Apenas 22% das secretarias de saúde estaduais trazem informações sobre o direito em seus sites; nas capitais, percentual cai para 15%
No Brasil, as lacunas no acesso à informação sobre os serviços de aborto legal vêm do próprio poder público. Somente seis das 27 unidades federativas disponibilizam informação pública sobre aborto nos sites das secretarias de Saúde. Das 26 capitais, apenas quatro mantêm informações online. Uma pessoa gestante pode demorar, em média, de dois a três meses até achar um programa que a acolha.
Patrícia (nome fictício) chegou ao Programa Nuavidas (Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual) do Hospital de Clínicas de Uberlândia (MG), no segundo trimestre da gravidez. Ela não sabia que tinha direito ao aborto legal por ter sofrido violência sexual e, muito menos, conhecia algum serviço que pudesse ajudá-la. Ela mora em Patos de Minas, onde vivem quase 140 mil habitantes, a cerca de 250 quilômetros de Uberlândia.
“Não fui perguntar no posto de saúde por medo. Eles não têm esse serviço e acham que é crime interromper a gravidez”. Com 38 anos, ela cuida de crianças na vizinhança e divide a casa com três filhos e a mãe.
Em junho, a menstruação não veio. Foi quando ela desconfiou da situação de abuso pela qual tinha passado. Seguiram-se noites sem dormir, dias sem comer.
Num primeiro momento, a vítima da violência tende a apagar o que aconteceu e tem dificuldade de se expor, de ser julgada”, explica Luzia Silva dos Santos, psicóloga do Programa Nuavidas.
Ela fez o teste de gravidez e, neste momento, tomou uma decisão em silêncio, sem saber que colocava sua saúde em risco: comprou oito comprimidos de misoprostol por R$ 2.500 reais no mercado clandestino. Sem orientação médica adequada e por sugestão de um vendedor desconhecido, tomou todas as pílulas de uma vez. O procedimento não surtiu efeito e os sangramentos vieram com dor.
Semanas depois, numa manhã de julho, Patrícia assistia ao telejornal local. “Vi uma médica falando numa reportagem do direito ao aborto em caso de violência sexual e do Programa Nuavidas.”
Eu não sabia nem que tinha direito [ao aborto legal]. Foi a minha salvação."
Em agosto, Patrícia entrou em contato com o Nuavidas e fez a primeira consulta e os exames. “Fui bem atendida, me senti cuidada e não julgada. Tive que voltar. Esse prazo de espera até voltar ao serviço foi um pesadelo.”
Patrícia foi uma das 20 mulheres que receberam atendimento na unidade em 2022. Ela já estava no segundo trimestre de gestação. Um amigo a levou até o hospital de carro.
“É o único que sabe do assunto. Minha família acha que fui passear no final de semana. Paguei para ele R$ 300 de gasolina”, conta. De ônibus, ela teria demorado quase seis horas, como foi no caso da primeira visita que fez ao hospital para o primeiro atendimento.
Pacientes do Nuavidas passam pela recepção antes do atendimento / Foto: Soledad Dominguez
O acesso ao direito custa caro
No Brasil, a cada sete pessoas que fizeram um aborto legal entre 2010 e 2019, uma precisou viajar para acessá-lo, aponta a doutora em Saúde Coletiva, Marina Jacobs no estudo “Oferta e realização de interrupção legal de gravidez no Brasil”.
E quanto menor o porte do município, maior o percentual de pessoas em trânsito. O trabalho também mostra que a disponibilidade de transporte público para esses deslocamentos é limitada, com tempo de viagem total (ida e volta) estimado entre 26 minutos a quatro dias e meio, e o custo de R$ 2,70 a R$1.218,06.
“A grande dificuldade é o acesso à informação. O Estado brasileiro, por lei, é obrigado a dar informações às mulheres sobre onde buscar os serviços de aborto. Deve ter atitudes ativas. No Brasil, são pouquíssimos os serviços que oferecem aborto legal e divulgam o serviço”, diz Cristião Rosas, ginecologista obstetra, representante da Rede Médica pelo Direito de Decidir e ex-diretor do Serviço de Aborto Legal do Hospital Maternidade Vila Nova Cachoerinha.
