Cândido Gzybowski - https://sentidoserumos.blogspot.com/
Inauguramos uma nova conjuntura e um novo processo no Brasil que, na apoteótica posse, o Presidente Lula definiu como de renovação democrática. Mas pelo que aconteceu no curto espaço de tempo desde a posse dá para ter a dimensão do desafio de ordem política institucional que temos pela frente. O Estado está contaminado por dentro por um câncer de ataque à democracia instituída e constituída. Muita coisa precisará ser cirurgicamente buscada, desvendada e enfrentada, em particular nos aparatos de segurança, mas não só. Esta é uma tarefa para as estruturas de poder constituído: executivo, legislativo e judiciário. Como cidadanias em ação, nós podemos pressionar e cobrar, mas dependemos dos poderes, suas competências legais e suas composições políticas. Lula como presidente legitimamente eleito demonstrou determinação e capacidade de articulação dos poderes de um líder que se fez na luta por justiça social na e pela democracia. Contar com ele é muito, mas ainda insuficiente.
Para um renovação que vá à raiz dos problemas, já antes da posse apareceu o veto das “forças do mercado” a qualquer regulação da sua pretensa “total liberdade” de impor a agenda das políticas econômicas. Afinal, temos democracia e elegemos Lula para, com base no Estado, exatamente regular a economia e fazê-la servir à sociedade como um todo: cuidar de gente, em primeiro lugar. Precisamos de economia que seja democrática ela mesma, que crie empregos e produza bens e serviços para atender necessidades coletivas, antes de servir à acumulação de riquezas de um punhado dos super ricos. Aqui o mal é de origem histórica e estrutural no modo como que o país se fez uma nação – o Brasil –, conquistador interno, violento e assassino de gente e destruidor da natureza, colonial, sobre povos e territórios indígenas originários, com escravidão e racismo. Aí a parada é dura, mas sempre a democracia sobre o mercado pode avançar, desde que haja muita vontade e determinação, especialmente na esfera do Estado. A equipe ministerial de Lula tem personalidades que anunciaram virtuosos programas e entusiasmantes intenções. Mas, como cidadania, não podemos cruzar os braços e esperar. Esta também é uma parada que nos cabe, apontando caminhos e resistindo às investidas, como, aliás, estamos fazendo desde sempre.
O que mais me preocupa neste momento é a tarefa que cabe essencialmente a nós, cidadania em ação, já que o câncer antidemocrático atinge severamente a esfera social, está no seio da sociedade civil. A renovação democrática para valer, se ela não acontecer com força dentro da sociedade civil, pode simplesmente fracassar.
No governo que acabou, com sua pregação fascista e de ódio, o tecido social foi esgarçado. Particularmente importante foi a deslegitimação das identidades e vozes por direitos da diversidade de sujeitos cidadãos. As perdas em termos de valores e imaginários são enormes. Mas também em práticas e atitudes, com intolerância e ódio a todos que sejam considerados diferentes e, por isto, inaceitáveis. Legitimou-se e se estimulou o rearmamento individual. Milicianos e grandes setores das polícias passaram a se sentir empoderados para agir com violência e até matar, sem medo de contenção. As invasões e destruições sobre territórios de povos originários e de conservação, assim como os territórios de sofridas periferias urbanas, foram toleradas quando não estimuladas sistematicamente.
A isto tudo se soma o universo paralelo das redes sociais e das notícias falsas, contaminando corações e mentes, com apoio até dos “mercadores da fé” em áreas populares. Claro, não dá para deixar de fora o papel de desconstrução praticado pelas grandes mídias proprietárias contra tudo o que foi visto como do PT e das esquerdas. Mas o seu papel foi decisivo sobretudo no tirar do armário a direita autoritária e legitimá-la, criando o ambiente para o enorme retrocesso democrático acontecido, que viabilizou a ascensão do fascismo como movimento antidemocrático e de ódio. Enfim, o ataque ao universo político e cultural foi devastador. Este universo é o verdadeiro berço das democracias, pois funciona como fermento de imaginários, de valores e da cultura democrática da iguais direitos na diversidade, como motivação e engajamento prático.
Estou me referindo à urgente tarefa da reconstrução de um irresistível movimento inspirada em princípios, valores, direitos, concepções e visões estratégicas do fazer democrático. Isto pode e deve contar com o apoio de um governo que aposta na renovação democrática. Afinal, cabe a ele investir em políticas de cuidado democrático: direitos humanos, educação, cultura, comunicação, indígenas, igualdade racial, mulheres, tudo com a maior inclusão, sem fronteiras entre nós. Mas o protagonismo deve ser da ação cidadã a partir dos territórios em que vivemos. Ou as políticas olham, se inspiram e se deixam fecundar pelas práticas virtuosas nos territórios ou serão fadadas ao fracasso. Os governos passados das esquerdas, especialmente do PT, podem inspirar em muitos campos. No entanto, nesta esfera da sociedade civil, o Estado não pode substituir o protagonismo cidadão. Subsidiar e potencializar, sim!
