Descriminalização do Aborto: A importância da legalização na saúde da mulher
DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO: A importância da legalização na saúde da mulher
Maria Eduarda Queiroz Machado
Náthaly Borges de Castro
Resumo
O presente artigo trata sobre a descriminalização do aborto: a importância da legalização na saúde da mulher, realizando análise da norma e jurisprudência que versa sobre o tema. O artigo responderá a seguinte problemática: Ao descriminalizar o aborto há respeito aos direitos da liberdade de autonomia da mulher bem como ao direito de decidir se continua ou não com uma gravidez, que pode ser indesejada ou causada por um ato delituosos? Com isso, pretende-se analisar o aborto e a descriminalização desta prática na legislação pátria, indo a favor dos compromissos assumidos pelo Brasil perante a comunidade internacional. Visando ao alcance da meta anteriormente estabelecida, pretende-se analisar o conceito histórico do aborto. Em sequência, analisar o aborto sob a ótica dos direitos humanos e fundamentais e por fim, apresentar os entendimentos jurisprudenciais que tratam sobre o tema. A metodologia utilizada para se alcançar este objetivo se fundou no método dedutivo, a técnica de pesquisa utilizada foi à bibliográfica e documental, tendo em vista que foram consultados artigos publicados, livros pertinentes ao tema e a legislação vigente que dispõe sobre a matéria de estudo. Não é aceitável que dogmas religiosos e preconceitos sejam usados como argumentos para proibir o acesso das mulheres aos seus direitos. Logo, conclui-se que a descriminalização do aborto vai de encontro a um direito mais digno e humano.
Palavras-chaves: Aborto; mulher; direitos humanos; democracia; descriminalização do aborto.
Abstract
This article deals with the decriminalization of abortion: the importance of legalization in women's health, analyzing the norms and jurisprudence that deal with the subject. The article will answer the following issue: When decriminalizing abortion, is there respect for the rights of women's freedom of autonomy as well as the right to decide whether or not to continue with a pregnancy, which may be unwanted or caused by a criminal act? With that, it is intended to analyze abortion and the decriminalization of this practice in the national legislation, going in favor of the commitments assumed by Brazil before the international community. Aiming to reach the previously established goal, we intend to analyze the historical concept of abortion. Next, analyze abortion from the perspective of human and fundamental rights and, finally, present the jurisprudential understandings that deal with the subject. The methodology used to achieve this objective was based on the deductive method, the research technique used was bibliographical and documentary, considering that published articles, books pertinent to the topic and current legislation on the subject of study were consulted. It is not acceptable that religious dogmas and prejudices are used as arguments to deny women's access to their rights. Therefore, it is concluded that the decriminalization of abortion goes against a more dignified and human right.
Keywords: democracy; principle of human dignity; decriminalization of abortion.
1.Introdução
Atualmente, a questão do aborto no Brasil é assunto de muita polêmica, tendo em vista que, em determinados casos, está previsto na norma e em outros não, e por isso, gera ampla discussão de pessoas que defendem o direito de a mulher poder escolher ter um filho ou não.
É um assunto extremamente polêmico, mas que é necessário para garantir os direitos fundamentais das mulheres, principalmente o da dignidade da pessoa humana: a descriminalização do aborto.
Com base nisso, o presente artigo vem apresentar a temática da descriminalização do aborto: a importância da legalização na saúde da mulher.
Nesse sentido, considerando a relevância e impacto do tema para toda a sociedade, questiona-se: Ao descriminalizar o aborto há respeito aos direitos da liberdade de autonomia da mulher bem como ao direito de decidir se continua ou não com uma gravidez, que pode ser indesejada ou causada por um ato delituosos?
Daí a grande importância do tema para a sociedade atual, vez que analisará os direitos e garantias das mulheres e ainda o poder de escolher o que fazer com o próprio corpo.
Para tanto, propõe-se como objetivo geral analisar o aborto e a descriminalização desta prática na legislação pátria, indo a favor dos compromissos assumidos pelo Brasil perante a comunidade internacional.
