Desde que foi criado, o movimento feminista vem provocando uma profunda revolução cultural no ambiente doméstico e no espaço público da sociedade. Diante do novo cenário político, estabelecido no Brasil, após as Eleições 2002, esse mesmo movimento pretende atuar a fim de contribuir com mudanças substantivas, em defesa da democracia - nas instituições e na vida cotidiana -, do direito à liberdade e à diversidade. Este é o tema da entrevista realizada com Sílvia Camurça, secretária executiva da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB).
CFEMEA - Qual será o papel das ONGs e movimentos sociais diante do novo contexto sócio-político brasileiro?
Sílvia Camurça - Prefiro falar de responsabilidade ao invés de papel e em termos de responsabilidade acho que são muitas. Os movimentos sociais brasileiros e as ONGs a eles vinculadas foram importantíssimos para o processo atual de democratização do Brasil e para o resultado eleitoral que levou Lula à presidência da República. Por isso, temos todos e todas algumas responsabilidades. Manter a capacidade de contestação é uma delas; reforçar a capacidade de disputar significados é outra. A primeira é importante para nos manter sendo o que sempre fomos: forças políticas autônomas, inclusive em relação a partidos. A segunda é fundamental para enfrentar a oposição sistemática que esta vitória carreará contra si, em especial a oposição que se fará via meios de comunicação.
A vitória de Lula não significa a derrota do pensamento neoliberal na imprensa brasileira. Esta hegemonia está abalada, mas não está derrotada. Por isso, o governo Lula será freqüentemente avaliado desde este ponto de vista. Os movimentos e ONGs precisarão assumir a responsabilidade de produzir sua própria interpretação dos fatos, como sempre fizemos, mas ampliando nossa capacidade de comunicação política. Temos a responsabilidade de fazer valer a consigna "a luta continua".
CFEMEA - Que avaliação a Articulação de Mulheres Brasileiras faz a respeito do programa "Compromisso com as Mulheres", apresentado pela Coligação Lula Presidente?
Sílvia Camurça - A AMB não tem uma avaliação a respeito. É um documento que não foi debatido coletivamente por nós. Pessoalmente, acho importante que ele exista, dá às mulheres um ponto de partida para o diálogo com o novo governo. O documento apresenta o que seriam os compromissos de governo e, nisto, indica sintonia com as lutas e análises da situação das mulheres que os movimentos vêm produzindo. Tem um foco no trabalho, no que coincide com a prioridade do governo Lula, mas destaca a responsabilidade do Estado pela efetivação dos direitos sociais, o compromisso com o combate à violência, e a defesa dos direitos reprodutivos e assistência integral à saúde da mulher.
Entretanto, é preciso com-preender este documento em seu contexto. Na minha avaliação, ele foi pensado como instrumento de comunicação específico para determinado segmento eleitoral, neste caso os movimentos sociais de mulheres. Acho que é o único documento deste gênero entre as candidaturas que estavam postas nas eleições presidenciais.
Não se espere, entretanto, encontrar ali diretrizes operacionais consistentes para ações governamentais. Isto está por ser construído. O documento aponta os compromissos políticos gerais, que é o que se faz quando se está em campanha.
CFEMEA - Qual a expectativa da AMB em relação ao compromisso de criação da Secretaria Especial da Mulher, vinculada ao presidente da República?
Sílvia Camurça - Ela será efetivada numa situação institucional e organizacional mais favorável que a atual secretaria, por conta de seu vínculo direto com a Presidência da República. Mantidos ou ampliados o orçamento atual e garantindo-se corpo técnico adequado teremos um importante instrumento de governo para promover justiça de gênero através das políticas públicas.
CFEMEA - Como as propostas apresentadas pela equipe do novo governo se relacionam com a Plataforma Política Feminista e outras pautas do movimento feminista e de mulheres?
Sílvia Camurça - Nenhum governo, inclusive o governo Lula, poderia enfrentar totalmente os desafios da PPF, até porque grande parte deles se orienta para a própria sociedade e exigirão algumas décadas para serem concretizados, pois tratam de mudanças estruturais. A Plataforma é um instrumento do próprio movimento para guiar sua ação de transformação social, um instrumento amplo em sua radicalidade e ao mesmo tempo muito específico em suas proposições.
Quanto às pautas, neste momento pós-eleitoral e de transição, percebo um vínculo profundo entre o discurso do presidente eleito e o discurso da Plataforma em relação ao combate à hegemonia do mercado sobre a economia e a luta contra as desigualdades sociais, dois aspectos que permeiam todo os capítulos da PPF. No entanto, será a forma de conduzir o governo e as políticas públicas que irá influir.
CFEMEA - O que você acha importante num relacionamento entre o movimento feminista e de mulheres e o governo?
Sílvia Camurça - O relacionamento entre movimentos sociais e governos no Brasil tem sido problemático desde sempre. Nos anos recentes, deixou simplesmente de existir.
Em primeiro lugar, é preciso haver predisposição para restabelecer um relacionamento e em seguida estabelecer um diálogo. Há sinais de que há esta disposição, tanto da parte do governo, que indicou feministas para equipe de transição, como da parte dos movimentos, que está tecendo uma articulação para pensar este relacionamento. Estabelecido o relacionamento, é imprescindível a manutenção e fortalecimento da autonomia do movimento de mulheres. O movimento não deve atrelar seu futuro a este governo, ou a qualquer outro. Isto seria sua morte como sujeito político. Além da ação frente aos governos, é necessário seguir a luta feminista na sociedade, manter aquilo que se chama de ação cultural dos movimentos sociais e manter os eventos, encontros, enriquecer o pensamento e projeto feminista e renovar sempre a mística do próprio movimento. Isto é o que nos confere identidade coletiva e nos manterá autônomas para estabelecer este e qualquer outro relacionamento político.