A morte de uma mulher grávida e do seu filho, em fevereiro deste ano, mobilizou o município e levou à elaboração de um abaixo-assinado em defesa da construção de uma maternidade.
Marco Zero Conteúdo, em 09/06/2023, 17:37.
Crédito: Layse Andrade
por Laysa Vitória Alves de Andrade*
A não ser que tenha sorte ou agende um dia para vir ao mundo, é raro alguém nascer na cidade onde nasceu gente famosa e talentosa como Abelardo Barbosa, o Chacrinha, e o compositor Lourenço da Fonseca Barbosa, o Capiba. Em Surubim, hoje, uma mulher grávida, além de lidar com todas as incertezas da gravidez, tem que conviver com a angústia de não saber onde irá parir.
Surubim é uma cidade do interior de Pernambuco, localizada no agreste a 117 quilômetros do Recife, e tem aproximadamente 66.192 mil habitantes, segundo o IBGE. O sistema de saúde do município é formado, além das unidades básicas, por uma UPA 24 horas e um hospital maternidade, o São Luiz, que além de atender a população surubinense também recebe pacientes de outras oito cidades vizinhas, que juntas totalizam mais de 176.000 habitantes.
A morte de uma mulher grávida e do seu filho, em fevereiro deste ano, mobilizou o município e levou à elaboração de um abaixo-assinado em defesa da construção de uma maternidade.
O único hospital-maternidade da cidade realiza cesarianas apenas nas terças-feiras, porque é o único dia da semana com médico obstetra e anestesista. Contudo, apenas as cirurgias eletivas, ou seja, agendadas previamente, são realizadas. Se uma gestante chegar precisando de uma cesárea de emergência, é necessário transferi-la para outra cidade. Médico obstetra só tem nas terças e quartas-feiras, nos outros dias da semana as grávidas que dão entrada são examinadas pelo clínico geral, que atende todos os pacientes que chegam ao hospital. Elas também são atendidas por técnicas de enfermagem e enfermeiras. “O médico só me atendeu uma vez. As enfermeiras faziam todo o procedimento. O médico sentava, via o resumo que a enfermeira colocava e assinava. Ele não faz a consulta, quem atende a gente é uma técnica de enfermagem e as enfermeiras”, relata Regina Cely Evangelista da Silva, 34 anos, vítima de violência obstétrica no Hospital São Luiz.
No hospital São Luiz não se realiza nem partos normais, pois falta médico obstetra e pediatra, a não ser que a mulher chegue em período expulsivo do parto (quando a mãe está com dez centímetros de dilatação e já faz força para o bebê nascer). “Só fica no Hospital São Luiz se a gestante chegar em período expulsivo, porque não tem mais o que fazer”, explica Emanuela França, enfermeira-chefe da Maternidade do Hospital São Luiz. “O bebê está nascendo ali, a gente vai ter que segurar. Tem que pegar. Mas se chegar com uma dilatação que dê para ser transferida, transfere. Porque não temos a equipe completa todos os dias”, acrescenta.
No período de 1º de janeiro de 2022 a 1º de abril de 2023, 1.340 gestantes deram entrada no Hospital São Luiz. Desse total, 900 foram transferidas. Das mulheres que ficaram na unidade, 92 tiveram parto normal e 348 cesarianas, segundo dados coletados no Hospital São Luiz.
20 horas de espera
“Só quero ter filho quando eu tiver o dinheiro da cesárea em mãos. Porque eu não consigo ter normal e vou sofrer novamente”, afirma Ruth Carolainne, 25 anos. A violência obstétrica deixou marcas psicológicas em Ruth, que apesar de ter tido uma gestação tranquila, define o parto como um momento de muita dor e sofrimento.
Ruth chegou ao Hospital São Luiz às quatro horas da madrugada de uma quarta-feira, sentindo muita dor. Apesar de dar entrada em um dos únicos dias em que há obstetra de plantão, a vítima afirma que o médico só foi avaliá-la uma vez. O primeiro contato da paciente foi com as enfermeiras, que fizeram diversos toques vaginais. Segundo Ruth, as enfermeiras falavam: ““minha filha, ainda vem muito toque. Você não dilata’, e me deixaram esperando várias horas”. Regina Cely, outra vítima, acrescenta: “O médico só vem te avaliar a partir do que as enfermeiras e técnicas escreveram. Elas falam: ‘o médico vem daqui a 20 minutos’, mas ele não aparece e esse tempo vai se prolongando”.
