Termo, hoje incorporado pela lógica capitalista, começou a ser difundido nos anos 1980, em grupos feministas e antirracistas. Enxergava-se, no ato, potência de transformação social — inclusive para criar novos imaginários. É preciso recuperá-lo
Por CFEMEA | Ilustração: Stephanie Pollo
Já passamos dos cem dias desde o início da Pandemia do Coronavírus, mas ainda estamos batendo recordes de número de casos. Depois de tantos meses isoladas ou enfrentando o medo da infecção nas ruas, estamos exaustas. A fadiga é sentida mesmo por quem conseguiu transferir o trabalho remunerado e o de cuidado para dentro de casa. O problema é que diante de uma política de morte, o isolamento social não funcionou como deveria e o resultado é que até as pessoas que o defendem como medida de contenção da doença estão dando “escapadas” para aliviar o estresse, a solidão, a tensão e a ansiedade – como mostra uma matéria recente do El País. Em meio ao debate sobre o impacto disso, nos chamou atenção o uso da ideia de autocuidado, não só na matéria, mas em diversos textos da rede. Autocuidado é um termo feminista antirracista, que nos últimos anos se popularizou e agora passou a fazer parte do imaginário sobre a Pandemia. No entanto, está sendo reiteradamente retirado do seu contexto político, como se fosse restrito à escolha e ao julgamento individual, sem ter relação com o entorno ou a coletividade.
Hoje, se você tem acesso a páginas e perfis feministas em redes como o Facebook e Instagram, vai receber anúncios de cremes, roupas, produtos para o corpo, comidas, que também são colocados sob o rótulo de autocuidado. Muitos são caros, pouco acessíveis para a maior parte das mulheres. As mulheres merecem se valorizar, amar o próprio corpo e a própria beleza. O trabalho das mulheres também deve ser valorizado. No entanto, autocuidado não pode ser reduzido a um produto comercializável e rentável. Grandes corporações como o Instagram, o Facebook, a Coca Cola, a Unilever, ou mesmo os bancos e as grandes indústrias não promovem o autocuidado, elas promovem a individualização e a mercantilização de todos os aspectos da nossa vida. Brigid Delaney, colunista do The Guardian, argumenta que isso acontece porque “auto” nos dá a falsa sensação de que a resposta é individual, em vez de “ver a nós mesmas, nossa saúde e nossos destinos como indissoluvelmente ligados aos nossos semelhantes”.
A ideia de autocuidado propagada nas mídias ganha adesão pela realidade que enfrentamos. As mulheres estão cansadas, tendo que lidar com inúmeras jornadas, com o desgaste físico e emocional da falta de respostas, com a precarização do trabalho e o desemprego e as demais incertezas financeiras. Sem contar a violência doméstica e urbana, a falta de perspectiva para os/as jovens, a precariedade dos serviços públicos. A maior parte desses aspectos da vida cotidiana contemporânea estão fora do nosso controle individual. O que parece estar dentro do nosso controle? O que fazemos em casa ou com o nosso corpo.
No entanto, há uma dimensão de saúde pública, cuidado coletivo e seguridade social que ultrapassa as iniciativas individuais. Não podemos ignorar o fato de que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo e é fundamental reivindicar que todas as pessoas tenham condições mínimas de sobrevivência nesta emergência. É certo que o mínimo de autocuidado é condição essencial não apenas para o nosso bem estar, mas para a nossa própria sobrevivência. Mas que condições temos de fazer essa escolha, como uma atitude individual, de cuidarmos de nós mesmas neste cenário? O cuidado de si para as mulheres, negras e periféricas especialmente, é ainda um direito a ser conquistado. Autocuidado está conectado à luta política e por isso ele precisa necessariamente aparecer com o seu par: o cuidado coletivo. Deveria estar pressuposto.
Autocuidado é um termo do feminismo antirracista
É importante situar de onde vem a ideia de autocuidado. O termo ganhou grande repercussão junto ao movimento negro dos anos 80. Em um mundo pós-crise e, no caso do Brasil, em processo de democratização, grupos feministas e negros estavam preocupados com a transformação da cultura, com o compartilhamento de práticas que fortalecessem a autonomia das pessoas, que pudessem romper com os silêncios impostos pelas opressões. Uma transformação que fosse pessoal e política ao mesmo tempo. No Brasil, tivemos a disseminação de práticas de cuidados diversas nos chamados “grupos de consciência”, em que as mulheres se reuniam para discutir gênero, sexualidade, compartilhar leituras e contar suas histórias.
