Quase lá: A Marcha das Mulheres Indígenas fez Brasília pulsar

Marcha Mulheres indigenas set2021_Credito Divulgacao AnmigaNa semana em que o bolsonarismo rosnava na Esplanada, milhares de indígenas protestaram contra o Marco Temporal — e para reflorestar as mentes. À frente, mulheres chamavam à rebeldia e coragem: por justiça, liberdade e pela cura da terra. (foto: Anmiga)

 

Por CFEMEA, na coluna Baderna Feminista

Como pensar um país que não valoriza sua ancestralidade, suas origens? Como pensar um país que invisibiliza de forma propositada e até vergonhosa uma ação potente e poderosa de milhares de mulheres indígenas? É possível pensar esse país, viver nesse país, mas é necessário, sobretudo nesses tempos, resistir nesse país. E resistir é a palavra de ordem há 521 anos para povos indígenas de todas as regiões desse Brasil, que lutam por sua existência, pelo direito humano de continuarem existindo, mesmo diante das ameaças, violências e atrocidades cotidianas.

(No momento em que esse texto é escrito, chega a informação de que o indígena Lourenço Rosemar Filho de Mello, do povo Karajá, foi morto por agentes policiais na aldeia Santa Isabel do Morro, localizada no Parque Indígena do Araguaia, na Ilha do Bananal, município de Lagoa da Confusão (TO). Lourenço, não apresentou rendição e mesmo assim foi assassinado a tiros em sua comunidade, na presença de crianças e familiares. A polícia federal adentrou à comunidade acompanhada de servidores da Funai – Fundação Nacional do Índio, órgão criado para proteção dos povos indígenas, mas que tem sob seu comando um ruralista, Marcelo Xavier, que assim como Bolsonaro atua diariamente com políticas anti-indígenas e pela institucionalização da violência contra esses povos).

 

A violência atroz, cruel e desumana é a realidade para os povos indígenas e é como o homem branco (como metáfora da “civilidade” ocidental) se relaciona com nossa ancestralidade, nossa origem de quem cuida pelo bem estar da natureza e do planeta. A violência constitui a formação da sociedade brasileira, fez parte de nossa história desde a chegada das caravelas portuguesas em nosso território e segue sendo a forma de controle sobre os copos divergentes – não brancos, não masculinos, não heterossexuais. É pela violência que se retirou direitos ao território dos povos originários; pela violência que milhões de africanas/os foram escravizados, apartados de suas famílias e trazidos às novas colônias americanas; foi a violência – sexual – contra os corpos das mulheres negras e indígenas instrumento de controle que permeou nossa história colonial no que as ativistas negras definiram como estupro colonial.

Nas últimas semanas, Brasília conviveu com a presença marcante de milhares de indígenas, que além de denunciar as violências vieram à capital deste país pressionar os ministros do Supremo Tribunal Federal para que votassem contra a tese ruralista do Marco Temporal, que pretende impor processos de demarcação de Terras Indígenas a partir da promulgação da Constituição em 5 de outubro de 1988. Primeiro, os indígenas ficaram acampados do Acampamento Luta pela Vida entre os dias 22 a 28 de agosto, depois o espaço da Funarte, foi ocupado pela força das mulheres indígenas que entre os dias 7 a 11 de setembro realizaram a II Marcha das Mulheres Indígenas com o tema “Mulheres originárias: Reflorestando mentes para a cura da Terra”.

Marcha mulheres indigenas2021 Masra Abreufoto: Masra Abreu/Cfemea

Principal mobilização indígena em Brasília, desde a época da Constituinte, a ação central se fez em torno da votação da tese do Marco Temporal no STF — que é adiada e suspensa há alguns anos na corte e ensaiou uma engrenagem nestas semanas. Horas de discussão, oitivas de organizações indígenas, indigenistas, União e o voto do relato ministro Edson Fachin foi então manifestado no dia 9 de setembro: contrário ao marco temporal. O voto aclamado resumiu o que é sabido, mas amplamente contestado: a história dos povos indígenas não começa em outubro de 1988 e nem em 1500.

Não começa, mas é ignorada e sistematicamente invisibilizada no Brasil. Pelos poderes e pela mídia, essa mídia comercial que é atrelada aos interesses econômicos, políticos, comum ao sistema capitalista, que é um sistema excludente e racista, esse looping cotidiano de segregação racial e social, que afeta de forma mortífera os povos originários deste país.

“Somos nós povos indígenas do Brasil, somos nós mulheres indígenas que continuamos aqui, dizendo que nós continuamos sendo a resistência neste país. Nós não vamos desanimar, vamos continuar em marcha. Estamos há 500 anos marchando em defesa dos nossos direitos… e todas numa só voz a gritar: Não ao Marco Temporal! Não ao Marco Temporal! Demarcação Já! Fora Bolsonaro! Fora Genocida!”, exclamou a liderança indígena e coordenadora da APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Sônia Guajajara, no dia da manifestação do voto de Fachin.

