Quase lá: Negritude

  • “O feminismo negro não divide”. Entrevista com Djamila Ribeiro

    Aos 19 anos, quando ingressou na Casa de Cultura da Mulher NegraDjamila Ribeiro conseguiu ampliar sua visão e enxergar para além das narrativas dominantes de sua sociedade, o que lhe permitiu descobrir as lutas de sua raça e seu gênero para superar os preconceitos e os maus-tratos.

  • Ações afirmativas e universidade utópica

    O acolhimento de grupos historicamente excluídos não se resolve na afirmação da diferença anterior ao encontro. O verdadeiro respeito implica transformação e exige inventar um novo espaço ético, político e epistemológico


    Foto produzida no 3º Fórum Nacional de Educação Escolar Indígena, na Universidade de Brasília (UnB). Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

     

    Por João Carlos Salles

    Este texto foi apresentado como aula inaugural do semestre 2023.1 da Universidade Federal do Pampa, com o título “Educação e cidadania: sobre acolhimento e respeito em ações afirmativas”.1 

    1. Devemos sempre renovar nosso compromisso com uma sociedade democrática. Passada a mais inclemente tormenta, sendo possível agora um diálogo com o governo federal, importa refletir e continuar a defender os valores universitários mais essenciais e permanentes. Afinal, um outro mundo é possível, mas nenhum valerá a pena em nosso país sem uma universidade pública e inclusiva, capaz de realizar, de norte a sul, ensino, pesquisa e extensão de qualidade. 

     
     

    Estivemos juntos e misturados no combate aos desmandos vários de um governo tirano. Não fomos cúmplices dos absurdos que o obscurantismo mais completo nos quis impor. Agora, após uma vitória tão significativa, não podemos ser cúmplices de nenhum rebaixamento de nossos sonhos. Qualquer o governo, nossa medida é o bem comum – uma luta, pois, constante e de longa duração, que nos leva a resistir na tormenta e na calmaria contra toda e qualquer limitação de nossos sonhos deveras utópicos. 

    Nada deve arrefecer, por exemplo, nossa defesa da universidade como espaço autônomo. Chova ou faça sol, é nosso dever, por exemplo:

    1. Combater a separação entre excelência acadêmica e compromisso social, uma vez que afirmar apenas o compromisso social ou apenas a excelência acadêmica, como dimensões separadas, é diminuir o brilho de nossa gente, que pode e deve iluminar com seu talento o espaço específico da vida acadêmica, produzindo ciência, cultura e arte; 
    2. Combater a separação entre ciência básica e ciência aplicada, que se amesquinha inclusive na separação entre os interesses da ciência, da tecnologia e da inovação, por um lado, e os dilemas das humanidades
    3. Reafirmar, por outro lado, a ligação entre todos os níveis de ensino – contra, portanto, a oposição (enviesada e perigosa) entre educação básica e educação superior. 
    4. Afirmar a universidade como parte de um projeto de nação e, portanto, como um projeto que nos coloca a todos em linha de conta, tendo todas as nossas instituições padrões de qualidade comensuráveis.

    Sim, no ambiente da universidade pública e contra interesses privatizantes, cabe insistir, nossa luta é sem trégua. Mesmo neste momento de clareira, de abertura, após tenebrosa noite, muitos são os riscos. Assim, precisamos estar preparados para o conflito (como sempre estivemos), mas também para a sutileza, como nunca podemos deixar de estar. Escapamos do escabroso, do abjeto. Pulamos a fogueira e, todavia, caímos no Brasil, no Brasil ele mesmo, digamos assim, com suas ambiguidades e sutilezas, com suas melhores esperanças e suas violências as mais ordinárias. 