Entre as referências norte-americanas que difundiram o termo está Audre Lorde, mulher negra, feminista e lésbica, que escreveu sobre autocuidado principalmente no final dos anos 1980, enquanto estava em tratamento contra um câncer. Em um dos textos que compõe a coletânea que a editora Ubu deve lançar em setembro, Lorde defende que o cuidado de si não era um ato de autoindulgência, mas uma forma de autopreservação e, portanto, um ato de guerra política. Diante de uma política de morte, manter as pessoas vivas é um ato fundamental e político. Mas isso parece impossível diante do cenário brasileiro na Pandemia.
Olhamos o Estado, miramos a parte da sociedade que aderiu ao fascismo e vemos quão assombroso é o retrocesso. As batalhas populares que tínhamos vencido contra o racismo patriarcal não foram suficientes para impedir que o fascismo botasse mais lenha na fogueira (porque nunca tinha se apagado), acendendo outras chamas para arder a violência racista, patriarcal, capitalista com todas as dores que ela produz, as desigualdades que gera, a exploração que acumula, os genocídios que comete, a devastação ecológica que realiza.
As mulheres brasileiras, em sua enorme diversidade e com todas as desigualdades entre nós, estão organizadas e em luta há muitos anos. E desde os primeiros indícios da pandemia, em luta para sobrevivermos a ela. Estamos organizadas em redes de solidariedade para suprir a ausência do Estado na garantia de alimentação e produtos de higiene para as milhões de pessoas de comunidades rurais e periferias urbanas, desempregadas, demitidas ou trabalhadoras autônomas que perderam sua renda nessa situação. Estamos na luta, fazendo pressão política, para reduzir os danos da política genocida desse desgoverno. Estamos lidando, hoje e desde sempre, com a dupla e tripla jornada de trabalho, agora ainda com a sobrecarga que o isolamento social e o trabalho remoto impõem às mulheres com seus filhos e maridos em casa o tempo todo. Estamos lutando também, agora e há muitos anos, pelo direito de cuidarmos de nós mesmas.
Parte da fadiga que enfrentamos agora tem a ver, claro, com o fato do governo federal se mostrar displicente, além de promover uma política da morte para as populações já vulneráveis. Ele atua também para sabotar as iniciativas locais em defesa das vidas e do bem estar da população. Depois da mal sucedida tentativa de pressionar o governo para uma articulação nacional para o enfrentamento à pandemia, coube aos estados e municípios definirem sua própria política. E isso não funcionou. Os índices de adesão ao isolamento sempre estiveram abaixo do esperado e se tornaram frequentes os conflitos entre governadores e prefeitos sobre o que poderia ser considerado serviço essencial, o período de isolamento ou como organizar os atendimentos nos serviços. Neste país historicamente governado pelas elites e oligarquias, brancas, patriarcais e heteronormativas, nenhuma lei, política pública ou direito em benefício para os grupos sociais excluídos dos espaços de poder e decisão foi aprovada sem que houvesse muita luta e pressão política. Neste momento não seria diferente.
Não há cuidado coletivo possível se não formos capazes de olhar as desigualdades entre nós e a posição que cada pessoa ocupa nesta relação, porque a omissão em relação às desigualdades é cúmplice da violência. O racismo patriarcal continua sendo estrutural. A reparação nunca aconteceu. Vidas negras, vidas indígenas não importaram para os nossos colonizadores e ainda hoje não importam para o poder instituído e para uma parte considerável da nossa sociedade. Porque o racismo é uma marca tão profunda, nesses tempos brutos de pandemia e pandemônio fascista, todo dia vivemos o terror do Estado que mata, permite que outros matem ou abandona à morte as pessoas dos grupos racializados. Todo dia vivemos o terror da sociedade majoritariamente indiferente à crueldade, à doença, à agonia, à tortura, aos assassinatos e às injustiças. Além dos negros, que sofrem diretamente o racismo e sempre lutaram contra as pessoas, as estruturas e instituições que o sustentam, enfrentar o racismo é mais que urgente, e é parte da tarefa da emergência que os brancos têm de responder. Conhecer-se na própria branquitude para reconhecer de outro lugar a negritude e lutar contra o racismo é um compromisso radical, inadiável.