No país, apenas 290 estabelecimentos oferecem aborto legal. Eles estão distribuídos em 3,6% (ou seja em 200) dos 5.568 municípios brasileiros, segundo a pesquisa de Marina Jacobs, doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina. Esses estabelecimentos encontram-se majoritariamente no Sudeste (40,5%), em cidades de mais de 100 mil habitantes (59,5%) e de Índice de Desenvolvimento Humano Municipal alto ou muito alto (77,5%). Marina Jacobs estima que, a cada cinco mulheres que precisam de um aborto previsto em lei e vivem em municípios que não o oferecem, como o de Patrícia, quatro deixam de acessar o serviço. Em números, só em 2019, 1.570 interrupções de gestação podem ter deixado de ser realizadas em residentes de municípios que não ofertam o procedimento, segundo ela.
O caso da Argentina
Desde janeiro de 2021, o aborto na Argentina está descriminalizado por lei até 14 semanas de gestação. A conquista ocorreu em uma sessão parlamentar histórica, no penúltimo dia de 2020, em meio ao calor, pandemia e manifestações da maré verde que lotaram as ruas de Buenos Aires. Mais de 1,7 milhão de pessoas acompanharam a transmissão online. Até então, o país tinha a mesma legislação do Brasil: a interrupção da gravidez só era permitida em casos de estupro ou quando a saúde da mulher estava em risco.
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A informação sempre foi parte de uma política do Estado argentino e a área da saúde nunca foi exceção. Durante os últimos dez anos, com diferentes presidentes, um serviço de 0800 sobre saúde sexual funciona em todo o país, de domingo a domingo, inclusive em feriados. Mesmo antes do aborto ser legalizado, o serviço já era um canal de escuta atenta e ativa em casos de gravidez indesejada, decorrente de estupro, métodos contraceptivos de emergência (e outros), doenças sexualmente transmissíveis eviolência sexual e obstétrica.
À medida que o debate sobre a ampliação de direitos das mulheres tomou a agenda regional da América Latina, o 0800 ampliou o atendimento para consultas sobre direitos das pessoas LGBTQIA+, direitos das pessoas com deficiência, prevenção de gravidez na adolescência, obrigações do sistema de saúde público e privado, e reprodução assistida.
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“Nas ligações, os atendentes encaminham a pessoa para um centro de saúde ou registram a solicitação e em até 72 horas a paciente receberá uma orientação”, explica Victoria Pedrido, da Direção Nacional de Saúde Sexual e Reprodutiva.
O Sistema Único de Atendimento Telefônico à Saúde registra chamados de mulheres que buscam realizar um aborto em um centro médico da rede pública:
“Olá, boa tarde, onde posso acessar um procedimento de interrupção da gravidez? Eu só fiz o teste. Minha última menstruação foi em 8 de abril.” Em consultas como esta, explicam Sandra Bernabó e Mariana Kielmanovich do Hospital Dr. Enrique Tornú, em Buenos Aires, as pacientes são atendidas também por email até serem encaminhadas a uma unidade de saúde próxima de sua casa. Embora não substitua uma consulta, o sistema e seus atendentes ajudam a explicar procedimentos e protocolos.
À medida que o debate sobre o direito ao aborto ganhou espaço na Argentina, a sociedade passou a querer saber mais, falar mais e perguntar mais. Os números 0800 mostram este aumento.
Se em 2010 foram 8 chamadas sobre interrupção da gravidez; em 2014 já foram 116 consultas; em 2018 foram 1.952 e em 2021 – com a aprovação da lei – foram 17.943 consultas telefônicas sobre protocolos e procedimentos (93%). Neste mesmo ano, foram 795 (4%) consultas sobre métodos contraceptivos e 459, por outros motivos (2%).
Assim como nos países onde o aborto é descriminalizado, na Argentina um dos métodos mais comuns é o procedimento de interrupção usando o misoprostol e, em menor grau, sua combinação com a mifrepristona. A equipe da Direção Nacional de Saúde Sexual e Reprodutiva explica que muitas mulheres realizam o procedimento em casa. “Elas ligam porque estão sozinhas e precisam de apoio. Pode acontecer que uma pessoa ligue em um sábado às 17h, esteja fazendo o procedimento de aborto medicamentoso, tenha uma série de dúvidas e não consiga esperar segunda-feira para ir à consulta médica”, diz Victoria Pedrido.
