Quase lá: Balanço do Congresso Nacional revela tendência à negação dos direitos das mulheres

Este é o último ano de mandato d@s deputad@s e de parte d@s senador@s. Os trabalhos legislativos recomeçaram no lastro dos conflitos travados em 2009, entre a afirmação e a negação de direitos das mulheres. No ano passado, a atuação do movimento de mulheres foi fundamental para reverter tendências conservadoras e resistir aos retrocessos que os segmentos mais conservadores representados no Congresso pretendiam impor às mulheres. Houve conquistas em áreas como dos direitos das presidiárias; e resistência efetiva contra as tentativas de criminalização das mulheres por abortamento.

Em 2009, foram aprovadas 255 leis. A grande novidade foi a queda no número de leis oriundas de medidas provisórias e a aprovação de mais projetos de lei de autoria do Poder Legislativo do que os propostos pelo Poder Executivo. Entretanto, metade das leis aprovadas durante o ano apenas estabelecem datas comemorativas e homenagens.

Direitos Civis negados aoscasais do mesmo sexo

Em 2009, o direito de família esteve no centro de dez dos 11 projetos acompanhados pelo CFEMEA nessa área. A maioria deles segue uma perspectiva conservadora.

Entre aqueles projetos que respondem agenda feminista, destacamos o PLC 122/2006, de autoria da ex-deputada Iara Bernardi (PT-SP), que criminaliza a homofobia. Essa proposta de lei, face às pressões conservadoras, sofreu modificações substantivas ao longo do debate no Senado Federal. A matéria agora está sendo apreciada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, sob a relatoria da senadora Fátima Cleide (PT-RO).

Também tramitam no Congresso dois projetos de lei que buscam regulamentar a união estável entre pessoas do mesmo sexo. O PL 674/2007 foi apresentado pelo deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP) e encontrase atualmente em debate na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara, onde é relatado pelo deputado Eliseu Padilha (PMDB-RS). O PL 4914/2009 trata do mesmo tema e é assinado por 12 deputados de diversos partidos ligados ao governo e encontra-se na Comissão de Seguridade Social e Família. A oposição a ambos os projetos tem sido intensa por parte dos conservadores. O cenário político é pouco favorável à sua aprovação, exigindo mobilização dos movimentos sociais para assegurar avanços efetivos em termos de garantia de direitos.

Direitos Humanos - Estatuto da Igualdade Racial é esvaziado

Entre os 11 projetos acompanhados no campo dos Direitos Humanos, destaca-se a ameaça de retrocessos no Estatuto da Igualdade Racial (SDS 213/2003), de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS). A versão aprovada na Câmara, em setembro, eliminou a proposição das cotas e do Fundo para a Igualdade Racial. Em dezembro, quando a proposição chegou ao Senado o quadro piorou. O senador Demóstenes Torres (DEM-GO), relator da matéria, encaminhou a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania um substitutivo que suprime os termos “raça”, “racismo”, “escravidão” e “reparação” anulando completamente o projeto inicial. Espera-se que seja tomada ainda no primeiro semestre, a decisão final a respeito do Estatuto. Entretanto, após 10 anos de discussão, fica a interrogação: desse jeito que está, ainda pode-se considerar como um avanço? Ou seria um retrocesso e, nesse caso, a melhor decisão seria a de rejeitar a proposta?

Na esfera dos direitos das presidiárias, entrou em vigor a Lei 11.942/2009. Ela garante acompanhamento médico às mulheres e às crianças e determina que os estabelecimentos para mulheres comportem berçários, nos quais as crianças devem permanecer até os seis meses de vida, pelo menos. Também foi sancionada a Lei 12.121/2009, assegurando que sua segurança interna seja realizada somente por agentes do sexo feminino.

Violência contra as mulheres na agenda

Encontram-se no Congresso 16 proposições legislativas que afetam a Lei Maria da Penha (LMP). Algumas propostas apresentam grandes riscos aos direitos das mulheres. O PLS 156/2009, elaborado por uma comissão de juristas notáveis composta exclusivamente por homens, atualiza o Código de Processo Penal. A proposição original revogava dispositivos fundamentais da Lei Maria da Penha. Durante o ano passado, graças à atuação dos movimentos de mulheres e feministas, da Bancada Feminina e da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), algumas modificações foram apresentadas pela senadora Serys Slhessarenko (PTMS) e aprovadas na Comissão Temporária de Estudo da Reforma do Código de Processo Penal para eliminar esses riscos. O projeto, atualmente, está sob análise da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e ainda precisa de aperfeiçoamento para preservar os
direitos previstos na Lei Maria da Penha. Há ainda um longo caminho a ser percorrido, que requer vigilância cidadã, em especial do movimento de mulheres.