Por mais espaços de cuidado no movimento de mulheres
Todo o contexto político e a própria necessidade de lutar pela vida e por direitos também causam fadiga e uma exaustão profunda nas mulheres feministas. A luta e o ativismo muitas vezes podem ser catalisadores de processos emocionais dolorosos. Por isso é tão importante fomentar espaços e iniciativas onde essas questões sejam conversadas, lugares que mantenham o compromisso ético com a transformação do mundo e da lógica patriarcal e racista da política hegemônica. Quando estamos em grupos, nos fortalecemos, ganhamos confiança para reivindicar nossa liberdade. Recuperar esse histórico do termo autocuidado e o colocar com o seu par, “cuidado coletivo” é importante para entendermos que o que defendemos por autocuidado não se separa da ideia de um projeto político antifascista, feminista e antirracista, que enfrente o neoliberalismo.
Da mesma maneira que a autotransformação e a transformação social, o autocuidado e o cuidado coletivo se nutrem mutuamente. Não há transformação social possível se as pessoas que estão na luta não forem, elas mesmas, portadoras de outros desejos, de outra ética, outro imaginário, outra cultura. Se não acreditarem em outras possibilidades, nem ousarem experimentar outras formas de organizar a luta para terem direitos, viverem bem, serem livres e felizes.
O cuidado é o método, mas também a estratégia que nos orienta ao Bem Viver, à afirmação da liberdade sexual, do caráter multirracial, pluriétnico e ecossocial para a sociedade que estamos construindo.
Os cuidados comunitários podem incluir coisas como tornar-se disponível para pessoas que precisam de apoio, ações que se popularizaram no início da Pandemia. Mas a luta pelo SUS, por jornadas dignas de trabalho, por uma renda mínima universal também é parte disso. Individualmente, é possível encontrar formas de lidar com o estresse, a ansiedade e o medo.
Por isso, desde o início da Pandemia, multiplicamos as Rodas de autocuidado e cuidado coletivo, as formações. Vimos aparecerem grupos de apoio, oficinas de escrita, guias e manuais de práticas naturais. Experimentar o contato com a outra pessoa e ser capaz de dialogar, respeitar, admirar outros princípios, outros pontos de vista, reconhecer outros pontos de partida, processar os conflitos próprios do encontro entre diferentes, vislumbrar outras possibilidades além da desigualdade para lidar com a diferença, envolver-se para que tal alternativa se viabilize, engajar-se pessoal e politicamente nesta construção é absolutamente imprescindível.
O diálogo intercultural que experimentamos gera reconhecimento mútuo e é cuidadoso, envolve conhecer-se para poder reconhecer a outra. Não supomos que a individualidade, a autonomia das mulheres possa ser constituída desprovida de vínculos. Cada uma é o que é na relação com as outras e por isso ganhamos força e autonomia. A individualidade desprovida de vínculos é, de fato, dependente, pode até ser dominante, mas não sobrevive sem a parte dominada, e é assim que se constitui a falsa independência dos homens brancos no poder.
Nesses tempos brutos que vivemos, há muitas iniciativas populares, feministas antirracistas que articulam autocuidado e cuidado coletivo germinando por aí. Tem contrapoder sendo plantado, subversão da ordem racista e patriarcal em plena operação, ultrapassagem das fronteiras entre o pessoal e o político acontecendo todo o tempo. São micropolíticas, iniciativas que fazem circular a solidariedade e o cuidado entre as mulheres nos coletivos, nas comunidades, nos movimentos a que pertencem. Em tempos de pandemia, apesar de tudo, gira entre a mulheres a solidariedade com a dor, o sofrimento, a enfermidade, o desespero, a fadiga, a escassez, a violência, as perdas que as mulheres vivem. São mãos dadas em reciprocidade, mais que solidariedade, capazes de compartilhar alimentos, produtos de higiene, mobilizar recursos e serviços, mas também afeto, amorosidade, cumplicidade, confiança no coletivo. Há disposição compartilhada para a autotransformação e a transformação social, para o autoconhecimento e o reconhecimento mútuos. São iniciativas micropolíticas que respondem à emergência, sem, contudo, perder de vista a estratégia feminista antirracista que nos orienta à transformação social.
É neste sentido que trazemos o conceito de autocuidado, cunhado por uma mulher negra ativista enquanto um ato de guerra política, contra o racismo, o machismo e o individualismo neoliberal que nos empurra ao abandono de nós mesmas e nossas semelhantes. O autocuidado e o cuidado coletivo são alicerce, armas e munição para as guerras cotidianas que estamos travando para sobrevivermos, vencermos o fascismo que nos oprime e construirmos um mundo de Bem Viver.
É a noção radical de autocuidado e cuidado coletivo que defendemos, no CFEMEA, na Articulação de Mulheres Brasileiras e no campo dos movimentos feministas e antirracistas. Não o termo como foi apropriado pelo mercado.
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