Quase lá: Decisões sobre o orçamento não favorecem combate às desigualdades

O ajuste fiscal promovido pelo governo federal em 2005 tem como um dos pilares a geração de superávits primários cada vez maiores para dar conta dos compromissos com o pagamento de juros e encargos da dívida pública. Assim, foi estabelecida uma meta de 4,25% do Produto Interno Bruto (PIB) para todo o setor público, dos quais metade deveria ser economizada no âmbito do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social, exigindo sacrifício de parcela considerável da população. Mesmo assim, essa meta foi superada e atingiu uma economia dos gastos de cerca de 2,88% do PIB. Isso significa que deixou de ser gasta, nas políticas públicas de combate à pobreza, às desigualdades de gênero e raça e na realização de investimentos em infra-estrutura, a expressiva soma de R$ 55,7 bilhões.

A opção por essa política econômica tem custos diretos, especialmente, para parcela da população desprovida de direitos, como o previdenciário. A justificativa de falta de recursos adia a regulamentação da Emenda Constitucional nº 47 que prevê a instituição de sistema especial de inclusão previdenciária de trabalhadores de baixa renda, inclusive aos que se dedicaram toda a vida exclusivamente aos afazeres domésticos. São 655 mil pessoas, em sua grande maioria mulheres, que deixam de receber salário mínimo mensal, uma garantia de certo grau de autonomia econômica e dignidade na velhice. Além disso, essa seria uma alternativa para tirar da invisibilidade o trabalho doméstico, ignorado e desqualificado socialmente. Estima-se um custo anual de cerca de R$ 3 bilhões, o que representa apenas 5,4% do superávit fiscal promovido em 2005. Vale destacar que o projeto de lei orçamentário não prevê recursos para essa finalidade em 2006.

Os impactos dessa política de restrição fiscal no desenvolvimento das políticas públicas podem ser constatados também quando se analisa a execução das despesas em 2005. É bom lembrar que, em função do atraso da votação do Orçamento para 2006, o Poder Executivo, tentando evitar uma paralisia nos primeiros meses do ano, inscreveu em Restos a Pagar volume expressivo de despesas, aquelas autorizadas na Lei Orçamentária de 2005 que serão efetivamente pagas em 2006. Tal prática deverá elevar o percentual de execução de vários os programas.

Ao analisar os programas do Orçamento Mulher nas áreas de trabalho, emprego e renda (veja tabela a seguir), observa-se que foram efetivamente pagos em 2005 apenas R$ 4,5 bilhões. O montante representa apenas 52,9% do autorizado, sendo inscritos como Restos a Pagar outros R$ 1,3 bilhões, que significaram 16,9% do total. Considerando esses dois valores, devem ser executados R$ 5,4 bilhões - 69,8% do total das despesas autorizadas na Lei Orçamentária de 2005, percentual menor que o realizado em 2004 que foi de 77,1%. Note-se que o total executado com esses 18 programas não chega a 10% do valor do superávit primário.

Para este ano, a perspectiva não é positiva para o conjunto desses programas. Segundo os relatórios setoriais da proposta orçamentária para 2006, o valor autorizado deverá ser de R$ 5,5 bilhões. É 5% menor que em 2004 (R$ 5,8 bilhões) e 29% menor que 2005 (R$ 7,8 bilhões) (veja tabela abaixo).

Programas e Ações Selecionadas
Trabalho, Emprego e Renda
Ano Despesa Autorizada Despesa Realizada %
2004 R$ 5.839.556.859 R$ 4.503.405.182 77,1
2005 R$ 7.802.321.545 R$ 5.442.652.4161 69,8
Previsão 2006 R$ 5.539.262.655    
(1) Pagos + Restos a pagar - Anulados até 21/01/2006.

No campo

O governo federal tem divulgado resultados positivos relativamente aos programas vinculados ao desenvolvimento agrário. Destaca o assentamento de 245 mil famílias em três anos, dessas 127,5 mil só em 2005, o melhor resultado de qualquer época, gerando 850 mil novos postos de trabalho na área rural. Destaca também o expressivo crescimento no atendimento da assistência técnica que passaram de 100 mil a 450 mil assentados, além de realização de inúmeros investimentos em infra-estrutura, entendendo a reforma agrária como "um processo de emancipação social, econômica e política de imensos contingentes do campo", conforme publicado no sítio www.mda.gov.br.