A médica obstetra e pesquisadora Leila Katz , afirma que as consequências da violência contra as mulheres gestantes vão além das sequelas físicas, como morte ou lesões. “As complicações mais comuns são as psicológicas, muitas mulheres ficam com estresse pós-traumático, depressão e não conseguem estabelecer uma boa relação com o bebê e podem ter vários problemas na amamentação, tudo isso em consequência de terem vivido uma experiência traumática no parto”, segundo a especialista.
De acordo com a Dra. Leila Katz, “falar de forma acusatória, desrespeitosa e grosseira; fazer toque de forma violenta ou repetitiva, bem como o profissional de saúde não examinar adequadamente são fatores tipificados como violência obstétrica”.
As enfermeiras falavam que só seria possível transferir Ruth quando ela tivesse uma dilatação de, no mínimo, três centímetros. Apesar de se movimentar e fazer exercícios em uma bola compartilhada com outras duas gestantes, a mãe de primeira viagem não conseguia dilatação. Quando a pressão arterial da vítima subiu, decidiram transferi-la. “A pressão alta na gestação é uma doença preocupante. A hipertensão é a maior causa de morte materna no Brasil, está associada a maiores complicações e mais taxas de hemorragia”, explica a médica obstetra Leila Katz.
Ruth Carolainne esperou quase 20 horas no Hospital São Luiz para finalmente ser transferida. Depois de chegar à maternidade na madrugada, só foi encaminhada para a cidade de Limoeiro depois das 22h. Com fome, sem ter dilatação, com pressão alta e muita dor, ela já “não aguentava mais. Chorei demais, porque pensava que ia morrer. Era muita dor, muita fome, muito sofrimento”, afirma. No hospital, Ruth havia feito uma refeição à tarde, quando comeu um pedaço de melão com suco de laranja. Mas a comida não foi suficiente, “então minha irmã saiu do hospital para comprar três mistos. Colocou no bolso e trouxe para mim. Estava morrendo de fome”. Nesse meio tempo, só teve contato com o obstetra uma vez.
A paciente foi encaminhada para Limoeiro, contudo, “no hospital de Limoeiro não ficam gestantes com a pressão arterial elevada [porque é uma clínica de baixa e média complexidade], mas mesmo assim me mandaram para lá”, afirma Ruth. No hospital São Luiz as enfermeiras deram apenas um medicamento para tentar estabilizar a pressão de Ruth, mas não adiantou.
De Limoeiro, teve de ser transferida para o Hospital das Clínicas, no Recife, onde finalmente deu à luz, às 23h55min. Safira Helena nasceu pesando pouco mais de quatro quilos e medindo 52 centímetros. No dia 15 de maio de 2023, completou dois anos de vida.
Em relação ao processo de transferência, Emanuela França, enfermeira do Hospital São Luiz, afirma que: “o médico liga para a central de leitos e passa a situação da paciente. É a central de regulação de leitos de Pernambuco que decide para onde a paciente será transferida. Quando é um caso de baixa complexidade, geralmente vai para Nazaré da Mata ou Limoeiro, mas quando se trata de uma gravidez de risco a gestante, normalmente, é enviada para o Recife”.
Feto no chão do banheiro
Regina Cely Evangelista deu a primeira entrada no Hospital São Luiz com 40 semanas de gravidez, a segunda vez foi com 41 semanas e a terceira, seis dias depois. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, após as 42 semanas o bebê e a mãe já sofrem riscos de terem complicações. Mas, a partir da 40ª e um dia, os cuidados devem ser redobrados.
No primeiro acesso à maternidade, a vítima foi atendida por uma enfermeira que realizou o toque vaginal (o útero estava dilatado um centímetro), e escutou os batimentos cardíacos do bebê, mas não fizeram ultrassonografia. Enviaram-na de volta para casa e deram remédio para aliviar a dor.
Na segunda entrada, Regina chegou ao hospital sentindo fortes dores, mas, novamente, mandaram ela voltar para casa, sob o argumento de que seriam contrações de treinamento. Seis dias depois, ela voltou ao São Luiz e exigiu ser transferida.
