Quase lá: A ofensiva contra a médica que criou o serviço de aborto legal por telemedicina

Obstetra Helena Paro é alvo de procedimento do CRM-MG, que pode levar à perda de licença médica

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Nathallia Fonseca - Agência Pública - 3 de maio de 2023


Defesa da médica questiona validade da ação do Conselho

Serviço pioneiro auxilia aborto legal em caso de violência sexual

Helena Paro é um nome conhecido quando o assunto é justiça reprodutiva. Ginecologista, obstetra, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em Minas Gerais, ela criou o primeiro serviço de aborto legal por telemedicina do país. O atendimento pioneiro auxilia o abortamento legal de mulheres e meninas vítimas de violência sexual. Os procedimentos por telemedicina foram regulamentados no Brasil por resolução do Conselho Federal de Medicina.

Desde que lançou a cartilha “Aborto legal via telessaúde”, em 2021, nos momentos mais dramáticos da pandemia de Covid-19, quando os atendimentos de aborto legal ficaram travados nas unidades de saúde, Paro tem sofrido retaliações. São desde ataques virtuais a ações coordenadas por políticos e por órgãos como o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Ministério da Saúde. A médica também é alvo de um procedimento ético-profissional movido pelo Conselho Regional de Medicina (CRM) de Minas Gerais, que, em caso extremo, pode levar à perda de sua licença médica. 

O procedimento aberto pelo CRM-MG decorre de uma sindicância feita em 2021, logo após o lançamento do aborto legal por telemedicina. “Vieram ao hospital onde eu trabalho e dou aula, me fizeram perguntas, acessaram mais da metade dos prontuários das meninas e mulheres, que utilizaram o serviço por telemedicina”, contou Paro, sobre a sindicância. A defesa da médica questiona a validade do procedimento.

Conforme diz o atual Código de Processo Ético Profissional do Conselho Federal de Medicina, uma sindicância é aberta “mediante denúncia escrita ou verbal, na qual conste o relato circunstanciado dos fatos e, quando possível, a qualificação do médico denunciado, com a indicação das provas documentais, além de identificação do denunciante”. No ofício que inaugura a sindicância, ao qual a Agência Pública teve acesso, todavia, não há qualquer identificação sobre o denunciante. Constam apenas duas publicações em veículos de imprensa – Uol e Gazeta do Povo, que noticiaram o serviço por telemedicina e a polêmica em torno do tema. De acordo com o artigo 7º das normas aprovadas pelo próprio Conselho, denúncias anônimas não são aceitas. 

“A sindicância foi considerada favorável, sem registros de infração ética. Ainda assim, o Conselho optou por aprofundar a investigação da conduta de Helena Paro”, disse Gabriela Rondon, advogada da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, que integra a equipe de defesa da obstetra. De acordo com Paro, o procedimento a acusa de uma série de infrações de artigos do código de ética médica, como ‘corromper os bons costumes’ e ‘favorecer o crime’. “Também de ‘não utilizar os conhecimentos científicos em prol da saúde das pessoas’, o que era exatamente o que eu estava fazendo”, disse a médica. 

Os registros documentais da sindicância estão sob sigilo, por norma do Conselho Federal de Medicina. O procedimento ético-profissional também é sigiloso. O caso foi encaminhado à Justiça pela própria defesa da médica, na tentativa de suspender a ação. 

Contudo, no ano passado, a Vara da Justiça Federal de Uberlândia se pronunciou pela continuidade do procedimento, entendendo que não havia ilegalidade na investigação ética por parte do Conselho. Um pedido de recurso foi encaminhado pela defesa da obstetra ao Tribunal Regional Federal (TRF), que intimou o CRM-MG a dar explicações. Tanto o procedimento ético-profissional do CRM quanto sua judicialização continuam em andamento.  