Enquanto as mulheres indígenas se auto-organizavam para a Marcha, o Brasil vivia em paralelo uma ameaça golpista — ameaça como um vício de linguagem talvez, já que ao que parece e se apresenta estamos mesmo em tempos de golpes. O 7 de setembro de 2021 foi tomado por mobilizações convocadas por Bolsonaro. Em Brasília, com apoio da Polícia Militar do Distrito Federal, invadiram a Esplanada dos Ministérios e de lá não saíram por vários dias, o que impediu que a Marcha das Mulheres Indígenas até a Praça dos Três Poderes. Adiada e com nova rota, mas o mesmo sentido: a luta por direitos.

Marcha Mulheres Indienas 2 MasraAbreu2 Foto: Masra Abreu/Cfemea

Durante os cinco dias de acampamento das mulheres indígenas, os bolsonaristas ameaçaram, tensionaram, mas não puderam impedir essa existência latente e firme que pairava sob o solo brasiliense. Elas estavam aqui e estavam com sede de justiça também.

Enquanto a política autoritária se fazia presente, cidadãs e cidadãos brasilienses e de todo país foram convocados a se somar, se solidarizar, se manifestar e apoiar as ações de denúncia, a luta por direitos e a resistirem junto às nossas parentas. Nesta semana, uma das mais tensas de nossa conjuntura política atual, a capital não foi só tomada pelos “bolsomínions” – por mais dos mesmos representantes da violência fascista desumana, espelho do que temos na presidência deste país. No centro da cidade havia um pulsar, um chamamento à ação. Mas não desses vândalos fascistas em suas demonstrações de horrores – aliás, não à toa, sem uso de máscaras, sem cuidados qualquer diante da pandemia de covid. A pulsação, a vibração eram conduzidas por nossas parentas, mobilizando a cidadania, a solidariedade, que pulsavam, vibravam de forma potente, pisando o chão seco da capital federal com giros, cantos, torés, ecoando sua revolta e determinação em existir e proteger nosso planeta.

Sob canto, danças, rituais, as mulheres indígenas marcharam rumo à Praça Índio Galdino para prestar uma homenagem a Galdino Pataxó, assassinado por cinco jovens de classe média alta de Brasília, em 20 de abril de 1997. Um desses assassinos foi promovido por Bolsonaro para um cargo de confiança na Polícia Rodoviária Federal.

“Nós não ficamos sós. O povo que queimou Galdino jamais vai queimar nossa voz, são cinco séculos de resistência, este ano completa 521. Bolsonaro e seus ministros são os novos cabrais do século 21. Nós somos os povos que resiste pela força do brotar. Nós vamos continuar passando urucum em Brasília, mas a boiada em nossos Territórios as mulheres indígenas não vão deixar passar”, disse Célia Xacriabá, durante a homenagem a Galdino.

Para a indígena Marinete Dúígo, do povo Tukano do Amazonas, militante da Rede Estadual de Mulheres Indígenas do Amazonas e da AMB, os povos indígenas estão desde 1500 em luta e essa luta está cada vez mais tomando força com manifestações. “Temos o desgoverno do presidente Jair Bolsonaro e Mourão eles tentam tira nossos direitos, nossas terras e violar nossos corpos e outros retrocessos. Por isso saímos para ruas em mobilização com povo do Brasil e América Latina. Apesar de nós temos retornado para nossos território estamos em sintonia, lutamos e marchamos até o último suspiro nosso”.

Lançada no último dia da Marcha, a campanha Reflorestar mentes para a cura da terra, significa para Marinete, firmar alianças e mostrar a importância da floresta, terras e vida indígenas. “Porque sem água, terra e floresta não a vida, por isso queremos refloresta a mente do mundo, conscientizar para poder cura a terra. E assim conseguirmos o bem viver não somente para nós povos indígenas e sim para todos, com menos violência contra os povos, sem violência contra a mulher, sem desmatamento, sem garimpo, e com mais preservação da terra, água e a vida”.

Durante o lançamento, Célia Xacriabá entoou “Quem somos nós? Somos as que retomamos a terra roubada, somos a terra pois a terra se faz em nós, nós somos filhas, somos semente, somos tias e só quem sabe ser semente pelo grito da terra nunca mais vai permanecer em silêncio porque a terra tem muitas filhas e essa mãe chora quando vê o seu próprio território ser sequestrado… Mas ainda dá tempo, precisamos reinventar o tempo, ainda dá tempo porque o nosso tempo não é o do relógio e eles ainda nos diz que nós somos uma ameaça pro capitalismo, mas na verdade é o contrário”.

marcha mulheres indigenas masra abreu3foto: Masra Abreu/Cfemea

A raiz do Brasil é indígena

Em apoio ao protagonismo e organização das mulheres indígenas, a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) esteve presente na Marcha. O movimento constrói sua ação política na aliança com outros movimentos de mulheres no país e na região e junto às mulheres indígenas não poderia ser diferente.

