Quase lá: Judith Butler

  • Judith Butler: Quem tem medo do gênero?

    O fantasma, agitado pelo fascismo, virou álibi para restaurar a hierarquia patriarcal e destruir quem busca viver em liberdade. A tarefa é enfrentar o sadismo moral disfarçado de moralidade, por meio de uma visão ética e política transformadora

  • Performance de gênero

     

     

     

    Por LEDA TENÓRIO DA MOTTA*

    Michel Foucault ao uso do pragmatismo americano

    1.

    Se há algo que incomoda os atuais gender studiesé a operação de subjetivização e o abraçar da subjetividade feminina implícitos no cogito beauvoiriano: “não se nasce mulher: se devem”. Argumenta-se contra que ele remete a uma anterioridade dada, homologa o corte sexual. Assim, ultracontemporaneamente, um pensamento reivindicado não-binário ergue-se programaticamente contra tais modulações.

    Concedendo que Simone de Beauvoir soube distinguir entre posições de gênero e sexualidade, e teve o mérito de perceber que o sexo não causa o gênero, denunciam uns e outros que, em última instância, a filósofa deu a feminidade por inata, confirmou sua normatividade ideal. Veja-se a homologação da presença metafísica dele e dela nos significantes categoriais da conclamação final “à consciência de si” lançada nas conclusões de O segundo sexo. Onde se pode ler que:“…homens e mulheres devem afirmar sem equívoco sua fraternidade”(Beauvoir, 1976, II, p. 663).

    Em Problemas de gênero, Judith Butler dirá que, trabalhando com um corpo físico anterior ao corpo percebido, Beauvoir vê a natureza como uma materialidade resistente. E ironizará o tornar-se mulher, notando ainda que, na dinâmica desse devir, que ao mesmo tempo amarra e desamarra o gênero e o sexo, fazendo o problema de gênero sair por uma porta e entrar pela outra, o sujeito transformado já estava lá, desde sempre, na pele do agente da transformação. A frase em que se assenta o famoso dito “é curiosa e até mesmo um pouco absurda, pois como tornar-se mulher se não se é mulher desde o começo?”, exclama e pergunta (Butler, 2019, p. 193).

    Boa parte do longo capítulo “Atos corporais subversivos” em que o volume praticamente se constitui vai girar, então, em torno da suposta incapacidade dessa matriz francesa – a que aliás pertence Julia Kristeva, hoje guardiã do legado Beauvoir no mundo –, de desvincular sexo e gênero, dando o sexo por atributo analítico do humano.

    Tais desarmes não se fazem sem uma troca de guarda intelectual. É Michel Foucault principalmente quem socorre a tese butleriana de que o corpo não é sexuado antes de ser dado como tal pelos poderes discriminantes dos discursos – médicos, jurídicos, éticos, literários. Desse modo, é principalmente às arqueologia da História da sexualidade que esta professora de Berkeley formada em Yale, berço dos desconstrucionistas, deve poder colocar o gender trouble nas normas enunciativas do gênero, falando em verdades produzidas pelas instâncias repressivas, desde a letra de suas legislações.

    É do que ela parte para a formulação da “performance de gênero”, um seu conceito central, valendo-se das relações entre o dizer e o fazer que estão na base da noção de linguagem “performativa”, referente à perturbadora oposição entre funções linguísticas de simples descrição de ações, ou locutórias, e funções linguísticas de passagem ao ato, ou ilocutórias, como em frases do tipo “eu prometo” ou “eu aceito”. Neste contexto californiano, o fazer coisas com palavras será extrapolado até a linguagem teatral da drag queen, em que se localizará a mesma extensão prática.

    A hipótese é a de que a mise-en-scéne dessas figuras de homens barbados a arrastar seus vestidos e cintilâncias (to drag) pelos palcos da vida tem a faculdade de fazer acontecer diante do espectador desarmado o masculino e o feminino, sem solução de continuidade, derrubando-se a partilha genérica. O speech act do corpo desdobrado em gay e lésbica desdiria os atos discursivos compelidos, que são performativos sem saber. Nesta simulação – explica Judith Butler –, a imitação é da imitação, sem referência a nenhum original. A paródia é da própria ideia de original, sem fixação da imagem do Outro. Assim, o efeito de natural já começa desfeito. Como ela exclama interrogativamente, no prefácio de Gender trouble:“Seria a drag uma imitação de gênero, ou dramatizaria os gestos significantes mediante os quais o gênero se estabelece? (Butler,2019, p. 9).

    2.

    Se já Judith Butler em litígio com o beauvoirismo aposta em algo tão distante da liberdade existencialista frente ao destino de nascença quanto a mecânica do transformismo, surpreendentemente, Paul B. Preciado, aliás seu leitor, levará as possibilidades de transformação da mesma destinação sexual até as novas possibilidades trazidas pelo capitalismo mais que avançado, que, no subtítulo de Testo Junkie chama “farmacopornográfico” (Preciado, 2018).

    À paródia libertadora da drag queen, que ainda se sustenta em signos, ele vai contrapor uma outra reivindicada comédia, que avança para “biotecnologias” e “tecnologias protéticas” de suporte. O “Testo” com “s, de “testosterona”, fala disso. No tempo em que vivemos, recursos hormonais, cirúrgicos, genéticos, estéticos já mudaram tudo, inclusive no plano da contracepção, e da procriação assistidas, o que põe a heterossexualidade em crise, verifica ele. Cabe reverter todas essas práticas, até aqui disciplinares, em indisciplina. É o que, em tom pós-foucaultiano, chama a “dimensão “biodrag”(Preciado, 2018, 229).