    Deixado a si mesmo, nosso país é assustador: excludente, autoritário, mal letrado – e isso é assim, que fique claro, em todo o Brasil, retrógrado tanto no Sul quanto no Nordeste, embora de maneira diversa e aparentemente oposta. Pensando no contexto da política e da cultura institucionais, é obviamente conservador e pode ser também retrógrado o cenário em que podemos operar, ao falarmos de conhecimento, de igualdade, de combate a preconceitos. Continuamos, pois, a viver a paradoxal situação de uma cultura rica, em diversas dimensões e por toda parte, mas situada em um espaço público primitivo, tosco, de sorte que a experiência da vida pública em nosso país tem amarras concretas, tanto simbólicas quanto práticas. 

    Desse modo, a abertura de um semestre letivo, sempre carregada de esperanças, é mais que oportuna para refletirmos sobre os laços internos entre educação e cidadania. Farei isso, então, de duas maneiras. A primeira, bastante breve, em considerações gerais sobre a relação entre essas duas dimensões. Em segundo lugar, discutirei a importância do aprofundamento das ações afirmativas, que as traduzem, refletindo sobre uma possível ambiguidade que pode afetar e pôr em risco o significado mais profundo de nossas políticas de inclusão, que não podem se afastar do duplo desígnio de enriquecimento do processo educacional e de aprofundamento da cidadania.

     

    2. O pensamento liberal clássico costuma ver a educação como condição de cidadania. Concede inclusive que esta talvez seja a única obrigação a ser arcada pelo Estado, que deveria custear a educação básica, como se o Estado firmasse então um compromisso com o cidadão futuro. Daria a esse futuro cidadão as condições de exercer seus direitos de escolha nos limites de uma democracia formal e representativa.

    Não recusemos a importância dessa ideia. Todavia, ela é insuficiente e mesmo perigosa em sua insuficiência. Por meio dela, cidadãos abstratos se formam para exercer um poder de escolha, reconhecendo sua unidade na matemática do voto ou na celebração de um título acadêmico. O indivíduo, tomado no abstrato e em função do seu futuro exercício de cidadania, teria compromisso apenas com a defesa de seus valores já familiares e interesses individuais. E a educação, supondo um laço comum entre idênticos, poderia assumir a mera tarefa de reproduzir distorções e sublimar exclusões, e não a tarefa de reinventar a ligação entre os contratantes do pacto social.

    Importa-nos afirmar o outro lado da equação, ou seja, pensar a cidadania como condição da educação. O cidadão, tomado agora não como um ente abstrato cuja formação tão só permitiria uma participação mais esclarecida em um debate eleitoral, tem agora concretude, cor, história, gênero, idade, classe, raça. Sua vida pública não se limita a uma participação eleitoral anódina, mas carrega, também em palavras, também em sua formação, as marcas de sua instalação social, de modo que a educação, assim pensada, não mais deve encobrir diferenças nem sublimar exclusões.

    Por isso mesmo, é mais que oportuno pensar as tarefas da educação e as tarefas da cidadania, lembrando que a produção de uma unidade cívica, caso esconda uma diversidade social perversa, é mera dominação; e a produção de uma unidade pela educação, caso apague uma diversidade cultural rica, é mera catequese, adestramento. 

    Pensar, em conformidade com uma nova matriz, a conjunção entre educação e cidadania, é restabelecer um solo utópico para um projeto de nação, no qual a universidade pública, por exemplo, não se restrinja à função instrumental de formação técnica para o mercado. Ao contrário, ao associarmos os dois termos, estamos também ligando o presente ao passado, a parte ao todo, o interesse eventual do poder aos desígnios mais elevados da liberdade. E recolocamos, enfim, para nossas escolas e faculdades, a tarefa especial de constituição de um espaço de iniciação à vida comum, no qual o processo de formação de pessoas e o processo de produção do conhecimento guardam analogia profunda com a produção democrática da sociabilidade.

    Sigamos, pois, à luz o espírito de uma conjunção estreita entre educação e cidadania, para o segundo e bem mais extenso momento de nossa reflexão, cujo tema mais específico é o significado e a importância das ações afirmativas no solo de uma sociedade como a nossa, marcadamente excludente e autoritária.

    3. A conjugação entre um acolhimento compassivo e um autêntico respeito comporta imenso desafio teórico e, sobretudo, político.2 Não por acaso, pode parecer mesmo contraditória, como se ocultasse um oxímoro e uma armadilha a ligação entre ‘concernir’ e ‘respeitar’. 

