Quase lá: Alterar PL do Estupro é 'artimanha política' da bancada fundamentalista, criticam feministas; movimentos cobram arquivamento do projeto

PL tem ampla rejeição social, mas segue vivo na agenda de deputados reacionários; movimentos prometem novos protestos

Cristiane Sampaio


Brasil de Fato | Brasília (DF) |
29 de junho de 2024 às 10:27

Manifestantes de Belo Horizonte nas ruas contra o PL do Estupro - Luiz Rocha / Mídia Ninja

 

Lideranças feministas reagiram à declaração do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) de que a polêmica proposta que equipara o aborto ao homicídio será alterada para "evitar desgastes desnecessários". Uma das vozes mais estridentes da bancada evangélica no Congresso Nacional e coautor da medida, o parlamentar diz que agora irá propor que não haja pena de prisão para vítimas de estupro que queiram interromper a gestação após 22 semanas de desenvolvimento fetal. Esse aspecto é um dos mais sensíveis entre os que tocam o debate em torno do Projeto de Lei (PL) 1904/2024, apelidado de "PL do Estupro", e tem sido bastante alvejado pelos críticos da proposta.

"Não vejo nenhuma mudança que possa ser aceita, nada que possa fazer esse PL se tornar digerível para as mulheres porque, em qualquer que seja o aspecto, ele retira direitos em um campo em que nós precisamos avançar. Não há amenização ou mudança possível. Esse PL simplesmente não pode passar, e o que esperamos é que a sociedade barre essa atrocidade", critica a militante Elizabeth Hernandes, do movimento Espíritas à Esquerda, um dos grupos religiosos que têm se levantado contra a proposta.

No Brasil, a interrupção voluntária da gravidez é permitida em casos de gestação com risco de vida para a mãe, estupro e fetos anencéfalos. O PL invalida essas permissões ao criminalizar o aborto após após 22 semanas de gravidez em qualquer que seja o cenário.

No campo progressista, parlamentares e lideranças populares veem a última manifestação de Sóstenes e aliados como uma tentativa de conter o desgaste midiático que o PL causou ao grupo. A bancada fundamentalista agora recalcula a rota de atuação e tenta fazer o projeto avançar na Câmara, onde o texto deve ser avaliado por uma comissão especial no segundo semestre. Representantes de diferentes segmentos têm reagido à nova empreitada da ala reacionária, como é o caso do coletivo Católicas pelo Direito de Decidir (CDD).

"A gente vê com muita preocupação que o deputado Sóstenes esteja agora fazendo essa artimanha política por ter visto que esse PL não tem nenhum apelo social. A sociedade brasileira recusa ampliar qualquer tipo de criminalização para pessoas que já sofrem diversas violências, como é o caso de crianças estupradas", ressalta a militante do CDD Tabata Tesser.


Mulheres em manifestação na Avenida Paulista contra o PL do Estupro / Elineudo Meira/@fotografia.7

 

A declaração da ativista encontra referência em diferentes estudos que aferem a opinião pública diante desse tipo de questão. Pesquisa divulgada pelo Datafolha no último dia 21, por exemplo, mostrou que 58% dos brasileiros acima de 16 anos se dizem contrários à proibição do aborto em qualquer tipo de situação, mesmo que esse grupo tenha divergências internas sobre os rumos que deveriam ser dados à questão. Já quando se trata especificamente do PL 1904/2024, o Datafolha mostra um índice de rejeição ainda maior: 66% da população discordam do teor do projeto.

"É também por isso que o Brasil deveria estar discutindo o combate à exploração infantil, ao estupro, aos alarmantes números de gravidez na adolescência, mas o que a gente vê é, na verdade, um oportunismo político. Eles perceberam que houve uma mobilização na sociedade porque muitas pessoas foram às ruas se manifestar dizendo que crianças não são mães e que seria um absurdo que o Brasil se ajoelhasse diante do profundo fundamentalismo do Sóstenes pra aprovar um projeto que está do lado do estuprador. Na verdade, eles não estão melhorando o PL. Estão acuados pela mobilização das mulheres e da opinião pública, que denunciaram a gravidade desse projeto", acrescenta Tabata Tesser.

Sóstenes Cavalcante diz ter supostamente mudado de opinião após um vídeo divulgado pela ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL) nas redes sociais no começo desta semana. Na publicação, a esposa de Jair Bolsonaro (PL) sugere mudanças no projeto de lei, com aumento das penalidades hoje impostas a estupradores, o cumprimento integral da pena "sem progressão de regime e sem saidinhas", exceto nos casos em que, depois de cumprir dois terços da pena, o detento passe por um processo de "castração química". Na manifestação, Michelle defende que crianças ou mulheres vítimas de estupro não sejam punidas. A iniciativa da ex-primeira-dama levantou novas críticas.