Deve-se ressaltar, no entanto, a limitação orçamentária prevista para vários programas importantes que poderão comprometer o cumprimento das metas estabelecidas no Plano Nacional de Reforma Agrária.

O programa Assentamentos Sustentáveis da Reforma Agrária (0135) deverá dispor, em 2006, de R$ 1,8 bilhões, valor menor que o executado em 2005 - R$ 1,9 bilhões -, o que certamente põe em risco o cumprimento da meta de assentamento de 400 mil famílias até 2006.

A análise da execução orçamentária de alguns programas selecionados em 2005 (veja tabela na página 7) demonstra adequação, pois atinge percentual acima de 80% em quase todos eles, considerando a realização das despesas inscritas como Restos a Pagar. A exceção é o programa Agricultura Familiar (0351) que realizou somente 54,7% da dotação disponível, o que expressa significativa redução de recursos orçamentários, mas que, segundo técnicos do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), seriam substituídos por recursos não orçamentários do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Tal situação deve se repetir em 2006.

A linha de crédito Pronaf-Mulher, cujo objetivo é incentivar e reconhecer o trabalho feminino no campo por meio do crédito apropriado para a mulher, apresentou expressivo crescimento no Plano Safra. Passou, em valores aplicados, de R$ 2,5 milhões em 2003/2004 para R$ 17,3 milhões em 2004/2005.

O MDA, por meio do programa não orçamentário de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia, tem se articulado com mulheres, como nos recentes encontros regionais sobre políticas públicas para as assentadas e nos encontros com mulheres quilombolas, objetivando difundir e aperfeiçoar a perspectiva de gênero, raça e etnia e assim materializar pontos previstos no Plano Nacional de Políticas para Mulheres (PNPM). São desenvolvidas várias ações para apoio à produção, à capacitação, à assistência técnica e à extensão rural, à comercialização, ao fortalecimento institucional e à documentação civil e trabalhista, nos quais são incorporados esses mesmos recortes. O problema é que seu alcance e recursos ainda são muito limitados e os resultados, pouco conhecidos.

Trabalho e Renda

Em 2005, o programa Igualdade de Gênero nas Relações de Trabalho (1087), executado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), dispunha de dotação autorizada de quase R$ 3,2 milhões, sendo contingenciados R$ 458 mil. Assim, deverão ser realizadas despesas no valor de quase R$ 2,6 milhões - 81% da dotação autorizada e 94,1% da dotação efetivamente disponível. Tal valor representa um acréscimo de 33% relativamente ao gasto em 2004, quando foram alocados apenas R$ 1,9 milhões. São apoiadas várias iniciativas de capacitação técnica e gerencial e apoio técnico e financeiro, conforme previsto no PNPM. Mas, em função do reduzido volume de recursos disponibilizado e da estrutura limitada da secretaria, o número é pouco expressivo (em torno de 28 projetos) frente à necessidade de ampliação do acesso das mulheres ao mercado de trabalho e da garantia de autonomia econômica e financeira.

É preciso garantir efetivamente a transversalidade de gênero e raça nas políticas desenvolvidas no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), constituindo-se também um processo educativo e de fortalecimento da consciência da importância da autonomia pessoal, da alteração das relações de subordinação de gênero existentes no cotidiano, buscando o estabelecimento de relações sociais iguais entre homens e mulheres.

Para 2006, o relatório setorial aponta para esse programa uma dotação de quase R$ 4 milhões, valor superior em 25% à previsão de 2005. A SPM já disponibilizou Termo de Referência e estabeleceu prazo de 15 de fevereiro para primeira chamada para recebimento das propostas de apoio financeiro, o que deverá antecipar a execução deste ano, em função da especificidade do ano eleitoral.

Redução em 2006

A execução em 2005 dos programas desenvolvidos prioritariamente pelo MTE, considerando-se também os valores inscritos em Restos a Pagar, apresentou níveis variados. O programa Rede de Proteção ao Trabalho (0102), responsável por ações de combate à discriminação no mercado de trabalho desenvolvidas pelas Delegacias Regionais do Trabalho (DRTs), que em 2004 havia executado 92% dos valores autorizados, executou em 2005 apenas 64,5%, apesar de um pequeno crescimento no valor nominal aplicado, de R$ 17,9 milhões para R$ 20,9 milhões. Para 2006, o relatório setorial aponta uma dotação de apenas R$ 17,5 milhões.

