhas as pessoas vão ficando maior é a chance de desenvolverem algum tipo de deficiência, e demandarem atenção especial que, em geral, não é respondida pelos serviços públicos, nem tampouco compartilhada dentro da família. O cuidado, no Brasil ainda é um problema de esfera privada, cuja solução recai, quando não exclusivamente, no mínimo desproporcional, sobre as mulheres, seja como integrantes da família, seja como trabalhadoras domésticas, babás, cuidadoras.
Diante deste cenário fica clara a ideia de que as responsáveis pelas tarefas relativas ao cuidado dos indivíduos tem sido as mulheres, mesmo se falando em responsabilidade de toda a família. É escassa a consciência crítica acerca do papel do estado neste processo. Como afirma José Eustáquio sobre a necessidade de articulação entre as esferas da produção e da reprodução e do sistema de emprego e o cuidado das famílias e indivíduos. “Na perspectiva da titularidade dos direitos, as políticas públicas devem garantir o acesso ao emprego, ao mesmo tempo em que provê serviços públicos para aquel@s que dão e recebem cuidados. Conciliar trabalho e família é fundamental para que haja uma maior equidade entre homens e mulheres e para que a articulação entre Estado, família e mercado possa se dar em benefício das pessoas e da ascensão social ascendente de tod@s, com equidade de gênero”.
A economia do cuidado envolve a criação d@s filh@s, a guarda das crianças, a atenção com os parentes idos@s ou com necessidades especiais, as atividades de educação, saúde e dos afazeres domésticos, assim como a convivência das pessoas que cuidam umas das outras e do ambiente natural. Da economia do cuidado depende toda a reprodução social da vida.
Falta de creche: motivo da exclusão das mulheres do mercado de trabalho
Apenas 18% das crianças com até três anos de idade são atendidas por creches no país. Tendo que cuidar d@s filh@s, as mulheres, especialmente as que não têm condições de pagar escolas ou babás, não conseguem buscar trabalhos remunerados ou têm que optar por alternativas informais, sujeitando-se a condições de trabalhos precárias e a remuneração mais baixa. Este é um dos motivos que faz com que apenas 60% das brasileiras com mais de 16 anos estejam inseridas no mercado de trabalho remunerado, enquanto o percentual de homens chega a mais de 80%. É por isso que reivindicamos que sejam criadas políticas que tornem o cuidado das crianças um problema de todos e todas, uma questão social.
As creches no governo Dilma
A criação de creches foi um compromisso assumido pela presidenta Dilma desde a campanha eleitoral em 2010. Até 2014, afirma Dilma, seis mil creches serão instaladas em todo o país, que poderão atender até 140 mil crianças e terão custo de R$ 7,6 bilhões.
Contudo, para 2011, está prevista a construção de apenas 772 creches, o que corresponde a 13% das unidades prometidas. Analisando a execução dos recursos da Lei Orçamentária Anual (LOA) 2011 até o mês de agosto, constatamos a existência de cinco ações destinadas à implementação e ao funcionamento de creches, que somam mais de dois bilhões de reais previstos para este ano: 0509 - Apoio ao Desenvolvimento da Educação Básica; 09CW - Apoio a reestruturação da Rede Física Pública da Educação Básica; 8746 - Apoio a Aquisição de Equipamentos para a Rede Pública da Educação Infantil; 09CW - Apoio a Reestruturação da Rede Física Pública da Educação Básica; 12KU - Implantação de Escolas para Educação Infantil; 8682 - Apoio a Elaboração da Proposta Pedagógica, Práticas e Recursos Pedagógicos para Educação Infantil. Juntas, essas ações executou até agora menos de 10% dos mais de 2 bilhões previstos para o ano.
Não é a primeira vez que o governo federal fica longe da meta traçada. Em 2008, o compromisso era construir 1.700 novas creches até 2011 e ampliar em 12% as vagas para as crianças de 0 a 6 anos. Não vai dar para chegar nem à meio caminho das metas estabelecidas no I e II PNPM.
A principal ação nesse sentido, orientada à implantação de escolas para educação infantil (12KU), faz parte do PAC 2 e, embora tenha comprometido (empenhado) 98,5% dos recursos, até o momento executou de fato apenas 11,8% do montante autorizado. Outra importante ação, de apoio à reestruturação da rede física pública da educação básica (09CW), comprometeu (empenhou) mais da metade de seus recursos, mas executou apenas 13,6%. As demais ações, que prevêem montantes menores, não estão sendo implementadas ou caminham a passos muito lentos, o que compromete a qualidade das creches já existentes, a exemplo da Ação de Aquisição de Equipamentos para a Educação Infantil (8746) que, dos R$ 65,2 milhões de reais previstos para o ano todo, executou apenas R$ 90 mil (0,1%).
Além disso, as creches também recebem parte dos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB). No total o FUNDEB, dispõe das seguintes ações orçamentárias: 0903 - Operações Especiais: Transferências Constitucionais e as Decorrentes de Legislação Específica; 1061 - Brasil Escolarizado.
No caso do FUNDEB, observa-se um ritmo de execução adequado, com mais de 50% liquidados até o momento. No entanto, não se tem a informação sobre quanto desses recursos vai diretamente para a educação infantil, já que o FUNDEB financia também a Educação Fundamental. Segundo o Ministério da Educação (MEC), a distribuição dos recursos do FUNDEB entre Ensino Fundamental e Educação Infantil (que engloba creches e pré-escola) é proporcional ao número de matrículas efetuadas em cada grupo. Esta forma de dividir os recursos perpetua o enorme déficit de vagas para a Educação Infantil.
Para que a promessa da presidenta Dilma se concretize, é fundamental que se acelere o ritmo da construção das creches, que se amplie o volume de recursos federais para esse fim e que os municípios assumam a responsabilidade pela sua manutenção - inclusive e especialmente pela contratação de professor@s e outr@s profissionais para creches e pré-escolas.
Características da inserção das mulheres segundo a frequência à creche ou pré-escola dos filhos com até seis anos1 | ||
Filhos não frequentam a creche ou pré-escola | Filhos frequentam a creche ou pré-escola | |
Porcentagem de domicílios | 61 | 39 |
Renda familiar per capita | 167,9 | 249 |
Taxa de participação | 52 | 64,3 |
Salário | 273 | 422,6 |
Jornada de trabalho semanal | 34,2 | 35,8 |
Fonte: Pesquisa Nacional por amostra de Domicílios (Pnad) de 2001.
(1) Não está sendo considerada a frequência à escola, apenas creche ou pré-escola.