Uma outra Proposta de Emenda à Constituição (485/2005) preocupante, é a que determina a “criação de varas especializadas nos juizados especiais (JECRIM) para as questões relativas às mulheres”. A PEC foi apresentada à Câmara pela deputada Sandra Rosado (PSB-RN), em 2005, quando a Lei Maria da Penha ainda não havia sido aprovada e, portanto, ainda não estavam criados os Juizados de Violência Doméstica. Hoje, entretanto, dispomos de um mecanismo muito mais apropriado que os juizados especiais criminais - JECRIMs para lidar com o fenômeno da violência contra a mulher.

Várias redes e entidades feministas – Articulação de Mulheres Brasileiras, CFEMEA, CEPIA, CLADEM, Instituto Antígona e Themis – apresentaram coletivamente um parecer em relação à PEC, alertando para a importância de garantir a efetivação dos Juizados de Violência Doméstica, estabelecidos na LMP. O parecer foi encaminhado à autora da PEC, bem como às deputadas Alice Portugal (PCdoB-BA) e Janete Pietá (PT-SP), respectivamente a presidente e relatora da Comissão Especial, criada para discutir e dar parecer em relação a PEC 485/2005; assim como à Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Busca-se a solução do problema mediante emenda que confirme e fortaleça a implantação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher previstos na Lei Maria da Penha. A previsão é que a Comissão conclua seu trabalho logo no início do ano.

Em 2009, entre os projetos acompanhados pelo CFEMEA nessa área, apenas um entrou em vigor. A nova lei 12.015/2009 refere-se à punição dos crimes de estupro e exploração sexual. O estupro deixa de ser um crime praticado exclusivamente por homem contra a mulher. Homem ou mulher podem ser tanto agentes quanto vítima. A sua consumação não é mais apenas o ato sexual forçado na vagina da mulher. Abrange agora, além do sexo pênis/vagina, também o anal, o oral, ou mesmo introdução de objetos nos órgãos sexuais. Com esta alteração, o aborto legal passa a valer para toda a gravidez provocada por ato de violência, ainda que não haja penetração do pênis na vagina.

Apesar de a lei ser mais moderna, ela pode reduzir a pena do criminoso que tiver praticado tanto estupro quanto atentado violento ao pudor, uma vez que a nova legislação extinguiu esse último tipo penal. Ou seja, se antes o criminoso era punido com duas penas (atentado e estupro), agora será punido apenas com uma.

Outro ponto negativo é que a lei determina que a ação penal no crime de estupro contra mulher maior de 18 anos depende da manifestação da vítima para se tornar responsabilidade do Ministério Público, contrariando a idéia que embasou a Lei Maria da Penha. Tramita atualmente na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 6374/2009, de autoria do deputado Vieira da Cunha (PDT-RS) para alterar essa lei, de forma que o Ministério Público assuma os casos mesmo quando a vítima não se manifestar.

Minirreforma política é insuficiente

De dez projetos da área de poder e política monitorados pelo CFEMEA, o Congresso aprovou somente a minirreforma eleitoral que, graças aos movimentos feministas, à Bancada Feminina e à Comissão Tripartite criada pela SPM, inseriu ações afirmativas para as mulheres na lei 12.034/2009. A reforma abrange uso de 5% do Fundo Partidário para formação política de mulheres, 10% de tempo de propaganda partidária para promover a participação das mulheres e a obrigatoriedade da cota de 30% das candidaturas para mulheres. Contudo, o texto aprovado é uma versão diminuta da reforma democratizante reivindicada pelo feminismo.

Neste sentido, a Frente Parlamentar pela Reforma Política com Participação Popular no Congresso Nacional, (que a Articulação de Mulheres Brasileiras, entre outras organizações da sociedade civil participam), apresentou a Sugestão de Projeto de Lei 174/2009. Seu intuito é radicalizar a democracia, prevendo mecanismos de democracia direta, ações afirmativas para segmentos excluídos, fortalecimento de partidos, financiamento público exclusivo de campanhas, listas partidárias pré-ordenadas com alternância de sexo nas eleições proporcionais, entre outras medidas. Audiências públicas serão organizadas pela Frente Parlamentar em todo o País ao longo deste ano para discutir a proposta.

Paralelamente, o texto PEC 590/2006, de autoria da deputada Luíza Erundina (PSB-SP) garante representação proporcional dos sexos na composição das Mesas Diretoras e de todas as comissões da Câmara dos Deputados e Senado.

Leis de trabalho não contemplam demandas

A área de trabalho e previdência teve 52 projetos monitorados pelo CFEMEA. Entretanto, no ano passado, nenhum deles teve sua tramitação concluída e, portanto, nenhuma lei foi aprovada nessa área.

O PLS 160/2009, de autoria da senadora Serys Slhessarenko (PTMS) trata da atividade de diarista (trabalho doméstico), definindo-a inicialmente como a ocupação de quem presta serviços no máximo duas vezes por semana para um mesmo contratante, sem que isso gere vínculo empregatício. O projeto foi modificado na Comissão de Assuntos Sociais do Senado, onde é relatado pelo senador Edson Lobão Filho (PMDB-MA). O substitutivo apresentado pelo senador estabelece que o trabalho com a frequência de até três dias por semana não gera vínculo empregatício e que o piso mínimo da diária é de 1/15 do salário mínimo.