    Pretendemos analisar a ligação entre esses conceitos em uma situação que amiúde os solicita como complementares, qual seja, a dos processos de aprendizagem e de formação. A experiência que temos em mente não se dá fora dos marcos das instituições acadêmicas, mas a benção de aparente racionalidade no interior da academia não suprime uma perigosa ambiguidade presente em tais termos. 

    Pretendemos, assim, mostrar tal ambiguidade na implementação de ações afirmativas na educação superior (em particular, no caso do Brasil), quando os termos da equação, então tornados indicadores concretos, nos permitem levantar diversas questões. Por exemplo: Como o processo de aprendizagem pode não significar um aprofundamento da servidão? Servidão dos alunos aos mestres, das escolas aos poderes constituídos, do espírito criador ao ranço da repetição? Como transformar em política o que pode subverter o segredo aparentemente comum a toda política, qual seja, o de preservar e reproduzir os privilégios anteriores com o máximo de sutileza? Por outro lado, como a instituição pode ser subversiva em relação a si mesma, sabendo evocar e criar condições para que cada estudante esteja na posição de julgar posições e comportamentos por si mesmo, ou seja, de seu lugar, levando ao centro a contribuição de seu lugar próprio, que deixa então de ter a marca de um lugar natural?

    Um traço do processo de subordinação que tolhe o processo de aprendizagem reside na redução do aprendizado a um processo isolado, valendo o coletivo tão só pela estatística. Faz parte então de um modelo de combate, de uma perspectiva utópica da aprendizagem, criar condições para que cada estudante seja legião, ou seja, para que nele transpirem os movimentos sociais, as forças da história. 

    Por outro lado, faz parte desse mesmo modelo, um tanto paradoxalmente, criar condições para que cada estudante esteja em linha de conta com todos os recursos da linguagem e tenha pontes para culturas que não são diretamente a sua. A construção da justiça, acreditamos, não sendo vista como externa, depende da capacidade coletiva de harmonizar essas medidas desejavelmente desarmônicas, compreendendo que a aparente placidez da vida institucional pode ocultar formas profundas e violentas de tradução de conflitos sociais.

    4. Para analisar a tensão efetiva entre “concernir” e “respeitar”, tomaremos um modelo ideal, o das condições de uma comunicação desimpedida. Enquanto modelo descritivo, ele pode ser tão artificial quanto a afirmação contrafactual de que todos somos iguais em direitos. Por outro lado, como modelo normativo, ele não deixa de ser necessário, assim como é necessária a afirmação reiterada de nossa igualdade. A tensão presente entre os termos, bem como entre a natureza descritiva ou normativa do modelo, fica mais clara quando levamos em conta uma experiência particular, a saber, a da implantação de ações afirmativas na universidade pública brasileira. 

    Nosso objetivo é, portanto, ler as implicações desse modelo abstrato como guia desafiador e instável na implementação de ações políticas concretas, de modo que o acolher não se torne uma forma de condescendência que mantém a subordinação, nem o respeitar seja uma mera formalidade, que acaba por suprimir a emergência de novos valores e conteúdos. 

    Ora, quais são os traços essenciais (cada qual necessário e, em conjunto, suficientes) de uma comunicação desimpedida? Em instituições como as acadêmicas e sobretudo em experiência de ensino, nas quais os conflitos podem e devem ser resolvidos pela palavra, são condições ideais de argumentação: (i) a igualdade de direitos de quantos argumentem; (ii) a igualdade potencial de compreensão; (iii) o reconhecimento da alteridade potencial ou efetiva; e (iv) a crença comum na eficácia da linguagem. 

    A justificação desses traços é relativamente simples. Não a detalharemos aqui. Basta dizer que tal justificação, em suma, lembra-nos que (1) o autoritarismo é infenso ao debate, (2) dificuldades individuais devem ser superadas coletivamente, (3) o mérito se constrói como uma experiência coletiva e não como um privilégio eventualmente oriundo de alguma desigualdade e, enfim, (4) a linguagem é necessária para a experiência democrática de convencimento e a construção da sociabilidade.