A médica Helena Paro sentada ao computador em seu consultório
Defesa da médica questiona validade da ação do Conselho

 

Desde 2021, a médica também enfrenta retaliações em outras frentes.  Em agosto daquele ano, o Defensor Nacional de Direitos Humanos André Ribeiro Porciuncula, e o procurador regional de Direitos do Cidadão do Ministério Público de Minas Gerais Fernando de Almeida assinaram conjuntamente uma recomendação, enviada ao Ministério da Saúde e ao Conselho Federal de Medicina (CFM), pedindo a expedição de normativa aos profissionais vinculados ao CFM, “explicitando a ilegalidade e impossibilidade da realização de abortamento legal por meio da telemedicina”.  Eles questionam a administração do Misoprostrol, medicamento usado na indução do aborto, longe do ambiente hospitalar, embora o procedimento seja considerado seguro. 

“Funcionou muito bem no Reino Unido e adequamos à realidade brasileira, o que era perfeitamente possível”, explicou Paro. A recomendação do defensor público e do procurador do MP também pedia a abertura de “procedimento administrativo para apurar a responsabilidade profissional de médicos, servidores e demais responsáveis pela orientação de aborto legal por telemedicina, além da apuração dos 15 casos que teriam sido realizados, até aquela época, por meio do serviço, com “punição dos responsáveis” por realizarem um procedimento “ilegal”. 

A interrupção da gravidez é permitida pela legislação brasileira em casos de gravidez decorrente de estupro, quando oferece risco à vida da gestante ou em caso de anencefalia do feto. O procedimento, nesses casos, deve ser oferecido pelo SUS (Sistema Único de Saúde) sem exigência de registros, como boletim de ocorrência. O Núcleo de Atenção Integral às Vítimas de Agressão Sexual de Uberlândia (Nuavidas), coordenado por Helena Paro, oferece auxílio e direcionamento – a partir de consultas convencionais ou telemedicina, sendo este possível apenas a partir de um primeiro encontro presencial em casos de violência sexual. 

Imagem com foco em placa sinalizadora do Hospital das Clínicas de Uberlândia, escrito "Ambulatório de ginecologia - consultório 21". Em segundo plano há funcionários do hospital conversando
Serviço pioneiro criado por Paro auxilia a realização do aborto legal em caso de violência sexual

 

A recomendação do defensor e do procurador do MP em Minas Gerais foi rebatida em uma outra recomendação da Defensoria Pública da União, assinada por 41 pessoas de Defensorias Públicas de vários estados do país. Eles pediam que o Ministério da Saúde e o Conselho Federal de Medicina garantissem que os “profissionais atendam casos de interrupção de gravidez nos casos legais por meio do sistema híbrido com telemedicina, previsto no protocolo ‘Atenção a mulheres ou adolescentes em situação de aborto previsto em lei por telessaúde/telemedicina’”.

Apesar dessa nova recomendação coletiva, o Ministério da Saúde do governo Bolsonaro preferiu seguir as diretrizes do documento anterior, contrário ao serviço lançado por Paro e publicou, em 7 de julho de 2021, uma Nota Informativa condenando o aborto legal por telessaúde. Entre outros pontos, o texto da Pasta, à época comandada pelo médico Marcelo Queiroga, também questiona as recomendações da Organização Mundial de Saúde. Diz que “as referências à OMS e aos sistemas de saúde de outros países, embora tenham caráter orientativo, não têm o condão de subjugar um País soberano no desenvolvimento de suas Políticas de Saúde”. A nota, contudo, não tem valor de regulamentação. 

Também em 2021, a Câmara de Vereadores de Uberlândia, município onde Helena Paro leciona e trabalha, propôs uma Moção de Repúdio à médica, ao Instituto de Bioética Anis e a Rede Médica Pelo Direito de Decidir (Global Doctors for Choice Brasil), que também assinam a cartilha com orientações para aborto legal por telemedicina. A proposta foi feita pelo vereador Tharles Santos (PSL), que chegou a apresentar projeto de lei propondo o fim da obrigatoriedade do uso da máscara para pessoas que tinham tomado duas doses ou dose única da vacina, mas faleceu de Covid-19 naquele mesmo ano. A moção de repúdio foi rejeitada porque não conseguiu maioria de votação. 

