O papel de tomar conta da família, invisível e não remunerado, recai sobre as mulheres. Em meio à crise sanitária, Estado deveria se responsabilizar. Após o desastre, será preciso construir um mundo baseado no bem comum e na solidadariedade
Pelo CFEMEA, na coluna Baderna Feminista
Quando um vírus se alastra entre países, o caos e o medo gerado por isso acabam revelando muito sobre como a nossa sociedade se organiza e quais são seus principais problemas. No caso do Coronavírus, estamos vendo como se acirram as desigualdades de gênero, raça e classe, até o ponto de inviabilizar medidas como o isolamento social para uma boa parte da população. Nas nossas vidas e ao nosso redor, as mulheres são fundamentais nas tarefas de cuidado, por seu trabalho nos serviços de saúde e assistência, nas comunidades onde vivem, nas casas em que trabalham ou nas suas próprias famílias atendendo às crianças e idosos. Cuidar é um trabalho duro, árduo, emocionalmente exigente, tenso, que sobrecarrega muito mais as mulheres do que os homens nesta sociedade patriarcal em que vivemos. Por isso, uma pandemia como da Coronavírus também nos coloca diante da necessidade da coletividade e da necessidade de repensar a vida em sociedade.
O cuidado é uma questão central da nossa sociedade, ou deveria ser, pois define como nossas relações familiares se organizam e como a solidariedade é possível de acontecer. Em sociedades patriarcais e racistas, ele é sistematicamente desvalorizado e sua contribuição para a manutenção do sistema capitalista é invisibilizada. Ainda mais com o neoliberalismo extremado levado a cabo por governos autoritários, em que assistimos ao desmonte sistemático das políticas de trabalho, saúde e assistência social.
A resposta imediata para conter a propagação do vírus é o isolamento das pessoas, uma tentativa de proteger principalmente quem tem saúde vulnerável ou precária, casos em que ele é mais agressivo. Em nossa sociedade esse é um trabalho das mulheres. E ele já é extenuante por causa da divisão sexual do trabalho injusta na nossa sociedade. Além disso, quando assumido por profissionais, são trabalhos desvalorizados e mal pagos – a exemplo da enfermagem ou da educação infantil – e majoritariamente exercido por mulheres negras. Na prática, se elas não são liberadas ou ficam sem remuneração, o que ocorre é a negação do direito à autoproteção e ao autocuidado.
Assim, as jornadas de trabalho das mulheres estão aumentando muito mais do que a dos homens. Com a suspensão das aulas, as crianças e adolescentes precisam ficar em casa. Idosos precisam de atenção redobrada pela vulnerabilidade da sua saúde. No espaço da própria casa, pode entrar também o trabalho produtivo, remoto (pela internet) ou em domicílio (costureiras, passadeiras etc.) exigindo novos esforços das mulheres.
A conciliação entre o trabalho remunerado e não remunerado é uma exigência sem tamanho na vida das mulheres desde o século XIX, em especial das mulheres negras e chefas de família monoparentais. Mas nesse contexto de pandemia, a situação se agrava muito, demandando esforço sobre-humano das trabalhadoras. A maior parte das trabalhadoras domésticas estão em condições laborais precárias, no subemprego. Como podem se proteger mantendo distanciamento social se o racismo patriarcal e o individualismo capitalista as impele a enfrentarem ônibus lotados para irem trabalhar? E as milhares de trabalhadoras e trabalhadores informais que precisam vender ou prestar serviços para ter o que receber, no mês, na semana ou mesmo no próprio dia? Como sobreviver ao desemprego massivo e à paralisação das atividades econômicas, se desde antes as mulheres negras já ocupavam os postos mais mal remunerados do mercado de trabalho?
No Brasil, embora a doença tenha chegado através de pessoas ricas, vindas de viagens do exterior, as duas primeiras vítimas são pobres e foram contaminadas porque estavam trabalhando. Em tempo de desmonte do Estado, é sempre bom lembrar que é ele quem é capaz de garantir a proteção e a assistência econômica em momentos de calamidade. O isolamento pode parecer uma opção ou privilégio individual, mas é uma questão política e exige, portanto, respostas coletivas1. A desproteção é uma imposição sistêmica – patriarcal, racista e de classe e, por isso mesmo, o seu oposto (a proteção contra a pandemia) é um direito não acessível.
