Por CFEMEA, na coluna Baderna Feminista
Neste 25 de novembro, Dia Latino-Americano e Caribenho de Combate à Violência Contra as Mulheres, lembramos dos desafios que ainda estão colocados para que meninas e mulheres, cis ou trans, vivam uma vida sem medo de serem violentadas, agredidas ou assassinadas.
O aumento do número de casos de violência doméstica e sexual durante a pandemia é um triste retrato de uma sociedade que nos impõe o medo. Dia após dia, os noticiários nos lembram que pais, padrastos, tios, avós, são potenciais agressores. O lar pode não ser um espaço seguro, uma realidade que contradiz a necessidade de isolamento social que ainda temos.
O Estado, que por sua vez deveria acolher, amparar e proteger as vítimas, reitera a violência. Duplamente violadas, crianças e mulheres sofrem mais abusos e privações quando tentam acessar serviços públicos, como os de saúde, onde por lei podem ser atendidas para interromper uma gravidez. E não é só aí. Conselhos tutelares, assistentes sociais, juízes e até mesmo o Governo Federal atuam para que meninas e mulheres tenham que provar a violência que sofrem e ultrapassar as barreiras burocráticas e o preconceito para acessar seus direitos. O direito ao nosso próprio corpo é – ou deveria ser – um direito básico em qualquer democracia.
No Brasil, onde hoje vivemos sob um governo autoritário e aliado de forças fundamentalistas, o direito de interromper uma gravidez decorrente de um estupro é duramente atacado, embora esteja garantido desde os anos 1940. Nos mobilizamos em torno do caso da menina de 10 anos, do Espírito Santo, estuprada pelo tio desde os seis. O caso ganhou repercussão nacional e só por isso, a menina conseguiu realizar os procedimentos e ter o acolhimento correto. No entanto, muitas outras sofrem sem conseguir o mesmo. Segundo o Mapa do Aborto Legal, dos 176 serviços de saúde contatados, somente 42 serviços no país inteiro seguem realizando o procedimento. O Estado segue cúmplice das violações.
Repetimos que o direito ao aborto nos casos de estupro está assegurado desde 1940, na esperança de que este fato faça soar o alarme do tamanho do retrocesso que representaria a aprovação de projetos como o Estatuto do Nascituro, que tramita no Congresso Nacional: a inviabilização do aborto em qualquer hipótese. Estamos em 2020 e parece absurdo querer retroceder a esse ponto.
Também nos mobilizamos recentemente no caso de Mariana Ferrer, que viu seu agressor ser inocentado do crime de estupro mesmo com provas evidentes. Em vídeo publicado por veículos de notícias, vimos uma mulher jovem ser humilhada pelo advogado do estuprador, como se o fato de ser uma mulher livre fosse justificativa para ela sofrer violência. Juiz e defensor, que deveriam assegurar um julgamento digno, foram cúmplices.
E aqui vale lembrar que em 1940, a justificativa para que o aborto fosse legal em casos de violência sexual era a necessidade de resguardar a moral da família e dos homens. Era um direito com alicerce na branquitude, porque era aos homens brancos e mulheres brancas que estava direcionado. Mulheres negras e indígenas sofriam com violações sistemáticas e isso sequer era considerado crime. Angela Davis, no livro “Mulheres, raça e classe”, lembra que nos Estados Unidos do início do século XX, os tribunais se importavam muito pouco com a violência a que estavam sujeitas as mulheres trabalhadoras. No Brasil não era diferente.
Isso ajuda a entender porque o aborto em casos de violência sexual é um alvo central de ataque dos grupos conservadores hoje. Uma das conquistas do movimento feminista foi tirar o tema do estupro de uma visão ligada à moralidade e colocá-la na lógica da autonomia da mulher sobre o seu corpo.
Movimentos e campanhas como Marcha das Vadias, Ni Una a Menos, Nem Presa Nem Morta, “Eu não mereço ser estuprada”, “Meu primeiro Assédio”, e tantos outros, tiraram a violência sexual e o assédio do âmbito da moralidade masculina e trouxeram para a arena política na chave do direito das mulheres de ir e vir, de exercer sua sexualidade, ocupar espaços de trabalho, sem serem por isso punidas com violência, seja ela física, sexual ou psicológica.
Para se defender das acusações de estupro, os homens tentam construir uma ideia de que a vítima teria consentido a relação, mesmo que para isso tenham agredido, feito a mulher chorar. “Ela estava bêbada”, “eu só forcei um pouco”, são algumas das justificativas comuns que aparecem nos discursos masculinos. Como nos lembra Virginie Despestes, em “Teoria King Kong”, enquanto homens são ensinados a matar e violentar para exercer seu poder, as mulheres não são ensinadas a dizer “não”. Meninas e mulheres não aprendem a se defender. Vivemos com medo.
No livro “Estupro: crime ou ‘cortesia’”, Sílvia Pimentel relembra que a ideia para o livro nasceu a partir de uma notícia sobre um procurador do Ministério Público do Rio de Janeiro que afirmava que um homem não podia ser considerado culpado por ter estuprado uma menina de 13 anos, porque ela teria “assediado” o homem. Por trás desse argumento, a ideia de que só poderiam denunciar um estupro as mulheres ou meninas que não tivessem nenhum indício de serem “sexualmente ativas”. Do contrário, aquilo que sofrem não pode ser considerado violência. Essa percepção discriminatória e conservadora esteve presente até muito recentemente em nosso marco normativo. Foram anos de luta para que retirássemos do código penal termos como “mulher honesta” ou mesmo parágrafos que permitiam o fim de um casamento por adultério (apenas para as mulheres).
