Quase lá: Onda neoconservadora contribui para o atraso na saúde reprodutiva feminina no Brasil

Cristiane Cabral analisa dados do Fundo de População das Nações Unidas sobre saúde reprodutiva feminina no Brasil e culpa a negligência na educação sexual como um problema em tempos de neoconservadorismo

 Publicado: 12/05/2025 às 10:18
 
Um dos grandes vilões na escassez de uma saúde reprodutiva feminina de qualidade no País é a educação sexual negligenciada – Ilustração: Freepik
 

O Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) publicou, em 2024, uma revista que reúne uma série de relatórios e pesquisas sobre saúde reprodutiva feminina no Brasil nos últimos anos. O documento faz parte do acompanhamento da entidade em relação ao progresso nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) traçados até 2030.

Dentre os dados apresentados, segundo estudo realizado em 2021, 13% das mulheres entrevistadas apresentavam conhecimento pleno sobre planejamento reprodutivo. Além disso, acredita-se que mais da metade das gravidezes no País sejam indesejadas ou não planejadas. Questões como essas reafirmam a urgência de discutirmos sobre a garantia de informações a mulheres em idade reprodutiva, sobre aspectos ligados a suas vidas sexuais. Contudo, esse problema é muito mais amplo.

Muito mais que informação

Cristiane da Silva Cabral – Foto: CV Lattes

 

Cristiane Cabral, professora do Departamento de Saúde e Sociedade da Faculdade de Saúde Pública da USP, comenta que um dos grandes vilões na escassez de uma saúde reprodutiva feminina de qualidade no País é a educação sexual negligenciada. “Não tem como ficar pensando apenas em acesso à informação. Claro que é importante, mas onde nós deveríamos aprender essas coisas? Seria no âmbito da escola. É necessário pensar em uma educação sexual nas escolas, para meninos e meninas”, afirma.

Outra questão importante ressaltada pela professora está na violência sexual contra mulheres e jovens. Dados do relatório sobre gravidezes em meninas de 10 a 19 anos indicam altos índices nas regiões Norte e Nordeste. Contudo, a pesquisa falha ao unir esse grupo etário, visto que desconsidera as gravidezes advindas de estupro ou violência, que representam grande parcela entre meninas de 10 a 15 anos. “Eu estou encobrindo de 10 a 14 o fenômeno da violência sexual. Os estudos não podem fazer isso. São fenômenos diferentes, eu analisar uma gravidez de uma menina de 10 anos e uma gravidez de uma jovem de 18 anos”, afirma a docente.

Um aspecto realçado na revista é a desigualdade regional existente no País a respeito da temática. Norte e Nordeste, por exemplo, enfrentaram um aumento nos índices de HIV e aids entre 2020 e 2022, de 35,2% e 22,9%, respectivamente. Cristiane ressalta que as estruturas precárias e pobreza dessas localidades em comparação ao resto do País contribuem diretamente para essas taxas. A distância entre as moradias e postos de saúde em regiões específicas também atrapalham na resolução da questão.

Desafios

Durante os anos 90 e 2000, diversas políticas públicas a respeito da saúde reprodutiva no Brasil foram criadas e tiveram êxito em seus objetivos. Entretanto, para a professora, houve um desmonte sistemático nas estruturas de políticas públicas e nas iniciativas dos últimos anos. Muitas dessas alterações advêm da crescente onda neoconservadora no cenário político nacional. “A cada dia brotam projetos no Congresso e nos municípios contra que a gente fale de sexo nas escolas, contra que a gente ensine meninos e meninas sobre o que é sexualidade, sobre como ter uma vida sexual saudável, e impede que a gente fale sobre violência”, realça Cristiane.

Outra questão importante que vem sendo negligenciada no País é o direito ao aborto. Desde a pandemia, diversos serviços especializados foram fechados para o tratamento de pacientes de covid-19. Contudo, após a crise sanitária, os leitos para a realização do aborto legalizado não foram rearranjados. Novamente, um dos motivos para esse retrocesso é justamente o cenário político brasileiro dos últimos anos. O conservadorismo presente em parcela do Congresso Nacional atrapalha os avanços na temática.

Majoritariamente em involução, a saúde reprodutiva no Brasil, porém, teve alguns avanços. Em 2023, entrou em vigor lei que desobriga o aval do cônjuge para a realização de métodos sexuais irreversíveis, como a vasectomia e a laqueadura. Para a docente, essa mudança é importante e representa a luta e resistência das mulheres na garantia de seus direitos. “Diante de tantas intempéries e de tantas impossibilidades de controle sobre a vida, ao fazer uma laqueadura ou uma vasectomia é uma dimensão que eu passo a controlar na minha vida”, complementa.

Projeções

Tendo em vista a involução realizada em questões de saúde reprodutiva feminina no Brasil, o cenário para os próximos anos é alarmante. Cristiane projeta muita luta e resistência para garantir os direitos necessários a mulheres e meninas em idade reprodutiva. “A gente está em uma cultura que está promovendo violência e acha que tudo bem. Eu acho que os próximos anos são de muita batalha, muita disputa para a gente não continuar perdendo não só no campo dos direitos reprodutivos, mas de direitos humanos.”

*Sob supervisão de Paulo Capuzzo


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fonte: https://jornal.usp.br/radio-usp/onda-neoconservadora-contribui-para-o-atraso-na-saude-reprodutiva-feminina-no-brasil/

 


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