Em outra ocasião, o então vereador de Uberlândia e atual deputado estadual Cristiano Caporezzo (PL-MG) utilizou uma sessão legislativa para atacar o trabalho de Helena Paro e o coletivo Feminino de Ação Popular (FAPO), após a publicação de uma carta de apoio da entidade à pesquisa da obstetra. 

“O Coletivo FAPO é um grupo feminista que fez uma carta de apoio a Helena Paro, uma médica da UFU que fez uma cartilha de aborto por telemedicina. Isso é um completo absurdo que coloca em risco a vida da criança e da própria mulher. Receber um pedido de cassação de um grupo feminista me deixa muito feliz, pois é claro sinal de que estou no caminho certo”, disse o vereador, a época, em entrevista ao portal Diario de Uberlândia.

Em nota de solidariedade à médica, a ONG feminista Católicas pelo Direito de Decidir classificou a ação do CRM-MG como “ ‘caça às bruxas’ a quem, diante da omissão do Estado, trabalhou para cuidar daquelas que foram brutalmente atacadas em sua dignidade”. Na nota, o grupo também ressalta que o “procedimento é altamente seguro, inclusive sendo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) durante a pandemia”. 

“Logo que as notícias começaram a vincular a cartilha [de abortamento legal por telemedicina] ao meu nome, eu fechei minhas redes sociais, já prevendo possíveis ataques e perseguições. Fiz o possível para me blindar e zelei pela minha segurança”, disse Helena Paro. “Mas talvez essa perseguição, juntamente com outras ameaças veladas, tenham contribuído para a síndrome de burnout que fez com que eu me afastasse entre o meio do ano passado e março deste ano”, continuou.  Ela já voltou ao trabalho, e continua com as aulas e com os atendimentos clínicos. 

O Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais não respondeu os questionamentos da reportagem até a publicação.

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Nathallia Fonseca
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fonte: https://apublica.org/2023/05/a-ofensiva-contra-a-medica-que-criou-o-servico-de-aborto-legal-por-telemedicina/

 

 

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Ataques ao aborto legal por telemedicina não têm base legal ou científica

catarinas portalPor Morgani Guzzo 

 
 

Atendimento por telessaúde para realização do aborto previsto em lei foi implementado no contexto da pandemia, com base na legislação brasileira

Desde agosto de 2020, as pessoas que engravidam em decorrência de violência sexual em Uberlândia, Minas Gerais, podem realizar a interrupção da gestação, prevista em Lei (Código Penal, 1940), em suas próprias casas, com auxílio e acompanhamento médico por telessaúde.

O protocolo, adotado durante a grave situação de colapso dos hospitais devido à pandemia da Covid-19, já é usado em vários países do mundo e seguiu a legislação brasileira vigente para dar mais segurança às pessoas que buscam o serviço do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (Nuavidas HC/UFU). De lá para cá, 17 pessoas já acessaram o serviço.

Embora a eficácia e a segurança do procedimento sejam comprovadas por diversos estudos mundo afora, dois servidores do judiciário brasileiro – André Ribeiro Porciúncula (Defensor Público) e Fernando de Almeida Martins (Procurador do MP) – assinaram a Recomendação Nº 15/2021, enviada ao Ministério da Saúde, e a Recomendação Nº 16/2021, enviada ao Conselho Federal de Medicina, recomendando que não seja indicado o atendimento por telemedicina para a interrupção legal da gestação. O documento é recheado por adjetivos e desinformações, tais como o suposto “risco” do uso do misoprostol (medicamento usado para a interrupção da gestação) fora do ambiente hospitalar.

As recomendações, sem base científica ou legal, atacam, especialmente, a Cartilha “Aborto legal via telessaúde – Orientações para serviços de saúde 2021”, produzida pelo serviço de Uberlândia, com auxílio da Anis – Instituto de Bioética e da Global Doctors for Choice Brasil, e ainda pedem responsabilização legal das profissionais e a apuração dos procedimentos já realizados com uso da telemedicina.

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Imagem de capa da Cartilha “Aborto legal via telessaúde”.