    O maior desafio das instituições é tornar realidade um modelo tão próximo da utopia. O modelo, porém, pode servir como um guia, sendo aplicável a políticas amplas e ao dia a dia, inclusive no espaço da sala de aula. O modelo tem por base um processo de procura de convencimento não unilateral, ou seja, todos devem, em última instância, estar em condições de convencer e de serem convencidos. Aqui, convencer significa trilhar um caminho que todos devem poder seguir, caso diante das mesmas evidências e recursos. 

    O modelo de comunicação torna-se um modelo de encontro. Ele não retira a prerrogativa do professor, não transforma o professor em um simples aluno, mas visa a renovar a autoridade do professor no exercício do ensino. O professor, assim, não tem uma autoridade formal; e o ensino não pode se reduzir a uma catequese. De certa forma, o modelo valoriza a experiência da aprendizagem ao valorizar a experiência prévia dos agentes (nada passivos) envolvidos no processo, e nos lembra uma imagem de Martin Buber: 

    Quando, seguindo nosso caminho, encontramos um homem que, seguindo o seu caminho, vem a nosso encontro, temos conhecimento somente de nossa parte do caminho, e não da sua, pois esta vivenciamos apenas no encontro.3

    Essa descrição do encontro coloca o desafio de valorização plena da alteridade, que está na base do modelo de comunicação ideal. Esse modelo, para nos valermos de uma analogia adicional, valoriza a contribuição inusitada que resulta de nossa abertura para o outro, que não pode ser tratado como uma massa informe, a ser moldada em conformidade com padrões que pouco têm a ver com sua natureza e história. 

    Permitam uma analogia. O ofício da formação de pessoas parece-nos mais semelhante à arte de esculpir obras em madeira. O barro aceita quase tudo – a começar do ser humano. A argila (e até o mármore) permite curvas ou linhas retas, mas a madeira não é assim passiva, e costuma resistir de um modo sempre único, como reagem as palavras. A madeira não se deixa torcer de qualquer jeito. A forma nela não brota de um silêncio prévio, e texto algum nasce mesmo de uma página em branco. Insidiosa, sua matéria se aninha, sugere, antecipa, guarda linhas de força, a memória dos nós, os acasos, as cicatrizes do tempo. 

    A madeira permite ousadias ou condena o artesão a repetições. E só o verdadeiro artista lhe arranca formas inusitadas e nela adivinha o destino implacável de anjo ou demônio, antes oculto e indefinido. O artista sim consegue despertar a forma mais secreta e restituir significados, levando-nos a ver com autêntica surpresa desenhos antes adormecidos.

    A analogia aplica-se a nosso modelo e a todo ofício da expressão e da formação humana – esse esforço que não se reduz à palavra, mesmo encontrando nesta um especial exemplo. De certa forma, ao refletirmos sobre ações afirmativas, estamos também refletindo sobre a luta pela expressão no barro, na madeira, em sons, em cores, corpos e, especialmente, na palavra; enfim, sobre a luta pela afirmação da linguagem e, de modo mais específico, pelo direito à palavra e sobre as relações íntimas e deveras ambíguas entre a conquista da linguagem e suas promessas de liberdade.

    5. Ações afirmativas são instrumentos permanentes de construção da sociabilidade. Elas ultrapassam a mera reparação individual ou a reposição do valor de um grupo, constituindo sobretudo um meio de longa duração de invenção possível da humanidade. Por isso, mais que abençoarem uma comunidade com uma solução, elas nos confrontam com muitas medidas em aberto. Vejamos o caso da universidade pública na sociedade brasileira.

    A sociedade brasileira é estruturalmente desigual e arraigadamente autoritária. Nesse contexto, a universidade pública começa no início do século passado como um projeto das elites, mal contemplando em cursos menos valorizados camadas da população condenadas a alguma espécie de subserviência. Não por acaso, o número de vagas era relativamente pequeno, sendo flagrante então o déficit de vagas no ensino superior – déficit, aliás, que ainda é significativo, mesmo após a grande expansão de vagas e criação de novas universidades nas duas últimas décadas.

