Projeto de lei que equipara aborto legal acima de 22 semanas a homicídio pode ser votado em regime de urgência.
O Projeto de Lei 1904/2024, que propõe equiparar o aborto após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio, mesmo nos casos em que é legalizado, poderá ser votado em regime de urgência. Na última terça-feira (4), foi incluída na pauta do plenário a votação de Requerimento de Urgência para acelerar a tramitação da proposta. Isso significa que o PL pode ser aprovado sem a devida análise pelas comissões, acelerando o processo e limitando o debate sobre o tema.
Em carta direcionada a deputadas e deputados nesta quarta-feira, 68 organizações feministas questionam: “Vocês querem que crianças sejam mães?”. As entidades pedem aos parlamentares que se posicionem contra a proposta, destacando a necessidade de comprometimento “em favor da vida digna de milhares de meninas que têm suas infâncias e projetos de vida interrompidos por serem forçadas a continuar com uma gravidez.”
As organizações alertam para a elevada taxa de gravidez infantil decorrente de estupros de vulneráveis e as dificuldades de acesso ao aborto legal no país. Esta situação foi analisada pelo Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw) da ONU, resultando em recomendações ao Estado Brasileiro.
“Em um país em que, nos últimos 10 anos, a média de partos de meninas com menos de 14 anos foi de mais de 20 mil por ano, sendo 74,2% negras, não é admissível que novas barreiras sejam impostas para que o aborto legal seja realizado”, ressaltam.
Projeção realizada por organizações feminista em 4 de junho | Crédito: reprodução.
A carta aponta que a proposta mira nas mulheres e crianças vítimas de estupro que serão obrigadas a seguir com a gestação. Desde 1940, o aborto é permitido em caso de gravidez resultante de estupro, ou de risco à vida da gestante. Desde 2012, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu a possibilidade de interrupção da gestação nos casos de anencefalia.
Regime de urgência
Se o requerimento de urgência for aprovado na sessão desta quarta-feira (5), o PL poderá ser votado no plenário a qualquer momento. Clara Wardi, assessora técnica do Cfema – Centro Feminista de Estudos e Assessoria, explica que o regime de urgência é uma ferramenta legislativa que os parlamentares podem utilizar para pedir prioridade de votação para algum projeto, mas, neste caso, está sendo usado como manobra política.
“Tem outro projeto muito parecido com este PL, que tinha três requerimentos de urgência, mas o PL 1904 foi eleito por meio de negociações do parlamentar Sóstenes Cavalcante, que propôs o projeto, com o presidente da casa, Arthur Lira, para que tivesse prioridade de tramitação”, expõe Wardi
“O que estamos vendo é um movimento de drible do congresso, feito pelos parlamentares de extrema direita para priorizarem as suas pautas, a partir de um viés ideológico, anticientífico e totalmente contrário aos direitos das meninas, mulheres e pessoas que gestam”, ressalta.
De autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), o projeto de lei busca modificar o Código Penal de 1940, adicionando parágrafos aos artigos 124, 125, 126 e 128, que tratam do aborto. A proposta defende que “quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas, as penas serão aplicadas conforme o delito de homicídio simples previsto no art. 121 deste Código”. Além disso, médicos que realizarem o procedimento após 22 semanas poderão responder criminalmente.
“O aborto legal em gestações acima de 22 semanas é muito recorrido por meninas que sofreram violência sexual e têm mais dificuldade de comunicar e de acessarem o serviço de aborto, já que muitas vezes o estuprador é alguém da própria família”, recorda Wardi.
A cientista política e feminista Jacqueline Pitanguy enviou carta direcionada ao deputado Lira pedindo que o projeto não seja votado em regime de urgência. “Trata de matéria que afeta o direito à saúde, à dignidade e mesmo à vida de milhões de mulheres e meninas brasileiras devendo, assim, ser precedida de amplo debate”, ressalta no documento.
Deputados e deputadas, vocês querem que crianças sejam mães?