Todas essas marcas eram interpretadas patriarcalmente como um tipo de mulher ideal subserviente ao bel prazer sexual dos homens.
O argumento que Silvia Pimentel resgata lembra muito o usado recentemente no julgamento do empresário André de Camargo Aranha, acusado de estuprar Mariana Ferrer durante uma festa em 2018. Segundo o Promotor responsável pelo caso, não havia como o empresário saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo, portanto, intenção de estuprar. O juiz aceitou a argumentação e André foi inocentado.
Chama a atenção também a forma como as instituições reagem a essas violências. No Congresso, para citar um exemplo, a tendência dos parlamentares é reagirem com a apresentação de propostas centradas exclusivamente na punição, a cada vez que um fato desses chega a ser noticiado e consegue mobilizar a sociedade. Foi isso que aconteceu recentemente como resposta à violência sofrida pela criança do Espírito Santo, que engravidou em decorrência de estupro por parte de um tio. E também com o caso da audiência de Mari Ferrer e a absolvição de seu estuprador.
Grupos conservadores, que ainda são maioria no poder, se organizam em torno de projetos de lei punitivos ou ainda mais restritivos, elaboram discursos midiáticos em programas de TV e jornais, orientam ações de governo nacionais e internacionais. Usam todas formas de dominação que dispõem para reafirmar o lugar das mulheres dentro da ordem patriarcal. Estão “protegidas” as mulheres de família, que cumpram o que se espera delas nas instituições religiosas. Que não exerçam sua liberdade e confiem em pais, maridos e pastores, as decisões sobre seus corpos e suas vidas. Que se calem caso sofram violência.
Com a eleição de um governo misógino, as concepções conservadoras se tornaram diretrizes governamentais para todo o país. Há pouquíssimos recursos previstos para os equipamentos de atendimento às mulheres vítimas de violência e um retrocesso total na perspectiva das campanhas e ações intersetoriais. Não esperávamos nada muito diferente de um Presidente que, quando ainda estava em campanha, escancarava sua visão de subalternidade, subserviência e inferioridade das mulheres em relação aos homens, bem como do povo negro e indígena em relação a pessoas brancas e a exclusão de pessoas LGBTIA+. Ser eleito assumindo uma inferioridade da maioria da população não é qualquer coisa, pois é a vitória de um conjunto de valores em detrimento de outros.
Não à toa, a tentativa sem fim de proibir os debates sobre gênero, que nos remete à princípios como igualdade, diversidade e sobre como há uma construção cultural sobre os papéis sociais destinados às mulheres e aos homens, de acordo com a expressão da sexualidade. A não discussão leva à banalização de um problema grave, bem como de seu acirramento.
Para nós, feministas, é preciso bem mais do que uma legislação punitiva para conseguirmos desmontar as estruturas que legitimam as violências perpetradas pelos homens contra as mulheres e pelos brancos contra negros e negras. É preciso ter uma educação que questione com seriedade o enfrentamento das desigualdades de gênero, raça, classe. Uma educação não-sexista, antirracista, anti-lgbtfóbica que valorize a diversidade e a diferença.
É preciso chamar a atenção para o fato de que, ainda que todas as mulheres sejam alvo de inúmeras formas de violência, as mulheres negras sofrem com a dupla discriminação — de gênero e raça — e pagam por isso muitas vezes com a própria vida, ou ficam com sequelas físicas e psicológicas permanentes. É fundamental olharmos para essa intersecção, com políticas específicas para esses grupos discriminados. Importante resgatar também que a violência sexual contra os corpos das mulheres negras esteve presente desde o início do processo de escravização — o que teóricas feministas negras definiram como estupro colonial, pondo em xeque o tal mito da democracia racial no Brasil.
Nós mulheres vamos às ruas, gritamos, reivindicamos nosso direito de ir e vir com os nossos corpos. Ocupamos a internet, os jornais, colocamos o tema em pauta, disputamos os espaços da cidade como lugar possível de circulação livre de violências. Mas a luta não é simples, pois são os poderes dominados por homens brancos que determinam quem tem direito à voz, à circular livremente pelo espaço público e à cidadania. É a moral deles que as instituições continuam tentando resguardar.
O movimento feminista foi às ruas, na primeira semana de novembro, para pedir justiça para Mariana Ferrer e para todas as mulheres e meninas violentadas que têm de lutar para terem seus direitos reconhecidos. O grito é também um pedido por democracia. O direito ao próprio corpo, o direito a denunciar uma violência sexual e ser ouvida, o direito de ser livre sexualmente, devem ser asseguradas pela nossa democracia.
O mesmo movimento transformou o dia 25 de novembro no “Dia Latino-Americano e Caribenho de Combate à Violência Contra as Mulheres”, no Primeiro Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe realizado em Bogotá, Colômbia, em 1981. E 30 anos depois, continuamos na luta por justiça e por uma vida livre de violência! Como diria um dos slogans mais conhecidos do movimento feminista, quem ama não mata — não humilha e não maltrata!
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