    A Universidade Federal da Bahia, por exemplo, não chegava a 20 mil alunos nos anos 90. Agora, o número de discentes de graduação e pós-graduação já é superior a 50 mil. Todavia, mesmo após um tal salto e com o esforço das universidades para que a exclusão vivida fora do ambiente universitário não seja vivenciada em nosso meio, preserva-se a desigualdade em nosso ambiente. 

    Notável, porém, é o número de estudantes em vulnerabilidade. Cerca de 70% dos alunos da UFBA têm renda familiar mensal per capita de até um salário mínimo e meio. E desses estudantes em vulnerabilidade, cerca de 50% deles têm renda familiar mensal per capita de menos de meio salário mínimo. Nesse contexto, sem o extremo esforço por oferecer moradia, alimentação e acesso a material escolar, não se pode pedir que os estudantes possam corresponder ao mínimo padrão de qualidade acadêmica. Além disso, é preciso ter em conta outro déficit, qual seja, o fato de que esses estudantes (tendo muita vez sua herança cultural negada) vivem uma privação sistemática de acesso aos bens de cultura, estando afastados da capacidade de valorizar até mesmo sua própria herança e de ter domínio sobre outros meios de expressão na linguagem.

    As formaturas oferecem um bom exemplo do ritual de passagem que estamos vivendo. Estudantes se formam acompanhados de seus pais, que muitas vezes estão pisando pela primeira vez no território de uma universidade. Esse ritual é emocionante, dá a entender em cada caso que uma página pessoal e social está sendo virada. Esse ritual, porém, pode também ser ilusório, muito em conformidade com os procedimentos sutis de discriminação próprios da sociedade brasileira, que costumava ser descrita pela ideologia dominante como uma espécie de democracia racial – quando, ao contrário, nossa sociedade é marcada por um racismo estrutural, ora bastante explícito, ora violentamente sutil.

    A população majoritariamente negra em nossas cadeias e a violência das estatísticas são suficientes para mostrar a face explícita da violência racial. Por outro lado, a imagem de um convívio cordial estava dada na inexistência de uma clara separação dos espaços destinados a brancos ou a negros, por exemplo. A exclusão havia e continua a haver, sem dúvida. Clubes recusavam filiação, empregos exigiam o que chamavam de “boa aparência”, e prédios residenciais separavam elevadores “sociais” de elevadores de “serviço”, de modo que a discriminação social ficava acobertada por uma separação aparentemente neutra de funções. 

    Outra maneira sutil de discriminar, tornando invisível a presença, se dá com a exigência de fardas para empregadas e babás em condomínios. Sua presença nos espaços estaria autorizada por sua negação. Negros ou pardos (ou pessoas flagrantemente pobres) só estariam nesses lugares por suas funções e não como pessoas. A farda seria uma espécie de manto de invisibilidade. Aqui, podemos lembrar uma historieta do Padre Brown, do inteligente conservador G. K. Chesterton. Padre Brown descobre o mistério de alguém que teria aparecido morto, quando, por seu próprio testemunho ao telefone pouco antes de ser assassinado, não havia ninguém com ele. Simplesmente, ele não considerava o empregado fardado do correio um alguém.

    Dado tamanho contexto de exclusão, é preciso aplicar o modelo ainda com mais força, de modo que as diferenças de acesso à linguagem, o reconhecimento da alteridade, o respeito à diferença e a afirmação da igualdade possam se dar mesmo em condições tão extremas e desiguais. Caso contrário, não se levando em conta esse quadro de discriminação, o acesso ora propiciado a camadas amplas pode mitigar a dor, mas não superar, nem de longe, a grave desigualdade. 