Depois de três cesáreas e dois abortos, a sexta gestação de Regina Cely era de alto risco. No início da gravidez ela descobriu uma anemia – “precisava tomar cinco comprimidos de sulfato ferroso por dia”, relembra. E ao longo do período gestacional ela teve dois sangramentos e foi para o São Luiz. “Quando cheguei lá (hospital), sofri demais”. O primeiro sangramento foi com quatro meses e o segundo com quase seis meses, por isso precisou ficar em repouso absoluto ao longo de um mês. Apesar de ter convênio com o SUS, o hospital não fez ultrassom, por isso ela precisou pagar o exame nas duas vezes em que necessitou de atendimento. Ela fez todo o acompanhamento do pré-natal no PSF do bairro onde reside, e mesmo com todo o histórico, os profissionais do Hospital São Luiz mandaram-na retornar para casa duas vezes, com mais de 40 semanas de gestação.
Anos antes, Regina sofreu um aborto quando estava no quarto mês de gestação. Socorrida na emergência, não teve como fazer ultrassonografia. Depois de pagar para fazer o exame de imagem foi constatado que o feto estava morto. Então, Regina precisou voltar ao São Luiz, onde não havia médicos para fazer a curetagem, ela acabou sendo encaminhadas para o hospital de Limoeiro, mas a transferência só aconteceu três horas depois.
Daquela noite, Regina guarda lembranças dolorosas. Outra gestante em situação semelhante sofreu um aborto quando foi ao banheiro. O corpo do feto, de seis meses, ficou no chão do sanitário até às 8h da manhã do dia seguinte. “A enfermeira falou para não usar mais o banheiro durante a noite, enquanto o bebê não fosse retirado, mas aquele era o único sanitário da enfermaria”, contou.
Regina também deu à luz no Recife, depois de ser transferida de Surubim em sua última entrada no São Luiz, onde, além de esperar várias horas para ser transferida, negaram o acesso do marido da vítima, que é um direito garantido pela lei 11.108, mais conhecida como a Lei do Acompanhante. A lei determina que os serviços de saúde são obrigados a permitir à gestante o direito a acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto.
Emanuela França explica que o fluxo de transferências é de responsabilidade da Central de Leitos e da disponibilidade das ambulâncias sob gestão da prefeitura. Atualmente, quatro ambulâncias em boas condições de uso estão em atividade. Elas são responsáveis por fazer o atendimento do hospital e também da UPA, além de duas ambulâncias do Serviço Móvel de Urgência (SAMU). O número é considerado insuficiente. As grávidas de baixo risco, às vezes, são transferidas em carros de taxistas, relata a enfermeira chefe da maternidade.
O secretário de Saúde de Surubim, Thyago Belo Pedrosa, informou que foram adquiridas mais três ambulâncias, contudo ainda não estão em funcionamento. Entretanto, considerando o tempo de deslocamento do transporte e que ele é usado para atender não só as gestantes, mas também todos os outros pacientes do hospital e da UPA, o número ainda é baixo
O Hospital São Luiz é filantrópico, contudo, mais de 90% dos recursos do hospital vêm do SUS, segundo dados do Portal da Transparência. A prefeitura do município de Surubim possui convênio com a unidade de saúde desde 2007 para a prestação dos serviços de atendimento de urgência e emergência (24h) em clínica obstétrica e pediátrica, consultas obstétricas e ginecológicas, além de internação hospitalar obstétrica e cirurgia ginecológica.
De acordo com o secretário Thyago Belo Pedrosa, o repasse de verba que a prefeitura faz para o São Luiz vem através do Fundo Nacional de Saúde (FNS), recurso federal. “O município recebe 600 mil do Fundo Nacional de Saúde; o dinheiro é transferido para a conta do Fundo Municipal de Saúde e a secretaria faz o repasse de 420 mil reais para o Hospital São Luiz”, detalha.
Mortes e mobilização
No final da tarde do dia 7 de fevereiro de 2023, uma terça-feira, Lucimere Fiel Freire, 35 anos, deu entrada no Hospital São Luiz apresentando uma queixa de possível ruptura da bolsa. Ela estava com pressão alta. Apesar de ser o único dia da semana que se realiza cesáreas, a cirurgia não foi realizada porque não havia sido previamente agendada.
Segundo nota da direção do hospital, quando a paciente deu entrada o anestesista já tinha terminado seu expediente. A enfermeira chefe da maternidade afirma que ele não faz plantão, só realiza as cirurgias agendadas e vai embora. A pressão da paciente foi estabilizada, mas era necessária uma transferência. O médico obstetra de plantão solicitou uma vaga junto à Central Estadual de Regulação.