    Tal briga com as referências próximas e distantes vai tão mais longe quanto, para além da defesa que faz de um novo gênero, passível de ser tecnológica e farmacologicamente montado, dito “contrassexual” (Preciado,2014), toda a teorização de Preciado insurge-se contra a psicanálise. Entrando em cena no novo milênio, com um Manifesto contrassexual, em que vai demolir, não mais a norma discursiva, como em Michel Foucault, mas a anatomia normativa, este transexual nascido mulher e evoluído hormonalmente para homem, que defende o emprego combativo de um membro viril artificial, sem pretender com isso que o masculino suplante o feminino, vai além de relegar a questão do pênis à opressão nosológica, como se fazia no passado.

    Radical, inclui na psiquiatria, por onde aliás Lacan começa, a via psicanalítica, no contexto da qual a referida questão é central. Passa assim a desautorizar Freud e Lacan escandalosamente. Para tanto, cruzando Foucault e Derrida, traz a campo o phármaconderridiano: o veneno remédio. Dopado e maquinal, seu contrassexual será algo assim como o Andrógino antes da queda, que já não quer mais saber de estar cortado ao meio, pois que agora pode curar-se medicalmente da maldição.

    Toda essa radicalidade pede grandes gestos. Assim, em 2019, vindo de uma travessia à base de drogas, que lhe enseja justamente reverter o Texto em “Testo”, ou performar a fluidez de sua mais que moderna condição sexual, acrescentando barba e bigode a um corpo de mulher, irromperá num colóquio parisiense da Escola da Causa Freudiana sobre “Mulheres em Psicanálise”, para fazer o macaco do Kafka de Relatório para uma academia, que interpela os saberes estabelecidos. Diante da comunidade científica ali reunida, porá a diferença sexual no saco dos enquadramentos violentos do normal e do anormal. Mais que isso, reivindicará estar na pele do anormal. A fala, de estilo bombástico, serviria de base a seu livro do ano seguinte, em cujo título vibra a saída desviante: Eu sou um monstro que vos fala.

    As críticas que as zonas queer enviam ao Trench feminism recebem reparos de volta. Ilustrativamente, há notas contundentes sobre o uso que fazem Butlers e Preciados da performatividade de John Austin, da epistemologia de Michel Foucault e da desconstrução DE Jacques Derrida, que nos chegam hoje de correntes francesas de estudos dos campos revoltosos do estruturalismo e do pós-estruturalismo em que as novas zonas queer se inspiram.

    Algumas das mais cruéis vêm do editor das obras completas de Roland Barthes e dedicado comentador do mestre, Éric Marty. Causa-lhe espécie que, ao referir os grandes pensadores franceses do final do século XX, Butler avance para uma reflexão “sociológica” ou “psico-sociológica”, como o é sua sustentação da subversão da “performance de gênero”, que com eles nada tem a ver, se é que não lhe é antagonista, pela passagem à carta assertiva das reivindicações. Até porque a drag de Butler não é a de Jean Genet, nem sai das artes de vanguarda mas do show de variedades, ela lhe parece incompatível com as a particular sensibilidade aos jogos significantes das fontes, senão com o barroco do arsenal teórico impositivo com que joga (Marty, 2022, p. 12)

    3.

    Decidido a afirmar com Barthes, Foucault e Derrida que, nem por ser dado como construção social e coisa ambígua, o sexo tem sua potência diminuída, Marty apoia-se principalmente nos dois conceitos de Barthes, o “mito” e o “grau zero da escritura” – o segundo renomeado o “Neutro”, com maiúscula, nomenclatura insinuante quando se pensa as identificações sexuais –, para notar que a alienação da sexualidade é consubstancial à alienação do ou pelo sentido. O que o faz pensar que o difícil não é livrar a sexualidade de suas amarras, com algum projeto libertário, mas “desenredá-la do sentido, inclusive da transgressão como sentido” (Marty, 2021, p. 162).

    Grife-se “a transgressão como sentido”. Isso significa que a transgressão se faz verdade reversa. A órbita barthesiana é a da suspensão do paradigma, não a da imposição do contraparadigmático. A contrassexualidade, neste caso, está na crise de escritura, antes que na crise sexual. Assim, o travesti de O Império dos signos de Barthes não é aquele que se instala na feminidade, mas aquele que presentifica seu código, numa dupla notação. Aí sim, se está na ausência do original, na pantomima antes que na mímica, pois se está na justaposição afixada dos sinais. A mimética da drag é a do clichê. Assim também com o Foucault de Butler.

    As acomodações mitificantes valem para o Preciado que remete a desidentificação à gestão técnica dos gêneros. Se concordarmos com Marty, é de se temer que o transobjeto que é o “biodrag” talvez nada mais seja que uma espécie de behaviorista. Mais que isso, dado o ativismo dos teóricos do gênero, é de se perguntar com o barthesiano autor de O sexo dos modernos se, no ponto pragmático a que chegou, a causa LGBT não teria potencial para reconduzir o vigiar e punir(Marty,2021, p.15 ).

    *Leda Tenório da Motta é professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Autora, entre outros livros, de Cem anos da Semana de Arte Moderna: O gabinete paulista e a conjuração das vanguardas (Perspectiva). [https://amzn.to/4eRXrur]

    Referências


    BEAUVOIR, Simone. Le second sexe I, II. Paris, Gallimard Col. Folio Essais, 1976.

    BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Supervisão de Joel Birman. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2019.

    MARTY, Éric. Le sexe des modernes. Pensée du Neutre et théorie du genre. Paris, Éditions du Seuil, 2021.

    PRECIADO, Paul B. Testo Junkie.Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro.n-1 Edições, 2018.

    PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. São Paulo: n-1 edições, 2014.

    PRECIADO, Paul. Um apartamento em Urano. Crônicas da travessia, Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro, Zahar, 2020.


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    fonte: https://aterraeredonda.com.br/performance-de-genero/

     

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