Hildete Pereira de Melo, Claudio Monteiro Considera e Alberto Di Sabbato
Professor@s de economia da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense
Todas as atividades realizadas no interior dos domicílios têm enorme importância na reprodução da vida humana, mas estas tarefas são relegadas a um plano inferior na nossa sociedade. Uma provável interpretação para este não reconhecimento origina-se na histórica discriminação sofrida pelas mulheres nas diversas sociedades, a quem foi delegada a execução dessas tarefas. Os afazeres domésticos, por não estarem associados a uma geração equivalente de renda, são ignorados pela teoria econômica, que não os valora e não os contabiliza no Produto Interno Bruto (PIB) dos países.
O Sistema de Contas Nacionais mede todos os bens e serviços que envolvam a remuneração dos fatores de produção, fazendo com que prevaleça a identidade: produto é igual à renda. Vale dizer, a utilização de fatores de produção no processo de produção gera o equivalente em remunerações ao que o fator de produção contribuiu para o produto em adição de valor. Parte dos serviços gerados na economia é denominada não-mercantil por não ter valor de mercado. Como serviços não-mercantis, incluem-se os serviços domésticos remunerados, prestados por trabalhadores autônomos. Seu valor da produção é medido pelo valor das remunerações desses trabalhadores. Portanto, exclui o serviço doméstico executado por conta própria e sem remuneração.
É necessário citar aqui duas situações interessantes que implicam em se considerar situações fictícias de maneira a se proceder com a maior acuidade possível à mensuração da produção. Uma delas refere-se ao valor imputado de aluguéis aos imóveis de uso próprio. Ou seja, os imóveis geram um serviço de ocupação (moradias, instalações agrícolas, industriais, ou de serviços) que, quando se refere aos imóveis alugados, é medido pelo valor do aluguel; quando os imóveis são usados pelo proprietário, esse mesmo serviço gerado é medido pelo valor de imóveis alugados de características semelhantes. Outra situação refere-se à produção de bens agrícolas ou industriais para uso próprio cujo valor é equivalente ao seu custo de produção.
No caso do trabalho doméstico observa-se que, quando exercido por terceiros, seu valor equivale ao valor de sua remuneração. Entretanto, quando exercido por alguém da própria família ele não é computado nas contas nacionais. Por que razão, como se viu no parágrafo anterior, ao fator de produção trabalho não se dá o mesmo tratamento que ao fator capital (o imóvel residencial)? É útil notar que o Sistema de Contas Nacionais das Nações Unidas (UN/SNA), no seu capítulo VI (a conta de produção) discute estas questões e justifica porque os afazeres domésticos devem ser excluídos do cálculo do PIB. Argumenta que no caso dos bens para auto-consumo, estes podem se destinar alternativamente ao mercado, enquanto os serviços de uso próprio (afazeres domésticos) não têm essa qualidade, pois não exprimem a realidade do mercado capitalista.
Além disso, o SNA justifica a imputação dos aluguéis devido a uma pretensa grande diferença, entre países, na proporção de imóveis alugados e imóveis próprios. Se essa é uma justificativa razoável, pode-se argumentar que há também uma grande diferença na disponibilidade de bens e serviços auxiliares mercantis existentes entre os diversos países que substituem o tempo dos afazeres domésticos; por sua vez esses bens e serviços mercantis criam valores que são computados no PIB, reduzindo o PIB dos países em que os afazeres domésticos são mais freqüentes e realizados pelas próprias famílias. Contabilizar o valor dos afazeres domésticos no PIB terá impacto diferente quando se tratar de países mais desenvolvidos que o Brasil. No Brasil e nos países menos desenvolvidos, predominam altas taxas de desemprego associado aos baixos salários que geram a exclusão voluntária do mercado de trabalho de um grande contingente de pessoas em idade ativa. Para essas pessoas o custo de oportunidade entre exercer uma atividade remunerada ou se dedicar a afazeres domésticos (cozinhar, limpar, lavar, cuidar dos filhos, dos doentes e idosos), não compensa. Nos países mais desenvolvidos, com maior oferta de empregos para pessoas qualificadas, a balança pende ao contrário. Tendo em vista o elevado custo de trabalhadores domésticos, foram desenvolvidas facilidades, no tocante a creches, escolas, alimentação e limpeza, que tornam possível aos casais exercerem atividades remuneradas e ao mesmo tempo dar conta dos afazeres domésticos. Por sua vez, a produção pelo mercado de bens e serviços substitutivos dos afazeres domésticos leva ao crescimento do PIB nos países mais desenvolvidos.
Por sua vez a relevância dessa discussão reside no fato de que, embora, atualmente, a discriminação da mulher seja menos intensa, pode-se dizer que parte da subsistente desvalorização do papel feminino, deriva da não contabilização (valorização) desses afazeres no PIB. Desconhecê-los reforça o conceito de invisibilidade, que caracteriza o trabalho doméstico e a inferioridade do papel da mulher na sociedade. Mostrar o quanto eles valem e contribuem para o bem estar familiar e do país, talvez ajude a reduzir essa discriminação. A despeito de não serem contabilizados, ou seja, valorados, contados, valorizados, os afazeres domésticos existem e contribuem, de fato, para aumentar a disponibilidade de serviços da família e, vale dizer, o bem estar familiar. Mensurar esses afazeres é particularmente relevante se as contas nacionais pretendem de fato medir a disponibilidade efetiva de bens e serviços da nação.
A partir das informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE, as contas nacionais do Brasil mensuram a produção dos trabalhadores domésticos remunerados. Desde 2001, a mesma PNAD investiga o número de horas utilizado pela população na execução de afazeres domésticos por unidade da federação, classificando-as por sexo e faixa etária. O que se propõe aqui é o uso dessas informações para mensurar o valor dos afazeres domésticos executados por membros das famílias não remunerados. Para isso, utilizou-se a remuneração média dos serviços domésticos remunerados, por estado, por hora e multiplicou-se pelo número de horas de afazeres domésticos, por estado, sexo e faixa etária.
Para fazer a contabilidade dos afazeres domésticos considerou-se o rendimento médio registrado na PNAD no mês de setembro como sendo o rendimento médio do ano. A participação dos afazeres domésticos no PIB de cada ano é bastante semelhante e sua média é de 12,76% calculando-se com os valores de setembro. Em termos de valor, caso esse percentual se mantivesse constante em 2004, como ocorreu nos três anos anteriores, se acresceria ao PIB nacional R$ 225,4 bilhões e o PIB de 2004 seria de R$ 1.992,0 bilhões e não os R$ 1.766,6 bilhões que o IBGE anunciou. Tendo em vista o número de horas ocupadas pelas mulheres em afazeres domésticos, o valor gerado pelos afazeres domésticos por parte das mulheres é, em média, de 82% e o restante pelos homens. Estes 82% de afazeres domésticos realizados pelas mulheres no ano de 2004 teriam representado 185 bilhões de reais. Estes números mensuram o que grande parte das pessoas busca ignorar: o valor que os afazeres domésticos têm para nossa vida e bem-estar.
Para saber mais:
Melo, Hildete Pereira de & Considera, Cláudio M., & Sabbato, Alberto Di, "Os Afazeres Domésticos Contam", Niterói, Faculdade de Economia, Universidade Federal Fluminense, Texto para Discussão, n;177, set/2005, www.economia.uff.br.