Aborto, câncer, atenção materna, participação social. O governo Bolsonaro trabalhou até seus últimos dias para destruir políticas públicas de proteção social. Quais foram as primeiras portarias revogadas e por que foi importante encerrá-las
Começou. Foi publicada, no dia 13 de janeiro, a Portaria 13 do ministério da Saúde, que revoga algumas portarias assinadas pela administração de Jair Bolsonaro, mais especificamente dos seus ministros Eduardo Pazuello e Marcelo Queiroga. Foi assinada pela nova ministra, Nísia Trindade. Em linhas gerais, ela reverte políticas que, apesar de terem nomes que sugeriam alguma nobreza, serviam para esvaziar outras já existentes.
“Quando trabalhei com Marcelo Castro no ministério [no governo Dilma, entre 2015 e 2016], tivemos um projeto de consolidação de todas as portarias”, contou Lenir Santos, advogada sanitarista e doutora em saúde pública, ao Outra Saúde. “Algumas delas agora são repristinadas, isto é, voltam a valer, é uma revogação da revogação. As políticas da gestão anterior minavam ou esvaziavam outras políticas semelhantes que já estavam constituídas. Políticas muito criticadas pelos especialistas da área à época de sua publicação. Não era um governo pró-SUS”, sintetizou.
Sem dúvidas, a revogação da portaria 2561/2020 é a de maior repercussão. Se refere à exigência de investigação policial para a liberação de abortos em casos previstos em lei e cobertos pelo SUS, em especial estupros.
“Sempre mantivemos oposição a essas portarias que foram objeto de nossa indignação. Essa revogação era muito esperada e veio logo na primeira quinzena de governo, muito adequado diante da situação humilhante que a portaria impunha. Uma humilhação à cidadania das mulheres. Por isso, estamos felizes com a atitude da ministra”, afirmou Ana Costa, médica e pesquisadora de gênero e saúde da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
“Era uma excrescência, indecente. Ainda bem que foi revogada. Exigia-se que se fosse à delegacia para provar que havia estupro e se pudesse fazer aborto. Era uma portaria totalmente ilegal e foi importantíssimo ser removida”, atacou Lenir.
Como explicam ambas especialistas em saúde pública, as medidas do governo Bolsonaro tinham um inequívoco viés de desmonte, tanto da estrutura administrativa como da própria participação social prevista no SUS.
É o caso também da portaria 1079 de 2022, que “formaliza e institui programas nacionais de prevenção e detecção precoce de câncer, no âmbito da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer”. No entanto, a realidade é que a verba para este objetivo do Estado era reduzida pela metade, como revelou a mídia em diversas matérias na ocasião. Desta e outras fontes saía o dinheiro com o qual o ex-presidente financiava o orçamento secreto e o equivocadamente chamado “pacote de bondades” que tirou da cartola às vésperas das eleições, na tentativa de ganhar mais votos.
“A rede de atenção materna infantil tinha alteração em sua forma de financiamento, de forma desvantajosa. Como dito, eram políticas que minavam ou esvaziavam outras anteriormente constituídas”, acrescentou Lenir Santos.
Outra portaria revogada que chama atenção é a 4809, curiosamente instituída no penúltimo dia de mandato do presidente que embarcava para a Flórida, de onde até hoje não voltou. Visava instituir o Fórum Permanente de Articulação com a Sociedade Civil.
Segundo Lenir Santos, um golpe, feito sob medida para fortalecer o setor privado. “A portaria do Fórum Permanente da Sociedade feria toda a legislação do SUS e do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Criava-se outra instância paralela e a participação da sociedade no SUS se dá pelo Conselho. Este fórum visava minar a participação social. Apesar de seus elogios, que eram da boca pra fora, Queiroga era totalmente ligado ao setor privado, extremo defensor de planos de saúde, como exemplifica a questão da abertura de dados dos usuários do SUS para o setor privado”.
De acordo com Ana Costa, o desmonte na saúde castigava especialmente as mulheres. E não apenas por conta da legislação antiaborto que agora Nísia derruba. “Todas as portarias tinham equívocos e retrocessos muito graves à saúde da população, em particular das mulheres, que de forma geral podem celebrar, já que os retrocessos impostos no último governo visavam, todos, a restrição de nossos direitos”.
Em suma, as posições de Ana Costa e Lenir Santos dão a entender que para de fato começar um novo governo é necessário remover o entulho encontrado no prédio do ministério da Saúde. “De forma geral, a ministra marca uma posição firme e uma mudança muito positiva para os avanços necessários, que não devem ser poucos. Para além das portarias que barravam direitos, havia retrocessos na concepção de políticas, fratura de mecanismos que garantem integralidade da mulher, um flerte franco com o setor privado e desmobilização geral do ministério, fragilizado enquanto instituição coordenadora da saúde no país”, sintetizou Ana Costa.
De saída, Nísia cumpre a promessa de sua entrevista da semana anterior, quando declarou que acabaria com medidas administrativas que ferissem o respeito aos direitos humanos e a própria função social do SUS. Já no dia 26/1, a ministra tem reunião com os secretários estaduais para alinhar futuras iniciativas. Se considerarmos que o grupo de transição da saúde declarou-se estarrecido com a falta de informações básicas e dados administrativos, outros revogaços devem estar por vir.
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