– Alô, boa tarde, aqui é do Ministério da Saúde.
– Olá. Fiz a interrupção [da gravidez] e quero saber se o que está acontecendo comigo é normal, pois quase não tive sangramento. Tenho dúvidas se o saco embrionário foi expelido.
– OK. Vou fazer uma série de perguntas sobre o uso do misoprostol, ok?
– OK.
– Quando iniciou o procedimento?
– Ontem às 4h da tarde.
– Como foi o uso das pílulas?
– Comecei às 4h com as primeiras, a segunda às 7h e a terceira às 10h.
– Quantos comprimidos?
– 3 doses de 4 comprimidos
– A cada 3 horas?
– Certo.
– Quantos comprimidos no total?
– 12
– Qual a via utilizada?
– Oral.
– Sublingual ou entre a gengiva e a bochecha?
– Entre a gengiva e a bochecha.
– E como foi o sangramento?
– Normal, entre coágulos, diarreia. Acho que ainda não expeli.
– Você tem consulta para acompanhamento?
– Não.
– De que parte da Argentina você é?
– Santa Fé [província ao norte de Buenos Aires]
– O procedimento indicado para o uso do medicamento está correto, dentro do protocolo do Ministério da Saúde. Os sintomas que você descreve estão dentro do esperado. De qualquer forma, após 7 a 14 dias de uso do misoprostol, é recomendável fazer uma consulta de acompanhamento, com uma ultrassonografia.
– Mas não posso ter complicações?
– Pelo que você descreve está tudo dentro dos sintomas previstos. Você tem contato com o médico que te acompanhou para a interrupção?
– Não.
– Posso pegar seus dados para que eles possam se comunicar com você e indicar uma consulta para check-up médico?
– Sim, por favor.
As ligações recebidas no 0800 estão de acordo com o que está previsto em lei: a maioria das chamadas acontecem no primeiro trimestre de idade gestacional (2.080 casos antes de 12 semanas de gravidez). Em menor proporção, casos no início do segundo trimestre e por fim, uma minoria no segundo trimestre tardio (102 casos de 16 semanas).
Capacitação dos profissionais de saúde
A capacitação dos profissionais da saúde e a implementação de métodos contraceptivos [e fundamental para o sucesso do serviço de interrupção da gravidez na Argentina. “No Brasil, não vamos conseguir parar o ciclo vicioso do aborto em situações de risco se houver resistência dos profissionais ou se não houver capacitação profissional sobre os métodos contraceptivos ou aborto previsto em lei”, reflete o médico Cristião Rosas.
Desde a aprovação da lei na Argentina, o país conta com um programa nacional de capacitação profissional para a interrupção voluntária e legal da gravidez. O principal objetivo tem sido explicar o alcance da lei às equipes médicas da rede de saúde e atualizar os profissionais sobre dois protocolos de atendimento — aborto medicamentoso e aspiração manual endouterina (Ameu), método que demanda internação da paciente gestante por uma manhã.
Susane Hwang, médica na Maternidade Municipal de Cachoeirinha, na Zona Norte da cidade de São Paulo, conta que os protocolos municipais sobre como encaminhar as mulheres em casos de violência são parte fundamental para melhorar o atendimento relacionado ao aborto previsto em lei.
“Saber informar é fundamental para garantir plenamente os direitos sexuais e reprodutivos. Saber para onde encaminhar as mulheres, como e quais são os protocolos e leis que possam orientá-las. Mas também é fundamental que profissionais de saúde tirem dúvidas sobre os protocolos de atendimento e marcos legais, porque muitos não sabem o que fazer diante de uma mulher que chega na consulta”, conclui Susane.
Apoio Instituto Serrapilheira — projeto contemplado na chamada “O papel da ciência no Brasil de amanhã”
Realização Genêro e Número e GHS América Latina
Pesquisa e Reportagem Soledad Dominguez, Natalia Veras, Mariana Oliveira
Edição Maria Martha Bruno
Design Marilia Ferrari, Victoria Sacagami