Já o programa Economia Solidária (1133), fundamental para a garantia da autonomia econômica e financeira de segmentos expressivos de mulheres, elevou o grau de execução de 37,5%, em 2004, para 99,3%, em 2005. Nesse período, o volume de recursos aplicados passou de R$ 22,3 milhões para R$ 57,3 milhões, um crescimento de 157,5%. Infelizmente, essa trajetória deve ser interrompida em 2006, pois o relatório setorial do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2006 aponta uma previsão de apenas R$ 34,5 milhões.

O programa Primeiro Emprego (1329), um dos poucos que incorpora a transversalidade de gênero e raça, apresenta o mesmo comportamento. Foram gastos, em 2004, R$ 50,6 milhões e, em 2005, devem ser aplicados R$ 101 milhões, mas a previsão para 2006 é de apenas R$ 60 milhões.

O programa Qualificação Social e Profissional (0101), que também apresenta recorte de gênero e raça, passou por reformulação para evitar fraudes e desvios e recuperar a credibilidade perdida. Foram investidos em 2004 cerca de R$ 77,3 milhões. Em 2005, o montante deve ser de R$ 88,9 milhões. Entretanto, em 2006, a previsão é de redução da dotação para R$ 83 milhões. As metas do Plano Nacional de Qualificação, para a questão de gênero e raça/etnia, foram superadas em 2003 e 2004.

Outro ponto importante de crítica que envolve grande número de programas é a morosidade na disponibilização de recursos, que só são liberados no final do ano e mesmo em outro exercício, comprometendo sobremaneira a qualidade do gasto público.

Domésticas Cidadãs

Em plena sintonia com o PNPM, uma novidade importante para as mulheres é o início do Plano de Trabalho Doméstico Cidadão, parceria da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e do MTE, cujos objetivos são elevar a escolaridade, ampliar a proteção social, fortalecer a representação das trabalhadoras domésticas, melhorar as condições de trabalho da categoria e estimular o debate, sobre a revisão da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e o estudo da legislação de edificação das dependências domésticas junto ao Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea). Serão também veiculadas campanhas de valorização do trabalho doméstico. No entanto, o alcance inicial do programa é de somente 350 trabalhadoras em seis estados. É preciso ampliar em muito o alcance desse plano, pois segundo a Seppir são cerca de 6 milhões de mulheres, dessas 56% negras, que vivem em situação de grande exploração e desvalorização.

É importante frisar que, dos quatro programas que incorporam a perspectiva de gênero e raça nessa área, três deverão apresentar redução da dotação aprovada para 2006.

A análise orçamentária já demonstra a execução de várias ações pontuais, algumas inclusive impulsionadas pelo processo de implementação do PNPM, dentro do eixo de Autonomia, Igualdade no Mundo do Trabalho e Cidadania. Mas, é preciso avançar na transparência e na participação social no processo de planejamento, execução e avaliação do conjunto das políticas envolvidas, de forma que as organizações de mulheres possam atuar, acompanhar e cobrar em todas as fases da efetivação das políticas públicas. A criação do Comitê de Articulação e Monitoramento do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres é um importante passo nessa direção, mas é preciso acelerar tal processo.