"As mulheres brasileiras não são idiotas. A dobradinha de Michelle Bolsonaro com o propositor do PL do Estupro mudou o foco: se antes nos queriam presas, agora nos querem mortas. Eles dizem que agora a pena seria somente para os profissionais de saúde que realizarem o procedimento, ou seja, impedem esses profissionais de fazerem o aborto acima de 22 semanas [de gestação]. E o que eles estão dizendo pra essas mulheres e crianças, então, é que elas não podem fazer o procedimento. Ou elas vão fazer sozinhas?", criticou a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP), em vídeo publicado via Instagram.

"Se elas fizerem sem a assistência de um profissional de saúde, será que têm alguma chance de sobrevivência? Isso é ainda mais cruel do que a proposta original. Eles acham que somos burras. A gente sabe exatamente qual é o objetivo deles: inviabilizar a lei que desde 1940 garante que as mulheres não são obrigadas a levarem adiante uma gestação dos seus estupradores. Nós vamos até o fim na mobilização, não só contra o PL 1904, mas na defesa incondicional de que a lei de 1940 seja cumprida", emendou Sâmia.


Manifestação em São Paulo contra PL 1904; feministas defendem naufrágio do projeto na Câmara, sem que proposta chegue a ser votada / Paulo Pinto/Agência Brasil

Cenário

O aceno da ex-primeira-dama em relação ao PL 1904 surge depois de a ala bolsonarista, entusiasta da medida, enfrentar duras críticas até mesmo entre nomes do campo da direita. A ampla reação popular ao PL constrangeu inclusive o "centrão", grupo majoritário de parlamentares que tradicionalmente se alinham a pautas de teor punitivista.

Assinado por outros deputados de perfil fundamentalista além de Sóstenes, o PL prevê reclusão de seis a 20 anos para mulheres e crianças que interrompam a gravidez, mesmo em casos de estupro. A pena é maior que a imposta atualmente pelo Código Penal para estupradores, que pegam de seis a dez anos de cadeia. A proposta de Michelle para ampliar a pena para quem pratica violência sexual também não agradou grupos feministas.


Com Jair Bolsonaro na mira da Justiça e considerado inelegível, Michelle Bolsonaro tenta se cacifar para eventual candidatura em 2026; ex-primeira-dama usa pauta reacionária como agenda de agitação eleitoral/ Sergio Lima/AFP

 

"Isso não ameniza o PL. Pelo contrário, até pode piorar porque o que ela propõe não vai no sentido do acolhimento das vítimas de estupro. A ideia dela não é permitir o aborto – hoje já garantido em lei – para essas vítimas. Com a proposta dela, mulheres e crianças ainda seriam obrigadas a levar uma gestação adiante mesmo ela tendo resultado de violência sexual. E a Michelle propõe a retirada de pena sobre essas mulheres, mas criminaliza os médicos que realizem o aborto. Essa proposta empurra, então, as vítimas para o aborto clandestino, atentando contra as suas vidas", examina a assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), Clara Wardi.

B.O.

Para a especialista, o discurso agora entoado por Michelle, Sóstenes e correligionários retrocede ainda em outro aspecto: o grupo advoga pela exigência de Boletim de Ocorrência (B.O.) para a garantia de aborto legal. A legislação atual não impõe essa obrigatoriedade. Clara Wardi aponta que essa exigência "fragiliza a palavra da mulher diante do aparelho do Estado".

"E nós sabemos, por meio de análises de políticas públicas, que muitas vezes a apresentação do B.O. afasta as vítimas de violência sexual dos serviços de saúde porque elas têm receio de quais seriam os impactos dessa denúncia na sua vida. Nesse momento, as mulheres estão querendo um acolhimento dentro dos serviços de saúde, e não uma política policialesca que foque na punição do agressor em vez de focar no cuidado com suas vidas", argumenta a assessora do Cfemea.


Líder evangélico na Assembleia de Deus, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) conduz articulações em defesa de PL do Estupro / Mario Agra/Agência Câmara

Protestos

O PL 1904/2024 teve a urgência votada às pressas no plenário da Câmara dos Deputados no último dia 13 e depois desacelerou após a forte reação popular contra o texto. Puxada por movimentos feministas, a campanha de rejeição envolveu setores da classe média, artistas, movimentos populares, especialistas e outros atores, que se uniram em diferentes mobilizações nas redes sociais e nas ruas. Emparedado diante das muitas críticas que surgiram, o presidente Arthur Lira (PP-AL), fiador da votação de urgência do texto, acabou adiando a análise do mérito do PL e anunciou a instalação da comissão especial para daqui a alguns meses.

A militante Elizabeth Hernandes projeta que a tendência é de sequenciamento das ações de rua até que o projeto de lei seja derrotado nas eventuais votações da Câmara ou mesmo arquivado, como defendem os grupos feministas. "No Congresso, eles sempre conseguem brecha para passar o que querem, mas vejo que as mulheres estão muito dispostas a seguirem mobilizadas. Esse revés do PL até ajudou a gente a se reorganizar, inclusive. Vejo mais ações adiante."

Edição: Nicolau Soares

 

 


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