Lucimere Fiel Freire foi transferida por volta das 22h para o Hospital Regional José Fernandes Salsa, em Limoeiro, onde não havia equipe completa para a realização da cesárea, por isso a gestante foi removida para o Recife. Quando deu entrada no Imip, Lucimere foi encaminhada imediatamente para a sala de cirurgia. A bebê já havia falecido e a mãe também não resistiu. O parto demorou muito para acontecer. Lucimere deixou outros dois filhos e um marido.
A família da vítima registrou um boletim de ocorrência alegando negligência médica. A reportagem entrou em contato com a irmã da vítima, contudo o caso segue em segredo de Justiça, por isso, ela afirmou não poder conceder uma entrevista.
Em busca por justiça, a família de Lucimere está organizando um abaixo assinado pedindo a construção de uma maternidade regional em Surubim. O documento não tem um número de assinaturas estipulado, mas “o objetivo é conseguir o maior número possível”, segundo a tia da vítima, Rosilene, que encabeça a petição. Ao final do recolhimento das assinaturas a família pretende entregar a relação para as autoridades políticas. É possível assinar o documento na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais das seguintes cidades: Surubim, Casinhas, Orobó, Bom Jardim, Cumaru, Santa Maria do Cambucá, Passira e Salgadinho.
Sobre o abaixo-assinado, a prefeita de Surubim, Ana Célia Cabral de Farias (PSB), afirmou em entrevista para a reportagem que tem conhecimento da mobilização da família de Lucimere. Contudo, falou que não devem entregar o abaixo assinado a ela, mas sim à governadora, Raquel Lyra (PSDB). “O pedido deve ser entregue a Raquel Lyra. Para mim não precisa disso, porque estou junto do povo todos os dias e eu tenho a consciência da necessidade de uma maternidade em Surubim”, disse Ana Célia.
Construção da maternidade: a promessa
“A conta é de R $1,2 milhão por mês”, afirmou a prefeita Ana Célia quando questionada sobre a manutenção de uma maternidade em Surubim. A obra foi uma das promessas de campanha da gestora, contudo, chegando ao fim do segundo mandato, ainda não há previsão de construção da unidade hospitalar. A prefeita afirma que a construção de uma maternidade ainda não foi possível, pois falta dinheiro. “Não é uma promessa que depende só da prefeita de Surubim. Várias prefeituras, como as de Casinhas, Vertente do Lério, Frei Miguelinho, Bom Jardim e João Alfredo não têm maternidade, então o ideal é que todos esses municípios desse uma contribuição, além do Governo do Estado”, afirma.
Ana Célia comentou que o ideal não seria construir uma maternidade, mas sim fortalecer o Hospital São Luiz, que atualmente só dispõe de médico obstetra nas terças e quartas-feiras. E anestesista somente na terça-feira. “No São Luiz há estrutura, mas faltam profissionais (obstetra, anestesista e pediatra)”, explica Emanuela França, enfermeira chefe da maternidade.
Na reunião que ocorreu entre a governadora Raquel Lyra e os prefeitos e prefeitas de Pernambuco, no dia 30 de janeiro de 2023, Ana Célia falou que apresentou como prioridade do município de Surubim a construção de uma maternidade.
A prefeita de Surubim é filiada ao PSB, força política derrotada por Raquel Lyra (PSDB) nas eleições de 2022. Quando questionada se conversou com Paulo Câmara sobre a situação das gestantes em Surubim, ela afirmou que sim. “Infelizmente Paulo Câmara pegou o governo Bolsonaro, assim como eu. Raquel Lyra está no governo Lula, aí é outra coisa”.
No plano de governo de Raquel Lyra, Governadora de Pernambuco, está a promessa de reestruturação da rede materno-infantil, com a ampliação de leitos no interior e a qualidade dos serviços. Além da construção de cinco grandes maternidades, a fim de desconcentrar a oferta de leitos na região metropolitana. Durante uma visita ao município de Surubim, quando ainda era candidata ao governo, Raquel Lyra prometeu construir uma maternidade para atender o Agreste Setentrional do estado, microrregião que abrange o município.
A reportagem entrou em contato com a assessoria do governo estadual para saber como está o andamento dessas promessas, mas não obteve retorno.
*Estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Esta reportagem foi produzida como atividade acadêmica das disciplinas Redação Jornalística 1 e Técnica de Pesquisa Jornalística, sob supervisão das professoras Adriana Santana e Cecília Almeida.
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