    A segregação, afinal de contas, com suas sutilezas, pode bem ser traduzida em profissões de distintos “apelos e relevâncias”, de distinta acolhida no mercado ou no imaginário. Pessoas passam a ser concernidas pela efetividade das ações afirmativas, sem que estejam sendo plenamente respeitadas. Em sendo assim, até os diplomas distribuídos fartamente podem se transformar em mantos de invisibilidade e boa parte da ascensão social pode ainda ser feita pelo elevador de serviço.

    6. No Brasil, superar a pobreza extrema é tarefa antiga e sempre urgente. Entretanto, superar a miséria não é superar a servidão; não constitui por si uma medida do diálogo democrático que temos o dever de desejar. Uma legislação ambiental progressista não garante por si a proteção do meio ambiente, e leis de proteção à diversidade não implicam o fim do preconceito; assim, precisamos querer mais, precisamos retirar do modelo ideal suas consequências mais profundas. 

    Dessa forma, mesmo tendo uma utilidade imediata para orientar políticas públicas imediatas (como quando na UFBA foi preciso decidir em favor das bolsas de assistência estudantil, apesar da elevada dívida com a fornecedora de energia elétrica), nosso modelo pode orientar-nos a decidir por mais e a ter um horizonte pragmaticamente utópico, como se disséssemos com Clarice Lispector: “Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.”4

    Poder articular palavras é, então, abrir um novo campo de direitos. Importa aqui afastar qualquer inocência em relação ao termo ‘liberdade’, que é deveras ambíguo. Alguns podem acreditar livre quem não encontra obstáculos externos à sua realização – um curso d’água que não encontra uma barreira, por exemplo. Para valorizar a liberdade, caberia então apenas desimpedir o que antes enfrentava obstáculos para se realizar. Ora, com isso, estabelece-se uma certa ilusão das origens, como se estas estivessem bem definidas, sem possibilidade alguma de redefinição posterior. 

    Nesse sentido, podemos listar exigências políticas e acadêmicas suscitadas por tal esforço ainda incompleto de construção democrática. Como política, a articulação entre as noções de ‘acolher’ e de ‘respeitar’ à luz de um modelo de comunicação desimpedida leva-nos a algumas consequências, dentre as quais podemos apontar que:

    1. As pontes entre a instituição que acolhe e as comunidades acolhidas precisam ter duas direções. Esta é uma consequência de natureza institucional e também epistemológica. Por um lado, as pontes criadas não podem significar um ato de pura catequese, que desconheceria a riqueza prévia de quilombolas, indígenas, comunidades de fundo de pasto, comunidades tradicionais, saberes populares. Por outro lado, o encontro ele mesmo deve agregar valor, de sorte que não cabe ensejar uma mera lógica de substituição e ocupação de espaço, que desconheceria inclusive a existência anterior de procedimentos acadêmicos consistentes de produção de saber. Cabe assim afastar unilateralidades. Ou seja, cabe evitar tanto alguma espécie de dominação eurocêntrica ou etnocêntrica, como também, ao concernir e acolher novas pessoas e novos saberes, estabelecer uma dimensão de respeito mútuo, de modo que o diálogo cultural e epistemológico leve ao acréscimo e cresça pela multiplicação e não opere por simples supressão.
    2. A construção de um espaço de diálogo equivale ao exercício de semear liberdades. Esta, uma consideração filosófica ampla. Em exercício de construção deliberada da sociabilidade, liberdade não é simples afirmação do que existia antes do encontro, não é mera reparação ou modo de tornar equivalentes os desiguais. No espaço do encontro, tanto não tem liberdade quem pode fazer qualquer coisa, quanto não a tem quem não pode fazer nada. Sendo o indivíduo uma invenção da linguagem que o articula, tanto sua liberdade não pode ser mera indiferença, quanto nunca será livre a simples afirmação idiossincrática. Ao contrário, é preciso poder inventar coletivamente nossas identidades e idiossincrasias. 
    3. Afirmar positivamente tal modelo ideal, transformá-lo em política pública, implica recusar uma certa ideia individualista de liberdade. Esta, uma consideração também filosófica, mas bem mais específica. No espaço do encontro, a liberdade não pode ser simples obrigação de retorno à origem ou afirmação do que já estava dado, embora posto a ferros. Servidão não pode ser destino. O indivíduo livre deve assim superar as inibições que não são uma marca de natureza; deve ser capaz de fazer a terapia das ilusões que o condenam à servidão por simplesmente estar em sociedade. Se o indivíduo fosse anterior à sociedade, retornar à sua limitação, retornar a um si mesmo, seria como reencontrar o que a vida comum (dada como posterior) teria apagado. Ora, mantida tal ilusão, o indivíduo apareceria como transparente a si mesmo, enquanto o outro seria sempre opaco, além de intransponível obstáculo. O modelo tem então a consequência profunda de nos ensinar que não há verdadeira liberdade sem a possibilidade de um exercício comum da imaginação.
    4. A tarefa da implantação de modelos de comunicação não se limita à sala de aula. Esta é, enfim, uma consideração política central. Com tamanho desafio de reconhecimento recíproco e reinvenção, tal implantação de uma cultura profundamente democrática não pode estar restrita a códigos de conduta científica ou acadêmica. Por óbvio, além do exercício específico da educação, seu sucesso depende da sociedade, de contextos que doravante autorizem a expressão plena da linguagem, afastando quaisquer manifestações de autoritarismo e obscurantismo e, sobretudo, combatendo as desigualdades estruturais, sociais, culturais e econômicas, em nosso país, que atravessam sim relações de gênero, classe e raça.