Execução dos Orçamentos da União em 2004 e 2005 para os programas selecionados na área de trabalho, emprego e renda e o Projeto de Lei Orçamentária Anual para 2006
Programa 2004 2005 2006 Var %
A
Autorizado
B
Pagos+Restos a Pagar Pagos
%
Execução
C
Autorizado
D
Liquidado
E
Pago
F
Restos a Pagar - Anulados
G
Restos a Pagar Pagos
H
Pagos + Restos a Pagar - Anulados
%
Execução
I
Relatório Setorial 2006
I/A I/C I/H
0099 - INTEGRACAO DAS POLITICAS PUBLICAS DE EMPREGO, TRABALHO E RENDA 108.546.203 89.260.901 82,23 109.204.566 84.026.425 83.856.673 15.804.387 3.325.251 99.661.060 91,3 89.684.488 (17,4) (17,9) (10,0)
0101 - QUALIFICACAO SOCIAL E PROFISSIONAL 107.847.479 77.337.626 71,71 130.134.247 67.573.207 67.503.996 21.365.929 2.738.216 88.869.925 68,3 83.059.685 (23,0) (36,2) (6,5)
0102 - REDE DE PROTECAO AO TRABALHO 19.429.800 17.925.823 92,26 32.357.547 19.391.669 19.367.292 1501011 29.936 20.868.303 64,5 17.452.000 (10,2) (46,1) (16,4)
0103 - DESENVOLVIMENTO CENTRADO NA GERACAO DE EMPREGO, TRABALHO E RENDA 500.000 500 0,10 500.000 0 0 0 - 0 0,0 500.000 0,0 0,0
1133 - ECONOMIA SOLIDARIA EM DESENVOLVIMENTO 59.396.656 22.272.288 37,50 57.732.007 21.910.283 21.786.144 35.562.113 124.138 57.348.257 99,3 34.486.333 (41,9) (40,3) (39,9)
1329 - PRIMEIRO EMPREGO 160.626.710 50.565.637 31,48 140.399.903 65.036.254 64.383.424 36.605.116 897.861 100.988.540 71,9 60.100.000 (62,6) (57,2) (40,5)
0135 - ASSENTAMENTOS SUSTENTAVEIS PARA TRABALHADORES RURAIS 1.469.438.931 1.170.909.367 79,68 2.146.015.009 1.670.704.017 1.648.538.192 256.214.950 4.271.237 1.904.753.142 88,8 1.797.325.238 22,3 (16,2) (5,6)
0137 - DESENVOLVIMENTO SUSTENTAVEL NA REFORMA AGRARIA 298.021.303 196.728.174 66,01 510.461.715 249.004.229 242.632.168 175.740.342 2.950.164 418.372.510 82,0 524.776.409 76,1 2,8 25,4
0351 - AGRICULTURA FAMILIAR - PRONAF 3.000.091.148 2.713.014.134 90,43 3.503.907.912 1.768.591.660 1.768.572.061 149.407.252 24.145.241 1.917.979.313 54,7 1.919.493.073 (36,0) (45,2) 0,1
1116 - CREDITO FUNDIARIO 451.761.000 120.736.050 26,73 547.973.000 92.862.554 91.526.154 410.729.976 90.000 502.256.130 91,7 551.468.000 22,1 0,6 9,8
1334 - DESENVOLVIMENTO SUSTENTAVEL DE TERRITORIOS RURAIS 23.200.000 22.140.021 95,43 135.541.090 24.934.667 24.934.558 96.635.454 - 121.570.012 89,7 169.001.136 628,5 24,7 39,0
0419 -DESENVOLVIMENTO DE MICRO, PEQUENAS E MÉDIAS EMPRESAS 47.609.889 9.567.152 20,09 51.048.161 50.668.929 47.264.429 3745500 752.000 51.009.929 99,9 57.302.678 20,4 12,3 12,3
1008 - INCLUSAO DIGITAL 25.750.000 4.999.840 19,42 348.233.218 34.101.437 18.195.570 82.777.381 2.531.316 100.972.951 29,0 176.615.997 585,9 (49,3) 74,9
1015 - ARRANJOS PRODUTIVOS LOCAIS 53.891.440 2.965.069 5,50 48.624.930 30.568.066 16.719.286 22.453.815 1.668.336 39.173.101 80,6 100.000 (99,8) (99,8) (99,7)
1016 - ARTESANATO BRASILEIRO 6.986.257 880.201 12,60 5.734.264 917.813 917.813 1.648.158 343.131 2.565.971 44,7 295.798 (95,8) (94,8) (88,5)
1087 - IGUALDADE DE GENERO NAS RELACOES DE TRABALHO 3.935.000 1.933.019 49,12 3.183.872 1.967.250 1.965.817 602.325 426.432 2.568.142 80,7 3.980.000 1,1 25,0 55,0
1336 - BRASIL QUILOMBOLA 28.619.104 9.852.137 7.134.149 2.717.988 197.129 9.852.137 34,4 47.741.820 66,8 384,6
1387- MICROCRÉDITO PRODUTIVO ORIENTADO 0 1.500.000
8009 - ORGANIZACAO PRODUTIVA DE COMUNIDADES POBRES - PRONAGER 2.525.043 2.169.380 85,91 2.651.000 1.785.880 1.785.880 2.057.116 20.000 3.842.996 145,0 4.380.000 73,5 65,2 14,0
Total 5.839.556.859 4.503.405.182 77,12 7.802.321.545 4.193.896.474 4.127.083.603 1.315.568.813 44.510.388 5.442.652.416 69,8 5.539.262.655 (5,1) (29,0) 1,8

Fonte: Banco de dados da Execução Orçamentária da União da Consultoria de Orçamento da Câmara Federal - atualização 20/01/2006 e relatórios setoriais PLOA 2006.

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