Já a carta enviada pelas organizações destaca que as mulheres e meninas pobres e negras serão as mais afetadas. “Sabe-se que a busca pelo aborto em idades gestacionais acima de 22 semanas é, em geral, realizada por mulheres e meninas em situação de vulnerabilidade socioeconômica, que moram em locais com acesso inexistente ou dificultado à saúde, com deficiências cognitivas, adolescentes e jovens, de baixa escolaridade”, afirma.
O documento lembra que 2022 registrou o maior número de registros de estupro e estupro de vulnerável da história, com 74.930 vítimas, sendo que 6 em cada 10 vítimas eram vulneráveis, com idades entre 0 e 13 anos, em sua maioria vítimas de familiares e outros conhecidos.
“Muitas dessas crianças, caso engravidassem, seriam obrigadas a seguir com a gestação, interrompendo a possibilidade de construção de um futuro digno”, destaca.
O documento é assinado por ABONG – Associação Brasileira de Ongs, AJD – Associação Juízes para a Democracia, Anis – Instituto de Bioética, AMB – Articulação de Mulheres Brasileira, AMNB – Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras, Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres, Católicas pelo Direito de Decidir, CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação, Cfemea – Centro Feminista de Estudos e Assessoria, CAMTRA – Casa da Mulher Trabalhadora, Cladem/Brasil, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, Coletiva MULEsta (Pernambuco), Coletivo Leila Diniz (Rio Grande do Norte), Coletivo Margarida Alves (Minas Gerais), Coletivo NegreX, CFP – Conselho Federal de Psicologia, CFESS – Conselho Regional de Serviço Social, Criola, Cunhã Coletivo Feminista, CUT – Central Única das Trabalhadoras e Trabalhadores, DeFEMde – Rede Feminista de Juristas, EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero, FEPLA – Frente Evangélica pela Legalização do Aborto, FFL – Frente Feminista de Londrina, FPLA – Frente Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto da Baixada Santista, Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, Frente Parlamentar Feminista Antirracista com Participação Popular, Frentes Regionais pela Legalização do Aborto dos seguintes estados: CE, ES, MG, PA, PB, PE, RJ, RN, RS, SC, SP, Grupo Curumim – Gestação e Parto, Grupo de Mulheres Lésbicas e Bissexuais Maria Quitéria (Paraíba), Humaniza Coletivo Feminista (Amazonas), Instituto Marielle Franco, LBL – Liga Brasileira de Lésbicas, Levante Popular da Juventude, Marcha Mundial das Mulheres, MVM – Milhas pela Vida das Mulheres, MIM – Movimento Ibapuano de Mulheres (Ceará), Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero, Movimento Mulheres Negras Decidem, Nem Presa Nem Morta, Oitava Feminista (Rio de Janeiro), Associação Portal Catarinas, RASPDD – Rede De Assistentes Sociais pelo Direito de Decidir, REDEH – Rede de Desenvolvimento Humano, Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, RFS – Rede Feminista de Saúde, RENFA – Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, GDC/BR – Rede Médica pelo Direito de Decidir (Good Doctors for Choice), RENAP – Rede Nacional de Advogados Populares, Secretaria Nacional de Mulheres do PT , Setorial Nacional de Mulheres do PSOL, SOF – Sempreviva Organização Feminista (São Paulo), SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia (Pernambuco), Tamo Juntas – Assessoria Multidisciplinar para Mulheres em Situação de Violência, UBM – União Brasileira de Mulheres e UNE – União nacional dos Estudantes.
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PL cita casos das meninas do Espírito Santo e Santa Catarina
A justificativa do projeto é fundamentada no conceito de “viabilidade fetal presumida” e menciona casos amplamente divulgados pela mídia envolvendo crianças vítimas de estupro de vulnerável. Para os parlamentares que apoiam a proposta, essas crianças não deveriam ter tido acesso ao direito ao aborto legal.
Um deles é o caso da menina de Santa Catarina, cuja gravidez foi descoberta pela mãe na 22ª semana de gestação, quando então procurou o serviço de aborto legal. A equipe médica se recusou a realizar o procedimento e o caso foi levado ao tribunal. Foi quando a juíza Joana Ribeiro Zimmer e a promotora Mirela Dutra Alberton, do Ministério Público catarinense, perguntaram se a menina “suportaria mais um pouquinho?”. Na época, a juíza comparou o aborto acima de 22 semanas como “uma autorização para homicídio”.