A emergência da pandemia reclama enfaticamente a ressignificação do lugar dos homens na sustentação da vida reprodutiva, dos laços emocionais e do cuidado, tarefa essa não considerada em nossas sociedades como essencial e nem positiva, por isso mesmo exercida de forma desigual pelas mulheres.
E se tivéssemos políticas públicas como escolas em tempo integral, lavanderias e restaurantes comunitários para essas atividades em nosso dia a dia? E se o cuidado com as crianças, idosos e quem não pode se cuidar não ficasse a cargo exclusivo das famílias — lê-se mulheres e meninas –, mas sim discutidos e divididos entre toda a sociedade; homens e empresas também. Essas são propostas que ao longo dos últimos anos os movimentos feministas brasileiros formularam e demandaram dos governos, defenderam em processos de conferências e planos de políticas para as mulheres, mas muito pouco se avançou. Basta lembrar da longa luta também por universalização das creches e ensino infantil, outra demanda insuficientemente atendida.
Diante do momento pandêmico atual, há de se pensar e propor medidas imediatas no Brasil. Políticas emergenciais que apoiem e protejam as mulheres nas suas atividades de cuidado durante a crise e assegurem o provimento de suas famílias são uma prioridade. Os recursos e as políticas para o enfrentamento da pandemia têm que primar pelo enfrentamento às desigualdades e não se sustentar nelas. Também é fundamental a revogação de medidas como a EC 95/16, que instituiu o Teto de Gastos, e que vão na contramão da responsabilização do Estado diante de sua população. Somente no ano passado, 9,5 bilhões de reais deixaram de ser investidos no Sistema Único de Saúde, agora tão demandado para o cuidado das pessoas contaminadas pelo Coronavírus. Assim como são fundamentais a garantia de renda mínima para trabalhadoras/es informais, de crédito para pequenas empresas e, obviamente, acesso universal aos sistemas de saúde e assistência.
Mas além disso, este é um bom momento para pensarmos que alternativas podemos propor ao capitalismo, que nos permitam criar outras formas de lidar com ameaças como a de uma pandemia, e colocar o cuidado como uma estratégia crucial das políticas públicas orientadas à promoção da igualdade e justiça social. Como pontuaram as feministas italianas diante da impossibilidade de realizar as manifestações do 8 de março, não queremos voltar à “normalidade”, porque esta normalidade já é demasiadamente injusta e desigual, racista e heteropatriarcal2.
Precisamos pensar a partir de uma outra perspectiva sobre o cuidado, que parta de uma visão feminista antirracista e decolonial. Fazendo o exercício de imaginar futuros melhores, mais iguais e livres, o cuidado deveria ser um lugar de potência para as mulheres. Em uma sociedade baseada na solidariedade, possivelmente estaríamos pensando de forma mais coletiva nos problemas surgidos com a pandemia. Uma proposta política como a do Bem Viver; que busca o bem comum, a solidariedade e responsabilidade com a natureza e a criação de uma alternativa de organização societal que freie a acumulação sem fim de nossas sociedades capitalistas seja um caminho mais vislumbrado como proposta real após a passagem desta pandemia mundial.
1 A ONU Mulheres elaborou um documento fundamental sobre como inserir a questão de gênero nas respostas de enfrentamento à pandemia. Está disponível em http://www.onumulheres.org.br/noticias/onu-mulheres-americas-e-caribe-faz-14-recomendacoes-para-que-mulheres-e-igualdade-de-genero-sejam-incluidas-na-resposta-a-pandemia-do-covid-19/.
2 Parte do relato da Paula Satta, “Reflexiones feministas en tiempos de cuarentena”. Disponível em https://ombelico.com.ar/2020/03/12/reflexiones-feministas-en-tiempos-de-cuarentena/ (Acesso em 19/3/2020).
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