Quase lá: Orçamento Mulher: história e perspectivas

Aproveitando as comemorações dos 20 anos da Constituição Brasileira e dos quase 20 anos do CFEMEA, decidimos fazer uma retrospectiva da luta dos movimentos de mulheres frente ao Orçamento Público. O CFEMEA começou a trabalhar com essa questão seis anos depois que foi criado, em 1995. Nosso movimento estava desafiado a construir uma crítica e uma ação política sobre as finanças públicas para que as mulheres pudessem avançar no exercício de seus direitos. Era o feminismo dando mais um passo no sentido de garantir cidadania plena às mulheres brasileiras.

Construindo o caminho

Para fazer a ponte entre o direito legal e o direito real das mulheres era preciso pegar o caminho do Orçamento da União. Começamos a percorrê-lo em articulação com os movimentos de mulheres, em diálogo com a Bancada Feminina no Congresso Nacional, com parlamentares aliados e com @s gestor@s do Executivo encarregad@s da promoção de políticas públicas para as mulheres. O caminho foi construído com muito esforço: discutindo junto ao movimento de mulheres, elaborando emendas, realizando advocacy e monitorando os gastos públicos. Foi assim que conseguimos imprimir uma perspectiva feminista ao debate sobre as finanças públicas.

A Constituição Brasileira completava então seis anos e estávamos em plena mobilização para a Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, que se realizaria na China. A Articulação de Mulheres Brasileiras rumo à Beijing 95 havia sido criada recentemente para incidir no processo da Conferência. Apesar disso, era evidente a inércia do Estado na criação de mecanismos, políticas e serviços públicos que tornassem os direitos - consagrados na lei - acessíveis à maioria das mulheres.

O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) era um órgão extremamente fragilizado em comparação com aquele que existiu e atuou durante a Constituinte, de 1986 a 1988. Sem recursos, sem pessoal, sem status político, faltava ao governo vontade e compromisso político na priorização de políticas para as mulheres. O Plano Plurianual (PPA) 1995-1999 refletia isso. Apenas dois programas possuíam ações claramente voltadas às mulheres: (i) Defesa dos Direitos da Mulher, sob responsabilidade do CNDM; e (ii) Prevenção Precoce do Câncer Cérvico Uterino, do Ministério da Saúde. As mulheres ainda apareciam mais três vezes no PPA, não em linhas programáticas, mas em ações pontuais ligadas à "saúde da mulher" e "saúde materno-infantil" que, em parte, espelhavam a luta do movimento neste campo por atenção integral, desde os anos 80.

O orçamento destinado ao CNDM em 1995 revelava com nitidez o tamanho do problema. O programa "Defesa dos Direitos da Mulher" - teve autorizada no Orçamento daquele ano a quantia irrisória de R$ 239 mil , embora estivéssemos em plena mobilização local, nacional e internacional para a Conferência Mundial sobre a Mulher. Em 1996, a situação piorou: o montante foi reduzido para R$ 108 mil e, pasmem, apenas 8% desse valor foi efetivamente executado.

A situação só começou a melhorar em 1999. Com muita mobilização dos movimentos de mulheres, da Bancada Feminina e do próprio CNDM, o Congresso autorizou a destinação de R$ 3,1 milhões para o programa "Defesa dos Direitos da Mulher" no Orçamento daquele ano.

O PPA seguinte, de 2000 a 2003, foi um pouco mais sensível. Foi criado o Programa de Combate à Violência contra as Mulheres, que previa 18 atividades, desde pesquisa, edição de material, capacitação, até o apoio à criação de conselhos, manutenção de Casas-Abrigo e Serviços Especializados de Atendimento às Vítimas. O melhor desempenho do programa no período foi em 2002, quando foram autorizados R$ 4,6 milhões pelo Congresso e executados 72% (isto é, R$ 3,3 milhões).

Os resultados desse período decorreram do acúmulo de forças gerado pelas mobilizações dos movimentos de mulheres nos anos anteriores. A elaboração do Balanço Nacional das políticas públicas para as mulheres, cinco anos após Beijing, mobilizou fóruns de mulheres em praticamente todos os Estados. As mobilizações para as Marchas das Margaridas (que acontecem desde 2000), a Marcha Mundial das Mulheres (2000), a liderança dos movimentos de mulheres negras no processo da Conferência contra o Racismo (2001), a Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras (2002), entre outras, exigiam políticas e recursos públicos para a promoção da igualdade. E isso repercutiu na estrutura governamental. Datam dessa época a criação da Secretaria Nacional dos Direitos da Mulher em 2002, ainda no governo FHC, e em 2003, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) e da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, já no primeiro mandato do presidente Lula. Foi nesse período também que o CFEMEA, em debate com Coletivo Leila Diniz (RN), Criola (RJ), Cunhã (PB), Geledés (SP), IMENA (AP), Transas do Corpo (GO) e outras organizações de mulheres negras e feministas desenvolveu o conceito "Orçamento Mulher", o que permitiu aprofundar as análises e o monitoramento do Orçamento Público.

Consolidando nossas conquistas

No Ciclo Orçamentário seguinte, de 2004-2007, conseguimos consolidar essas mudanças. A elaboração do PPA foi participativa e por exigência dos movimentos de mulheres, pela primeira vez a superação das desigualdades de gênero estava dentre os grandes objetivos nacionais. Em 2004, a mobilização de 120 mil mulheres e, em 2007, de 200 mil mulheres nos processos das I e II Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres, bem como os Planos Nacionais que derivaram de cada uma delas, foram também fatores políticos relevantes desse período. Fortaleceu-se o papel articulador da SPM e isso repercutiu no desenvolvimento das políticas públicas. Passávamos neste momento a ter três programas destinados especificamente às mulheres. Os Planos aprovados previram centenas de ações. Os programas sob a responsabilidade da SPM passaram para quatro (no período anterior era apenas um), que conseguiram seu melhor resultado em 2005, com R$ 24,5 milhões autorizados e 78% executados (isto é, R$ 19,2 milhões).

Atualmente o PPA 2008-2011 contempla três programas específicos para as mulheres, com R$ 74,4 milhões autorizados. A SPM tem cinco programas sob sua responsabilidade, com R$ 60,7 milhões autorizados.

Considerando os programas que são carros-chefe da política de promoção da igualdade, ou seja, aqueles desenvolvidos pelo organismo governamental encarregado da tarefa de 1995 para cá, podemos ter a dimensão do que conquistamos: de um único programa, com R$ 239 mil em 1995, passamos a cinco programas em 2008 com R$ 60,7 milhões.

Apesar dessas conquistas, sabemos que ainda falta muito para construirmos uma ponte que dê acesso a todas as mulheres aos seus direitos legais. A política econômica não pode colocar as metas fiscais acima de tudo; devem existir metas sociais que enfrentem as desigualdades de gênero e étnico-raciais. Há que se democratizar a esfera de decisão sobre o Orçamento Público, com maior participação, transparência e controle social. Diante de tamanho desafio, com essa retrospectiva queremos alimentar a nossa força e seguir adiante. Os tempos são difíceis, as lutas são duras, mas lutar valeu e vale a pena!

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