Em entrevista à época do caso, a advogada Sandra Lia Bazzo, co-coordenadora do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, destacou que o Código Penal gradua de forma diferente os diversos estágios da vida. Quando se trata de vida em gestação, é aborto. O homicídio só existe quando se mata uma pessoa já nascida.
“O próprio Código Civil diferencia o conceito de pessoa do de ‘nascituro’ porque a personalidade civil começa a partir do nascimento com vida”, explicou Bazzo.
O projeto também cita a “Cartilha de Atenção Humanizada às Meninas e Mulheres em Situação de Interrupção Legal da Gravidez em Santa Catarina“, lançado por um grupo de trabalho interinstitucional de atenção integral à saúde das pessoas em situação de violência sexual, como um exemplo negativo. “Os Ministérios Públicos, em todo o Brasil, provavelmente se unirão para forçar os hospitais que realizam procedimentos de aborto a seguirem estas recomendações”, afirmam
A proposta é assinado por 32 deputados e deputadas em sua maioria do PL, seguido por União, MDB, Avante, PSD, PRD, Republicanos e PSDB: Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), Evair Vieira de Melo (PP/ES), Delegado Paulo Bilynskyj (PL/SP), Gilvan da Federal (PL/ES), Filipe Martins (PL/TO), Dr. Luiz Ovando (PP/MS), Bibo Nunes (PL/RS), Mario Frias (PL/SP), Delegado Palumbo (MDB/SP), Ely Santos (Republicanos/SP), Simone Marquetto (MDB/SP), Cristiane Lopes (União/RO), Renilce Nicodemos (MDB/PA), Abilio Brunini (PL/MT), Franciane Bayer (Republicanos/RS), Carla Zambelli (PL/SP), Dr. Frederico (PRD/MG), Greyce Elias (Avante/MG), Delegado Ramagem (PL/RJ), Bia Kicis (PL/DF), Dayany Bittencourt (União/CE), Lêda Borges (PSDB/GO), Junio Amaral (PL/MG), Coronel Fernanda (PL/MT), Pastor Eurico (PL/PE), Capitão Alden (PL/BA), Cezinha de Madureira (PSD/SP), Eduardo Bolsonaro (PL/SP), Pezenti (MDB/SC), Julia Zanatta (PL/SC), Nikolas Ferreira (PL/MG) e Eli Borges (PL/TO).
PL não segue diretrizes internacionais
A Organização Mundial de Saúde (OMS), no documento Abortion Care Guideline (Diretrizes de Atenção ao Aborto, em tradução livre) enfatiza que os limites gestacionais não são baseados em evidências científicas e estão associados ao aumento das taxas de mortalidade materna e a maus resultados de saúde.
“Embora os métodos de aborto possam variar de acordo com a idade gestacional, a gravidez pode ser interrompida com segurança, independentemente da idade gestacional”, diz o documento.
No ínicio deste mês, a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw), da Organização das Nações Unidas (ONU), enviou uma série de recomendações ao Estado brasileiro, após ouvir organizações da sociedade civil e governamentais, em uma comitiva liderada pela ministra das mulheres, Cida Gonçalves.
No documento, a Cedaw expressa preocupação com o estado do aborto legal no país, observando que “as mulheres frequentemente enfrentam inúmeras barreiras adicionais, como serviços inadequados de aborto, exigências onerosas que não estão previstas na lei e objeção de consciência por parte dos profissionais de saúde”.
O comitê recomenda ao Brasil “legalizar o aborto e descriminalizá-lo em todos os casos e garantir que mulheres e meninas tenham acesso adequado ao aborto seguro e aos serviços pós-aborto para garantir a plena realização de seus direitos, sua igualdade e sua autonomia econômica e corporal para fazer escolhas livres sobre seus direitos reprodutivos”.
Enviamos pedido de posicionamento sobre a carta aos deputados Arthur Lira e Sóstenes Cavalcante e as respostas serão acrescentadas a reportagem quando recebermos.
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