    7. Não é previsível o que pode resultar da aplicação de modelos radicais de política pública. Apenas devemos poder querer fazer bem mais do que repetir alguma prosa, do que apenas receber ensinamentos de cuja elaboração não participamos, pois precisamos querer ter condições de elaborar e incluir nossa própria narrativa. 

    Não basta aprender a repetir fórmulas que nos fizeram saber de cor, mas é preciso sim poder expressar inclusive o que pode dissolver tais fórmulas. Pensamos, afinal, com fórmulas para podermos ir além delas; aprendemos de cor muita coisa para podermos ampliar os limites da linguagem. Por assim dizer, queremos poder fazer nossa própria literatura e, ao dominarmos os signos, ser capazes de juntos fazer poesia. É muito talvez, mas está longe de ser tudo. Afinal de contas, fazer política é a arte de nunca nos contentarmos com os abismos. 

    Concluímos, enfim. Em nossa fala, tão somente lembramos tarefas que são as da educação enquanto associada a projetos radicais de cidadania – a saber, criar as condições de organização da experiência por meio de experiências de linguagem que não predeterminem nem consolidem relações de exclusão ou de dominação. A tarefa da educação, que é especialmente a da universidade pública, é afinal prover cada sujeito das condições de exercício pleno de sua subjetividade, e garantir a precedência da palavra, do símbolo, do gesto significativo, sobre todas as formas de poder, de modo que nossa comunicação, sendo desimpedida, expresse uma sociedade na qual sejamos economicamente iguais e nos encontremos de forma democrática, realizando de forma coletiva o vaticínio enunciado outrora por Herder:

    Quanto mais profundamente alguém descer em si mesmo, na construção e na origem de seus pensamentos mais antigos, mais ele cobrirá os olhos e pés e dirá: eu sou o que eu me tornei.5

    Notas

    1. Agradeço o honroso convite do amigo e reitor da UNIPAMPA, Roberlaine Ribeiro Jorge, que tem travado conosco o bom combate em defesa dos melhores valores da universidade pública.

    2. As noções de “compassionate concern” e “robust respect” são usadas em sentido mais específico por Michele Moody-Adams, in Making Space for Justice, New York: Columbia University Press, 2022, p. 4.

    3.  BUBER, M., Eu e Tu, São Paulo: Centauro, 2001, p. 100.

    4.  LISPECTOR, Clarice, Perto do coração selvagem, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 50.

    5.  HERDER, J. G., “Do conhecer e do sentir da alma humana”, apud HONNETH, A., O Direito da Liberdade, São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 66-67.

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