 

O documento foi rapidamente rebatido pela Recomendação Nº 4462930, da Defensoria Pública da União, que é assinada por 41 pessoas de Defensorias Públicas de 21 Unidades da Federação. Enviada ao Ministério da Saúde e ao Conselho Federal de Medicina, a recomendação argumenta, com base em inúmeros estudos científicos e na legislação vigente, a legalidade do protocolo “Atenção a mulheres ou adolescentes em situação de aborto previsto em lei por telessaúde/telemedicina: protocolo de assistência do NUAVIDAS HC/UFU”, e da Cartilha produzida a partir dele.

Ignorando os fatos, o Ministério da Saúde publicou, em 7 de junho, Nota Informativa Nº 01/2021, na qual toma conhecimento das duas recomendações e opta por acatar aquela que se posiciona contrária ao uso do teleatendimento nos casos de aborto previsto em lei. A Nota, no entanto, não tem valor de orientação ou regulamentação, conforme explica Anne Teive Auras, Defensora Pública Titular do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina (NUDEM/SC).

“Essa Nota Informativa do Ministério da Saúde não é uma Nota Técnica, então ela não expressa uma opinião técnica sobre o tema. Ela expõe determinados argumentos para dar subsídios para a tomada de decisão pela autoridade superior, mas não tem caráter obrigatório e não traz nenhum impedimento técnico. Como ela não traz fundamentos técnicos e não se reveste de caráter de obrigatoriedade, acreditamos que os nossos argumentos continuam rígidos e os fundamentos que a gente trouxe na nossa recomendação estão mantidos”, afirma.

Dois dias depois da publicação da Nota Informativa, o Ministério Público Federal expediu a Recomendação Nº 08/2021, na qual recomenda ao Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia que “garanta a continuidade da execução da primeira etapa do protocolo ‘Atenção a mulheres ou adolescentes em situação de aborto previsto em lei por telessaúde/telemedicina: protocolo de assistência do NUAVIDAS HC/UFU’, tal como aprovado pela Comissão de Ética Médica do HC/UFU”.

Protocolo de telemedicina e a garantia do aborto seguro

O que está por trás do movimento contrário à adoção da telemedicina para casos de aborto previsto em lei são, evidentemente, os mitos com relação ao procedimento, a desinformação e o estigma em torno do aborto.

De acordo com Helena Paro, médica ginecologista e obstetra responsável pelo serviço do Nuavidas HU/UFU, o aborto é o procedimento mais seguro da obstetrícia. O risco de morte em um parto, por exemplo, é 14 vezes maior do que em um aborto. Os estudos que analisam o uso de telemedicina têm demonstrado a alta eficácia e a segurança desse protocolo. 

Um exemplo é o estudo publicado em 2021, na BJOG, revista oficial do Royal College of Obstetricians & Gynaecologists e uma das mais conceituadas da área, que mostrou os baixíssimos índices de complicações dos procedimentos de aborto medicamentoso feitos por telemedicina. Dos 50 mil casos analisados, somente em 0,02% ocorreu hemorragia, o que significa que é preciso ter 10 mil mulheres tratadas para ter um episódio de hemorragia.

“O estudo também mostrou que em mais de 50 mil mulheres, não houve nenhum caso de infecção e nenhum caso de cirurgia de grande porte. O máximo foi precisar fazer uma aspiração [manual intrauterina – AMIU], que é muito tranquilo. Então, esse é um dado de segurança muito grande, que mostra que o que estamos fazendo não é inovador, porque todos esses protocolos já são difundidos no mundo, com muita segurança”, explica.

O atendimento feito pelo Nuavidas durante a pandemia é híbrido, ou seja, não ocorre totalmente por telemedicina. Ainda é preciso que a pessoa vá até o serviço, converse com as profissionais da enfermagem, assistência social, psicologia e medicina, realize o exame de ultrassom e assine os papéis de consentimento. Depois disso, ela assina um termo adicional, que permite que leve a medicação para casa, e todo o resto do acompanhamento, por até seis meses, pode ser à distância.