Aqui se abre uma enorme canteiro de insubstituível ação da cidadania. Todas e todos sabemos que qualquer ação deste tipo precisa de raízes nos territórios, que são, por definição, territórios de cidadania porque de vida em nossa diversidade. Até nossas identidades coletivas tem a ver com territórios concretos, com seus estilos de viver, sua cultura, seus lugares de lazer, suas matas, rios e praias. Os empreendimentos empresariais ou infraestruturas que não respeitam isto são voltados para interesses de fora dos territórios e, por isto mesmo, invasores de algo vivido como comum.
Por exemplo, as experiências de “educação emancipadora e libertadora”, com base nas resistências territoriais, são uma grande fonte de renovação democrática, como exemplarmente elaborado e sistematizado nos escritos do grande Paulo Freire. São incontáveis os grupos existentes, mas ameaçados pelo avanço da intolerância aos diferentes e aos que lutam por direitos iguais. Os núcleos de comunicação e expressão cultural popular tem um papel insubstituível para dentro dos territórios porque são de dentro. No entanto, precisam ganhar potencialidade como redes de construção de imaginários coletivos compartilhados, potentes fomentadores da valorização e empoderamento da diversidade essencial para a democracia viva.
Para enfrentar problemas comuns, nada como tratá-los como comuns e valorizar o protagonismo cidadão em tais empreendimentos. Os exemplos de economia solidária, agroecologia e produção de alimentos saudáveis, coleta de lixo e reciclagem, gestão de água e territórios, são exemplos contundentes de modos de viver e produzir, cuidando e compartilhando comuns, experiências eminentemente democráticas transformadoras.
Mas isto tudo é só uma entrada. Tem muito mais. Como isto está no centro do que defini para o meu blog – Sentidos e Rumos – buscando contribuir ao debate coletivo em torno a ideias de cidadania e democracia transformadora ecossocial, o desafio para a ação cidadã vai ocupar de modo central as minhas próximas postagens.
By Cândido Grzybowski Um comentário:
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domingo, 15 de janeiro de 2023
Entre Adversários e Inimigos
Os graves atos de invasão e destruição dos espaços políticos centrais, símbolos de nossa institucionalidade democrática e de seus três poderes, no dia 8 de janeiro, em Brasília, precisam ser vistos no que são: uma afronta à democracia. Foi um choque que exigiu tomada de decisões firmes do Governo Lula e das instituições do Estado, sem hesitações, mesmo contra os seus tentáculos no próprio Estado. Afinal, o intolerável foi franqueado por inimigos da democracia. Tem que ser enfrentado como tal: um ataque à democracia. E o poder Judiciário precisa investigar e julgar, tanto os que agiram se autofotografando, o seu líder declarado, hoje “fugitivo” na Florida, como os coniventes ou omissos nas instituições do Estado e os muitos instigadores e financiadores da destruição. A justiça precisa ser justa, célere e até exemplar para dissuadir e desencorajar, pois democracia ameaçada se vive sempre no presente, julgando e condenando segundo a lei, sem conciliação.
Aqui se apresenta um quadro claro do que é uma luta democrática legítima, entre diferentes e opostos em base ao instituído, e o que sinaliza uma ruptura e um ato destrutivo da mesma, naquilo que tem de mais emblemático: a não aceitação da sua institucionalidade democrática.
Nunca é demais lembrar que a democracia não é um projeto de país em si mesmo, mas o modo de disputar projetos e construí-los politicamente, segundo princípios e valores éticos pactuados numa constituição, a qual define as regras básicas do pertencimento, convívio e compartilhamento, em base a direitos iguais de toda a cidadania. Neste sentido, a democracia não nega diferenças, divergências e oposições no seio da sociedade e na esfera política, mas busca transformá-las em forças de mudança e construção do melhor possível historicamente, com base no exercício da igual titularidade de direitos.
Não há democracia viva sem lutas, até acirradas, mas dentro da institucionalidade, com reconhecimento mútuo da mesma cidadania. Pode ser tensionada e questionada, pela disputada no seio da sociedade civil e do Estado. As disputas e os acordos que geram são provisórios, porque datados e situados, sempre podendo ser mudados segundo as regras básicas, que incluem a decisão final de quem tem a titularidade da democracia: a cidadania. O inadmissível é negar a soberania do conjunto da cidadania que decide através eleições, plebiscitos e referendos, assim como com a participação constante, tanto em espaços politicamente conquistados e reconhecidos, como pela organização de movimentos, redes e fóruns de cidadania em busca de mais e mais diretos para todas e todos.
De toda forma, como modo de fazer, a democracia está sempre em construção, com avanços e recuos, ao sabor das lutas entre forças legitimamente constituídas, gostemos ou não. O que se torna inaceitável é a ruptura com o modo de fazer, com a democracia enquanto tal.