“A aliança da AMB com o movimento de mulheres indígenas vem se consolidando nos últimos 10 anos, a partir das relações políticas de sua militância nos territórios. Essa relação que se constitui no território ocorre de maneira articulada de diversas formas, nas regiões onde o movimento indígena tem uma atuação aberta para esse processo de aproximação a atuação com movimento feminista tende a ser cada dia mais intenso, aceito e valorizado entre os povos. A presença física de várias militantes históricas da AMB na Marcha representou um apoio político importante, materializado nas atividades de troca de experiência, na escuta, no afeto e no suporte emocional voltado para o auto cuidado, através de práticas dirigidas em oficinas e rodas de conversas”, apontou Conceição Amorim, coordenadora do Centro de Direitos Humanos Pe. Josimo (MA) e militante da Articulação de Mulheres Brasileiras.

Para Merlane Tiriyó do povo Tiriyó do norte do Pará (e também militante da AMB) a marcha foi um momento muito importante. “Muito impactante ver mulheres de todas as etnias unidas ecoando suas vozes, cantando, fazendo rezas, dançado, através disso mostrando força feminina de mulheres indígenas, é muito lindo de ver essa união das mulheres originárias, o protagonismo delas em frente à luta, que vem desde muitos anos e ainda mais agora nesse momento difícil que nosso país estar enfrentando e ao mesmo tempo o momento de muitos retrocessos para nós povos indígenas, de muitas violações de direitos conquistados com sangue dos nossos povos, das lideranças que vieram antes de nós e que deram a vida para que possamos existir e continuar lutando por tudo que ainda resta, mesmo sofrendo as ameaças constantes”.

Durante os dias da Marcha das Mulheres Indígenas, a Articulação de Mulheres Brasileiras esteve com uma tenda armada no acampamento com uma programação direcionada para o auto cuidado e cuidado coletivo entre ativistas.

“Nós estivemos à disposição para fortalecer esta luta das mulheres indígenas que tiveram a coragem de no meio deste contexto político perverso que estamos vivendo e em particular à população indígena tomar Brasília e denunciar, lutar e demonstrar a resistência. Tenho certeza que saímos desta Marcha tendo reforçado a aliança com os movimentos de mulheres indígenas. E já estamos juntas na luta contra o Marco Temporal, na luta pela demarcação das terras indígenas e na luta contra a violência que as meninas e mulheres indígenas tem sofrido”, destaca Analba Brazão militante da AMB e integrante do SOS Corpo.

Analba se refere especificamente ao caso de feminicídio de duas meninas indígenas que aconteceram em agosto, Raíssa e Daiane Kaigang, uma violência brutal, mas que não mobilizou e não chocou e nem alarmou o Brasil por justiça. Será por quê?!

No Manifesto “A raiz do Brasil é indígena” divulgada em agosto, a AMB denunciou que a prática da violência sexual e do assassinato de mulheres indígenas é parte da estratégia patriarcal e colonialista que, com agressões de todos os matizes, atingem os povos originários desde a invasão da América Latina e do Caribe há mais de 521 anos, por colonizadores que promoveram o genocídio de milhões de indígenas e o etnocídio, com apagamento e invisibilização deliberado das histórias, tradições culturais e inúmeras cosmogonias dos povos que aqui viviam. “O capitalismo mantém essa estratégia que, no Brasil, hoje chega a estertores, pelas mãos de forças bolsonaristas servindo aos interesses de expansão do agronegócio, da mineração e de todas as formas de extrativismo que ameaçam, os povos, seus territórios, modos de vida e cosmovisões. Estamos diante de um governo necrófilo, que muito além do descaso com a pandemia da covid-19, tem um projeto deliberado de ódio e de morte aos povos originários, que coloca a maior parte de seus territórios sob ameaças do agronegócio, das mineradoras, dos consórcios da soja e de grandes projetos, em sua maioria geridos por filiais de empresas transnacionais”.

A Marcha das Mulheres Indígenas é um chamado, um alerta, uma chama de rebeldia e coragem a todas as mulheres deste país para que se organizem e continuem resistindo e lutando contra o fascismo instalado. Nós, feministas anticapitalistas e antirracistas, fazemos coro a esse chamado e caminharemos juntas das mulheres originárias: por justiça, por direitos e por liberdade pela cura da terra.

Nós mulheres somos força potente de contestação desse poder violento e autoritário, somos a antítese desse projeto pois defendemos às custas de nossas próprias vidas a liberdade, nossa autodeterminação reprodutiva, clamamos para que nos permitam exercer nossa plena autonomia impedida pelo poder patriarcal que necessita de nossa subjugação domesticada para seguir destruindo os bens comuns em prol de mais e mais poder e lucro, sequestrando para si, sempre entre os mesmos, o poder e a política para usufruto próprio e às nossas custas.

O chamamento de nossas parentas é um chamado vivo e latente para todas nós mulheres e homens que buscam outras formas de viver em sociedade com justiça, igualdade, autonomia, liberdade, respeito mútuo às outras e outros. Que fiquemos com mais este aprendizado que nossos povos originários têm nos ensinado de uma luta realmente radical nos princípios de defesa de nossa existência, sem violência e livre, sem negociatas de direitos por poder. Um aprendizado para todas e todos nós que fazemos política em prol da cidadania.

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