Protocolo pode ser replicado por serviços de todo o Brasil 

De acordo com Gabriela Rondon, advogada e pesquisadora da Anis, tanto o protocolo adotado pelo Nuavidas quanto a a Cartilha “Aborto legal via telessaúde – Orientações para serviços de saúde 2021” estão em consonância com a legislação vigente, isto é, a Lei 13.989/2020, a Portaria 467/2020 e a Portaria da Anvisa sobre o uso domiciliar de medicamentos especiais.

“Não só todas as normativas anteriores sobre o aborto legal são cumpridas, como foi adicionado mais um documento àqueles já previstos na Norma Técnica, que é de responsabilização das mulheres pelo uso dos medicamentos integralmente para a interrupção da própria gestação, assegurando que ela não vai fazer nenhum outro uso. Então, não há nenhuma inovação aqui, até mesmo se ampliou a regulamentação com esse novo documento”, explica Rondon.

A cartilha também coloca os critérios de elegibilidade para as mulheres e pessoas que gestam terem o acesso ao aborto em casa, por telemedicina. Uma delas é que a idade gestacional deve ser “menor ou igual a 63 dias (9 semanas)”, o que faz com que as pessoas alcançadas pelo protocolo sejam só as vítimas de violência sexual, já que o diagnóstico de anencefalia fetal só ocorre após a 12ª semana de gestação, e os casos aborto devido à gravidez representar risco de vidas para a gestante representam menos de 1% dos abortos feitos no Brasil.

“Todas as leis estão sendo cumpridas, não há qualquer violação legal aqui. Inclusive o que a Cartilha tenta demonstrar é essa segurança do atendimento às previsões legais, demonstrando que todas as legislações são federais, então são aplicadas a todo o território nacional e qualquer serviço no país poderia replicar o protocolo da mesma maneira, com os mesmos argumentos”, orienta a advogada. 

Restrições impedem avanço da medicina em prol da saúde

Diante de tantas evidências quanto à segurança do protocolo, a facilidade do uso domiciliar do medicamento e os índices de sucesso em várias partes do mundo, nos resta questionar: por que, no Brasil, esse tema é tão controverso e o procedimento de aborto tem tantas restrições e regulamentações?

De acordo com Helena Paro, muitas regulações não são necessárias e nem benéficas no âmbito da assistência de saúde. Ela lembra de procedimentos como histerectomia (remoção do útero), que é uma cirurgia de grande porte e que traz riscos, mas que não se regulamenta. Cirurgias cardíacas, neurológicas, procedimentos médicos de altíssima complexidade em termos de densidade tecnológica, que impõem risco às pessoas, também não têm uma regulamentação específica. Já o aborto, que é um procedimento seguro e o que menos traz complicações e riscos de toda a área da obstetrícia, é o mais regulamentado.

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Helena Paro, a ginecologista à frente do primeiro serviço de aborto por telemedicina do país. Foto: Arquivo pessoal.

 

“A lei que a gente tem que seguir é o Código Penal Brasileiro, e no Código Penal brasileiro, a única exigência que se tem para acessar o aborto legal é o consentimento da mulher. Essas regulamentações, esse tanto de termo, a gente segue, mas não deveria ser necessário. Porque quando se regulamenta demais, se fica preso. Faz 20 anos que a gente coleciona evidências científicas muito sólidas da segurança do uso do misoprostol, por exemplo, mas se você regulamenta demais, você vai prendendo e impedindo o avanço da medicina em prol da segurança das meninas e mulheres”, argumenta.

Além da garantia da segurança do procedimento, Paro também aponta que o uso da telemedicina tem aumentado a adesão das meninas e mulheres ao atendimento não só nos casos de aborto, mas no atendimento à violência sexual de forma geral. Entre os fatores que levam a isso, ela aponta a falta de condições financeiras para que elas peguem um ônibus até o serviço especializado, o medo dos julgamentos, dos olhares e a vergonha de serem vistas na sala de espera do ambulatório de ginecologia no dia do Nuavidas, o que denuncia que foram vítimas de violência sexual, além das lembranças negativas a que o hospital remete.