Antes de continuar, aqui se faz necessário ter presente que, como país e sociedade real, a nossa estrutura econômica, social, cultural e política é atravessada por profundas desigualdades, violências de toda ordem, exclusões e destruições ecossociais, que vem se reproduzindo desde séculos de conquista e a colonização. A nossa Independência não alterou as relações, estruturas e processos básicos, geradores de enormes periferias e precariedades de toda ordem, em territórios urbanos e rurais. Muito recentemente, nos anos 80 do século passado, elegemos a democracia como modo de enfrentar tudo isto depois de 21 anos de ditadura militar, que só tinha aprofundado a desigualdade, a exclusão e a destruição ecossocial, pela desconstrução institucional e das frágeis garantias, pela força, repressão, tortura e morte.
No momento, a nossa ainda frágil democracia de trinta e poucos anos está sendo ameaçada pela imposição, novamente, da força bruta como regra, pelos que não reconhecem o resultado legítimo da última disputa eleitoral, que derrotou seu candidato, um líder que nunca escondeu a sua visão e vocação autoritária e excludente. A reivindicação dos derrotados é pelo golpe de Estado pelas forças armadas, contra as regras democráticas instituídas, pondo em dúvida a lisura do processo eleitoral, sem fundamento. De fato, a ameaça veio num crescendo desde o golpe de 2016 e se materializou de forma mais escancarada na eleição de 2018. O governo passou a ser liderado por um capitão sem vergonha de se declarar admirador de ditaduras e de sua prática de torturas. Dados os desmontes e retrocessos que foram praticados no último período governamental, para as eleições de 2022 se forjou uma frente de forças democráticas em torno a Lula, que acabou vitoriosa pelo voto da cidadania, apoiando a perspectiva de renovação e revitalização da democracia.
Esta é a questão mais estratégica a enfrentar. Alianças e coalizões, com formação de frentes e blocos de poder, são constitutivas do modo de ser e acontecer das democracias, limitando ou potencializando o seu poder de transformação ecossocial, como venho apontando no meu blog “Sentidos e Rumos”. Assim, de qualquer ponto que a gente olhe, há um nós e um eles, ou um eles e um nós, mas como forças democráticas. O que não dá para aceitar é quem extrapola a institucionalidade e, sobretudo, quem quer destruí-la. As forças que fizerem isto deixam de ser eles e se tornam inimigos da própria democracia. Não se trata mais de oposição democrática legítima. Não podem ser legitimados como adversários democráticos, porque são inimigos da democracia, deixando de ser oposição com quem negociar o possível no processo político em seu acontecer. Como inimigos e destruidores da democracia, são inimigos de nós e eles que aceitam a institucionalidade e as regras democráticas.
Enfim, uma posição e engajamento dentro das regras da democracia é ser defensor de direitos e, alguns, até de privilégios conquistados confundidos com direitos – tradição de todas direitas pelo mundo. Uma posição radical, bem diferente, é ser contra a democracia enquanto tal. Não dá para ver e afirmar que toda a cidadania que referendou o derrotado, que buscou a sua reeleição e não conseguiu, seja antidemocrática. Este cuidado vai ser fundamental para distinguir a quem combater, sem trégua e pelas regras instituídas: os líderes e operadores do núcleo duro de um câncer antidemocrático e seu bando de asseclas, que se consideram acima das leis democráticas vigentes. Mas isto não nos pode levar a por no mesmo balaio todos os muitos e as muitas que foram contaminados pelo discurso de ódio e pela disseminação criminosa de notícias falsas. Aí estamos diante de outro desafio estratégico a ser encarado pela cidadania e pela coalizão política vitoriosa nas eleições pela renovação democrática. Trata-se de não perder de vista o amplo trabalho cidadão e republicano de disputa de hegemonia dos princípios e valores democráticos no seio da sociedade civil, hoje contaminada pela propagação de um discurso antidemocrático.
Ouso afirmar que este é um desafio mais para quem tem poder legítimo de instituir e constituir a democracia: as cidadanias ao nível da sociedade civil, através da ação da diversidade de movimentos e identidades cidadãs, com suas redes, apoiando-se em instituições comunitárias, associações, sindicatos, partidos, instituições de educação, da cultura e da informação, até religiosas. Este é um desafio de fundo e tarefa democrática para toda a cidadania ao nível dos territórios de vida e trabalho, mais do que das instituições políticas que devem exercer o seu papel: operar como Estado democrático, produzindo leis e políticas, gerindo os recursos de todas e todos, em nome do conjunto da cidadania para um país mais e mais democrático.
Enfim, chega de busca de conciliação e legitimação de inimigos da democracia como se fosse nossos adversários legítimos. Eles estão além, são fascistas e inimigos a enfrentar como tais por todas as forças democráticas. Fazemos isto ou o câncer totalitário vai destruir o nosso futuro e de várias gerações mais. Conciliamos nos anos 80 e deu no que deu. Agora basta! Anistia a inimigos da democracia e torturadores nunca mais!
fonte: https://sentidoserumos.blogspot.com/