“Quosque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?”
(Até quando, enfim, ó Catilina, abusarás da nossa paciência?)
Esta frase escrita pelo filósofo romano Marco Túlio Cícero, no ano 63 antes de Cristo, serve muito bem para ser usada pelas mulheres brasileiras, trocando apenas o “Catilina” por “Os três Poderes da República do Brasil”, diante do que estão fazendo com uma das leis mais importantes para as mulheres, de nossa legislação: A Lei 11.340/2006, conhecida como a Lei Maria da Penha.
Na antiguidade as mulheres foram puxadas pelos cabelos, na Idade Média foram queimadas em fogueiras, no início da Idade Moderna não podiam votar, não tinham acesso aos estudos e só trabalhavam em serviços subalternos, não escolhiam seus maridos nem decidiam sobre suas vidas e a vida de seus filhos.
No século XIX, as mulheres se organizaram e foram à luta pelos seus direitos. Conquistaram o voto, entraram nas universidades, romperam barreiras na vida privada, social, política e trabalhista.
Mas o que nós mulheres não conseguimos ainda debelar, por mais que trabalhemos arduamente neste sentido, é a violência contra nós, exercida por maridos, companheiros, namorados no âmbito das relações afetivas. Sabemos que a violência doméstica vem sendo praticada (na sua maioria, por homens) desde os tempos da caverna. Naquela época a violência era pública. Depois tornou-se uma prática privada, não era compartilhada com a família nem com o ciclo social. Era escondida e disfarçada, por medo ou vergonha.
Durante décadas os movimentos de mulheres buscaram solucionar este martírio. Várias ações foram organizadas, várias tentativas de mudar a legislação foram efetivadas por parlamentares, juristas e movimentos de mulheres, sem, entretanto, ter um fecho plenamente satisfatório e geral. Somente no início dos anos 2000 os movimentos de mulheres conseguiram dar um grande passo. A partir de uma ação audaciosa e consorciada entre ONGs feministas, colocamos no papel o sonho e o necessário, orientadas pelos tratados internacionais assinados pelo Brasil. À proposta, juntaram-se juristas, assessor@s parlamentares e especialistas que trouxeram outras colaborações. O Legislativo acreditou na proposta. Durante todo o processo de mobilização para a aprovação da proposta da lei, os movimentos de mulheres, em especial a Articulação de Mulheres Brasileiras, mobilizaram o debate nos estados, em audiências públicas nos Legislativos locais, fazendo desse debate um importante processo construtivo, colaborativo e participativo para o alcance de um texto legal – uma exceção que deveria ser seguida na construção de todas normas legais em nosso País. O Executivo tomou as rédeas do processo, como era seu papel, e juntamente com o Consórcio, entregou ao Legislativo uma minuta de Projeto de Lei que, depois de debatido, foi aprovado e sancionado como Lei 11.340/2006.
Nestes 10 anos da Lei, as mulheres se encorajaram e as denúncias triplicaram. Mulheres, parentes, amigos, vizinhos, conhecidos, não temem mais os agressores de mulheres. Denunciam.
A violência camuflada nas quatro paredes dos lares tornou-se pública mesmo com a deficiência do sistema de justiça e a ineficácia da aplicação da Lei em seu todo.
Mas a violência continua. Mulheres são mortas, diariamente, por maridos, namorados ex, ex, ex.
Ao invés de aplicarem a Lei em sua forma total – educação, prevenção, punição e reparação, nossos “poderes” preferem colocar as mulheres vitimizadas par a par, frente a frente, tête-à-tête com seus agressores em “rodinhas de conversas”, em nome da “paz em casa”. Somos contra essa inciativa do Supremo Tribunal Federal que acaba por disseminar uma ideia de que a violência doméstica não é tão séria, banalizando-a.
O desmonte da Lei Maria da Penha não ficou só com as “rodinhas de conversas” que o Conselho Nacional de Justiça chama de constelações familiares e quer impor às mulheres já tão sofridas.
Temos ainda o desmonte sugerido pelo legislativo quando aprovou recentemente o PLC 07/2016 (no Senado) que, de forma completamente antidemocrática, modificou o PL 36/2015 (da Câmara) que pura e simplesmente definia que o atendimento policial à mulher vítima de violência fosse realizado por servidor habilitado e, preferencialmente, do sexo feminino. O Senado, na calada da noite, sem consulta às entidades envolvidas no atendimento às vítimas de violência doméstica, tira dos juízes a prerrogativa de estabelecer as medidas protetivas de urgência, passando esta atribuição aos delegados de plantão, ferindo frontalmente a nossa Constituição, pois viola o princípio de reserva de jurisdição. Ainda mais, e se o Delegado de plantão não considerar necessário tomar medidas protetivas de urgência, a mulher terá autonomia de ir, por conta própria, em busca do Judiciário?
Muitos outros projetos de lei querendo alterar “nossa Lei” tramitam no Congresso Nacional, sendo que a maioria vem diminuir sua capacidade de enfrentamento, tornando simples “caso de polícia” ou retroagindo ao período em que a violência doméstica era objeto de troca – cadeia X cesta básica – e sua resolução ficava à cargo dos Juizados Especiais Criminais, juntamente com rixas, brigas de galo, infrações consideradas como de “menor potencial ofensivo”, portanto, insignificantes quando sabemos que o primeiro “tapinha” pode ser o primeiro degrau para se chegar ao homicídio.
É abuso demais e já não temos tanta paciência com estes poderes que não respondem às nossas demandas, não buscam compreender a lógica da Lei, que não respeitam nossas dores, que não querem mudar de postura nem investir na ousadia de eliminar da sociedade brasileira o ideário patriarcal de inferioridade das mulheres, que nos submete cotidianamente à violência doméstica.
Uma rebelião de mulheres está nascendo, no campo e na cidade, nas vilas e favelas, nas fábricas e nas universidades, como demonstram as diversas mobilizações de mulheres que têm tomado as ruas do pais desde 2015, em manifestações como o “Fora Cunha” ou os atos políticos do dia 8 de Março deste ano, que levaram milhares de mulheres às ruas em mais de 60 cidades brasileiras, denunciando as violências cotidianas que sofremos e protestando contra o desmonte dos direitos conquistados em anos recentes. Estamos atentas, e dispostas a ocupar cada vez mais as ruas em defesa das nossas vidas, dos nossos direitos, de leis e políticas públicas de enfrentamento às desigualdades de gênero, que violentam e matam milhares de mulheres todos os dias.
*Iáris Ramalho Cortês, 77, advogada feminista, integrante do Conselho do Cfemea.