“O ambiente do Hospital remete à violência sofrida, então, muitas vezes, as pacientes fazem vínculos conosco, com a equipe, estabelecem uma relação de confiança, mas não querem voltar ao espaço físico, porque isso remete a esse momento de muita dor, de violência, de vulnerabilidade, de medo, e esse julgamento do olhar das pessoas. Então, a gente tem visto que as mulheres têm seguido mais tempo conosco, porque elas conseguem comparecer à consulta online. Elas não têm dinheiro, mas elas têm um celular com WhatsApp e tem um wi-fi em algum lugar e podem fazer. E se dizem muito satisfeitas”, conta a médica.

Diante dos ataques ao protocolo, que além de seguro é mais acessível, torna-se evidente a necessidade de os profissionais de saúde defenderem os avanços possibilitados pelas evidências científicas e as novas tecnologias. A preocupação principal é a saúde da pessoa vítima de violência sexual e o acolhimento deve ser feito da melhor forma possível, considerando a vulnerabilidade de quem sofreu a violência. 

“A telemedicina tem o potencial de ampliar o alcance desse serviço. Se ela for implementada como um todo, com todo o atendimento virtual, as mulheres não precisarão viajar, não terão tanta dificuldade em encontrar os serviços, então acredito que pode diminuir a discrepância entre o alto número de casos de violência sexual e a baixa quantidade de serviços”, finaliza Paro.

Secretário do Ministério da Saúde ignora mortes por aborto inseguro 

Além da baixa qualidade da Nota Informativa Nº 01/2021, expedida pelo Núcleo Jurídico da Secretaria de Atenção Primária à Saúde – NUJUR/SAPS, gerou surpresa que o documento, que aparenta preocupação com os riscos do aborto seguro, feito com medicamentos, tenha sido assinado pela mesma pessoa que, em 2018, disse ser rara a morte por aborto inseguro no Brasil.

Nomeado Secretário de Atenção Primária à Saúde por Jair Bolsonaro, Raphael Câmara Medeiros Parente, em Audiência Pública sobre a ADPF 442, realizada para a discussão da descriminalização do aborto até a 12º semana, disse que somente viu um caso de morte por aborto em toda a sua carreira.

“Eu, com 41 anos, já trabalhei nas maiores maternidades do Rio de Janeiro, só vi uma morte por aborto. E se perguntar para todos aqui, não vai sair de um ou dois [casos]. Isso não existe. As mulheres morrem no parto, morrem por sangramento, não morrem por aborto. É óbvio que você vai encontrar, como tudo na vida você encontra, se você for procurar”, afirmou Raphael Câmara em sua participação na audiência pública.

A contradição é explícita e gera desconfiança. Estaria mesmo o Ministério da Saúde preocupado com os riscos de um aborto feito com acompanhamento médico e medicamentos seguros? Ou a preocupação de fundo estaria relacionada à possibilidade de o protocolo por telemedicina adotado pelo Nuavidas demonstrar quão seguro é um aborto com uso de medicamentos? 

Diante do silêncio na semana em que Kathlen Romeu, uma mulher grávida, foi baleada e morta por policiais no Rio de Janeiro, e da omissão do Ministério da Saúde diante de uma pandemia que já tirou mais de 500 mil vidas brasileiras, a preocupação com a vida não parece ser, realmente, uma pauta de quem compõe os quadros do Ministério da Saúde e do governo Bolsonaro.

 
Morgani Guzzo

Jornalista, mestre em Letras (Unicentro/PR) e doutora em Estudos de Gênero pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas da UFSC. Pesquisadora de Pós-doutorado no Laboratório de Estudos de Gênero e Históra (LEGH/UFSC), com enfoque nos movimentos feministas, epistemologia feminista decolonial e direitos sexuais e reprodutivos.

fonte: https://catarinas.info/ataques-ao-aborto-legal-por-telemedicina-nao-tem-base-legal-ou-cientifica/

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