Tanto a proposta inicial quanto o substitutivo ficaram muito aquém das reivindicações da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas – FENATRAD, que defende a eliminação do artigo constitucional que instituiu a diferença entre os direitos das trabalhadoras domésticas e as demais categorias profissionais.

Na área de trabalho, também está em debate a expansão da licençamaternidade. A PEC 30A/2007, de autoria da deputada Ângela Portela (PT-RR), confere caráter obrigatório à licença-maternidade de 180 dias. O substitutivo apresentado pela relatora, deputada Rita Camata (PSDB-ES), à Comissão Especial atenta para a necessidade de extensão do salário-maternidade e da estabilidade no trabalho das mulheres que desfrutam desse benefício, além de contemplar com estes direitos donas de casa, empregadas domésticas e trabalhadoras autônomas, além das trabalhadoras com carteira assinada. O relatório foi aprovado na Comissão e, com isso, a PEC será votada em plenário.

Conservadorismo impede autonomia das mulheres

A análise das 25 proposições legislativas que tramitaram em 2009 mostra a persistência da atuação unificada das bancadas religiosas contra a consolidação de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e do princípio constitucional e democrático do Estado Laico (Estado separado da religião).

O ano de 2009 começou com a ameaça de criação da Comissão Parlamentar de Inquérito-CPI do aborto destinada a combater o aborto ilegal e investigar com força policial as organizações que defendem sua descriminalização, contrariando a orientação do governo Lula de tratar a questão como um problema de saúde pública. Graças à mobilização feminista, a CPI não foi instaurada. A reação das mulheres organizadas também foi fundamental para que os deputados Luiz Bassuma e Henrique Afonso fossem suspensos do PT. As queixas levadas à Comissão de Ética do partido consideraram a atuação sistemática deles contra os direitos das mulheres, especialmente contra a descriminalizaçao do aborto, defendida pelo partido.

A reação conservadora inclui ainda projetos de lei para a criação de cadastro de gestantes, bolsas-estupro, de inclusão do aborto como crime hediondo e de proibição do aborto mesmo em caso de estupro, como exemplifica o projeto que institui o Estatuto do Nascituro (PL 478/2007), de autoria do deputado Luiz Bassuma (PV-BA). Eles poderão constar na pauta do Congresso em 2010, exigindo a atuação das feministas para promover a autonomia reprodutiva das mulheres para decidirem livremente sobre seus próprios corpos e seus projetos de vida.

O poder anti-democrático dos grupos religiosos que atuam no Legislativo também foi evidenciado pela aprovação, tanto pela Câmara quanto pelo Senado, do projeto de decreto legislativo 1736/2009, ratificando o acordo entre o Brasil e o Vaticano. Apreciado pelas casas legislativas sem que houvesse um debate público amplo, o acordo prevê ensino religioso católico nas escolas públicas, concede isenção fiscal para rendas e patrimônio de pessoas jurídicas eclesiásticas, isenta a Igreja Católica de cumprir obrigações trabalhistas e promove o uso de recursos do Estado brasileiro para a manutenção de seu patrimônio cultural. Mesmo ferindo diversos princípios do Estado laico, o acordo foi promulgado em fevereiro de 2010.

Programas e ações perdem recursos em 2010

O Orçamento aprovado pelo Congresso Nacional para 2010 ampliou o volume de recursos autorizados em praticamente todos os eixos do II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. O aumento foi superior a 50% nas ações orçamentárias que financiam os capítulos da “A educação inclusiva, não sexista, não racista, não homofóbica e não lesbofóbica” e da “Cultura, comunicação e mídia igualitárias e não discriminatórias. As ações orçamentárias que financiam os outros 5 eixos do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres tiveram acréscimos entre 15 e 30%.

Sofreram redução de recursos as ações orçamentárias que financiam os eixos do II Plano relativos ao “Direito a terra, moradia digna e infraestrutura social nos meios rural e urbano, considerando as comunidades tradicionais” que em 2010 têm autorizados 1/3 a menos de recursos do que em 2009; e a “Gestão e Monitoramento do II PNPM”, que perdeu 4% em relação ao ano anterior.

Levantamento realizado pelo CFEMEA aponta também que as parlamentares da Bancada Feminina da Câmara e do Senado sugeriram 246 emendas para que fossem alocados mais recursos para esses programas e ações no orçamento de 2010.

Entretanto, vale lembrar: o orçamento é autorizativo. E as experiências dos anos anteriores demonstram que as emendas parlamentares -individuais ou coletivas (de comissões e bancadas), não vêm sendo executadas. Dois fatores contribuem para a persistência desse problema: o primeiro é a estratégia de contingenciamento do orçamento, adotada pelo Executivo, que sacrifica sobremaneira as ações que não têm seu orçamento protegido pela Constituição. A outra é a incipiência da ação fiscalizadora do Legislativo em relação ao cumprimento das diretrizes orçamentárias, especialmente no que se refere ao enfrentamento das desigualdades.


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