Quase lá: A luta pela igualdade racial no Brasil

Lúcia Xavier
Representante do movimento de mulheres negras no Brasil e da organização Crioula-RJ em entrevista ao Jornal Fêmea fala da luta dos movimentos para a diminuição das desigualdades raciais no Brasil

Fêmea - O que significa ser uma representante do movimento de mulheres negras no Brasil na atual conjuntura de criminalização de práticas autônomas de movimentos sociais e das mulheres?

Lúcia Xavier - A criminalização das lideranças dos movimentos sociais no Brasil revela a falta de sedimentação dos pilares do Estado democrático de direitos em nosso país. A fragilidade do princípio da participação como eixo fundamental da consolidação da cidadania é sempre posto de lado no que se refere ao envolvimento das organizações nos rumos do Brasil. Sem contar que esta velha estratégia é utilizada sempre que as organizações democráticas estão em risco. Por outro lado, a criminalização das lideranças revela também o recrudescimento de setores da sociedade sobre os temas pelos quais lutamos.

Nós, mulheres, lideranças dos movimentos sociais, sempre criminalizadas, seguimos buscando articular os propósitos de nossas lutas com o processo de democratização do Brasil. E seguimos propondo o exercício de vivência democrática desde o nosso ponto de vista.

Fêmea - Quais as tendências dos parlamentares em suas argumentações pró e contra a Lei de Cotas?

Lúcia Xavier - As argumentações contra as cotas vêm ao encontro de mecanismos racistas já existentes na sociedade e no Estado brasileiro que permitiu a expropriação e a exploração da população negra até os nossos dias.

A maior parte dos argumentos contra refere-se a um sentido de "igualdade" que não é o que está definido na Constituição brasileira. Esta igualdade é aquela que permite que empregadas domésticas tenham menos direitos de que qualquer trabalhador/a; que as desigualdades educacionais encerram a maioria da população negra na miséria, no analfabetismo e que estão fora do poder.

Outro aspecto importante na discussão contra as cotas é admitir que a falta de cidadania da população negra não afeta o país como um todo. E não lembrar que a má condição sócio-econômica de negr@s é responsabilidade de cada indivíduo. Poderia aqui escrever outros tantos argumentos que são utilizados contra as cotas, mas de fato estas posturas são racistas e a reação a qualquer medida que diminua as desigualdades raciais é proteção aos privilégios de determinados grupos sociais.

Fêmea - Há todo um debate sobre cota racial x cota social. Qual a sua opinião sobre essa discussão em relação ao PL?

Lúcia Xavier - As cotas raciais são parte de programas de ações afirmativas que visam retirar determinados grupos sociais, vítimas de processos de desigualdades causadas por aspectos históricos como a escravidão transatlântica (que durou aproximadamente 400 anos) e pelo racismo institucionalizado no Estado brasileiro. Já as cotas sociais, em que pese a falta de oportunidades no processo de formação de nível superior, pode e deve ser uma iniciativa para fortalecer a cidadania e distribuir a renda.

Fêmea - Qual será o impacto da Lei de Cotas no ensino superior brasileiro e na sociedade em geral, e qual deverá ser o melhor encaminhamento para que a Lei seja implementada com eficácia?

Lúcia Xavier - O principal impacto das cotas é na sociedade em geral, pois a ampliação da educação de ensino superior amplia também a inserção no mercado de trabalho, o aumento da renda, e permite a mobilidade social. As condições de cidadania também se ampliam, assim como a possibilidade de redistribuir a renda do país.

Para que a lei consiga promover a superação das desigualdades raciais ela não pode ser entendida somente como um canal de distribuição de vagas nas universidades e sim de ampliação das capacidades técnicas e políticas deste grupo. Para isso, a entrada de negr@s nas universidades deve vir acompanhada de medidas que possam promover maior acesso ao conhecimento e à tecnologia. E as ações que garantam a inserção permanente e contínua destes grupos em todas as etapas de formação superior.

Fêmea - Em sua opinião, esta visão conservadora e anti-cotas do Congresso Nacional demonstra uma concessão à hegemonia dos brancos no mundo acadêmico? E como essa visão se relaciona com o racismo ou a discriminação étnica na sociedade brasileira?

Lúcia Xavier - Não é uma concessão, é um processo político que demonstra que a construção de outras hegemonias leva tempo para modificar ideologias como a do racismo.

Fêmea - Qual a sua avaliação da Revisão de Durban que ocorreu em Genebra entre os dias 20 a 24 de abril? Você acredita que foi dada pouca importância às questões raciais e à implementação de políticas públicas de reparação social?

Lúcia Xavier - A Conferência de Durban perdeu força política após os ataques aos Estados Unidos em 11 de setembro de 2001. A Declaração e o Plano de Ação foram guardados e todos os princípios dos direitos humanos dirimidos. As políticas de enfrentamento ao racismo recuaram no mundo inteiro, à exceção da América Latina, mais precisamente o Brasil, que seguiu buscando o seu próprio caminho para a superação das desigualdades, mesmo que a passos lentos e imprecisos. Após oito anos de paralisia, conseguimos mobilizar a sociedade latino-americana para avaliar o que foi feito neste período para superar o racismo. Com muito esforço político e com recursos escassos, participamos da Conferência de Revisão de Durban. Sentimo-nos vitoriosas, mas insatisfeitas. O processo de Revisão não foi democrático. Não foram garantidas as condições necessárias à participação da sociedade civil. A falta de conferências preparatórias nas regiões do mundo e, conseqüentemente, a inexistência de espaços para que as organizações da sociedade civil que representam as vítimas do racismo, da discriminação racial, da xenofobia e de intolerâncias correlatas pudessem aportar suas avaliações, críticas e demandas, acabou restringindo enormemente a esfera política de debate sobre o problema. A reafirmação do Plano de Ação de Durban é uma vitória desta Conferência de Revisão, mas não basta. Para o movimento de mulheres, em especial o movimento de mulheres afro-latino-americanas, afro-caribenhas e da diáspora, tal constatação exige que os Estados partes, as Nações Unidas e os organismos multilaterais, integrantes desta Conferência, sejam responsáveis em relação aos compromissos assumidos.

Fêmea - Tendo em vista toda essa agenda de lutas, qual a sua avaliação sobre o Projeto do Estatuto da Igualdade Racial, principalmente com relação aos avanços e retrocesso na luta pela igualdade racial no Brasil?

Lúcia Xavier - O Projeto de Lei que institui o Estatuto da Igualdade Racial é uma peça jurídica que será um dos principais instrumentos de superação da igualdade racial quando for aprovado. O Estatuto é uma ferramenta nova que poderá fortalecer as ações de superação das desigualdades raciais e também oferecer aos governos recursos estruturadores do combate as desigualdades em todos os níveis.


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