Os objetivos específicos do presente artigo a fim de alcançar a meta anteriormente estabelecida, se darão em três etapas distintas. Primeiramente, pretende-se analisar o conceito histórico do aborto. Em sequência, analisar o aborto sob a ótica dos direitos humanos e fundamentais e por fim, apresentar os entendimentos jurisprudenciais que tratam sobre o tema.
A metodologia atribuída para esse estudo quanto aos meios: trata-se de uma investigação que tem como suporte uma Pesquisa Bibliográfica. Esta por sua vez, consolida-se por meio de livros, artigos, legislação entre outros meios.
Boa parte dos estudos exploratórios pode ser definida como pesquisas bibliográficas. Salientando-se ainda, o método de abordagem utilizado para a elaboração desse estudo é o dedutivo, tratando-se de um raciocínio puramente formal, no qual a conclusão não fornece um conhecimento novo, ao contrário da indução, isto porque a dedução já está implícita nos princípios.
O artigo foi estruturado em capítulos e considerações finais, a fim de garantir a melhor compreensão acerca do tema objeto de estudo.
No primeiro capítulo foi feita uma pesquisa acerca do processo histórico do aborto no Brasil, com a apresentação de conceitos, da forma como a legislação o vê, além de ser disponibilizados dados sobre o aborto no Brasil.
O intuito deste capítulo é demonstrar a necessidade latente da evolução da legislação brasileira no que tange a descriminalização do aborto e suas implicações no âmbito legal.
No segundo capítulo é analisado a questão da criminalização do aberto à luz dos direitos humanos e fundamentais, buscando uma referência aos diversos movimentos feministas e suas conquistas ao longo da história. Neste capítulo trazemos o quão importante é trazer a competência da mulher para decidir sobre a reprodução, como forma de garantir os direitos à vida, à saúde, liberdade sexual e a dignidade da pessoa humana.
No terceiro capítulo foi explanado sobre o entendimento do Supremo Tribunal Federal e de outros Tribunais, que tem ido de encontro a descriminalização do aborto; todavia, também foi apresentado os projetos de lei que buscam criminalizar o aborto.
Foi colacionado também algumas ementas que mostram a mudança do pensamento dos magistrados a respeito do tema proposto, e em uma busca no site do Tribunal de Justiça de Goiás não foi encontrado nenhum ementário sobre o assunto.
Por fim, devemos entender que a descriminalização do aborto não é uma incitação ao mesmo, mas sim uma forma de resguardar os direitos fundamentais da pessoa humana.
2. O Aborto no Brasil
A discussão do aborto no Brasil iniciou-se por volta da década de 70, por meio de alguns estudos acadêmicos realizados no âmbito da saúde pública. Dentre esses estudos feitos na época, destacam-se os de Milanesi, que foi realizado em 1970; Falconi, no ano de 1975 e Martine também em 1975.
2.1. Conceito e Histórico do Aborto
De acordo com a definição trazida por Guilherme Nucci (2018, p. 629), “aborto é a cessação da gravidez, antes do termo normal, causando a morte do feto ou embrião”. Dessa maneira, para o estudo do direito, não tem relevância o tempo de gestação que a mulher se encontra, sendo, portanto, caracterizado aborto qualquer tipo de interrupção da gravidez.
De acordo com Gustavo Machado o aborto se qualifica como:
[...] a interrupção da gravidez antes de atingida a vitalidade do concepto, usando geralmente como parâmetros a idade gestacional até 20 semanas ou a massa até 500 gramas. O abortamento espontâneo ocorre em 10 a 15% do total de gestações. Aborto provocado é o emprego ativo de meios para interromper uma gestação. Os meios comumente usados são: esvaziamento instrumental transvaginal da cavidade uterina, indução química e cirurgia uterina. (MACHADO, 2007, p. 12)
Algumas doutrinas ainda determinam que existem outros casos que não deixarão de ser aborto, como nos casos em que “o produto da concepção pode ser dissolvido, reabsorvido pelo organismo da mulher ou até mumificado, ou pode a gestante morrer antes de sua expulsão” (MIRABETE; FABBRINI, 2009, p. 57).
Além disso, Guilherme de Souza Nucci (2018), ensina que podem haver seis tipos de aborto, quais sejam: o aborto natural, onde a gravidez é interrompida de forma espontânea até mesmo por causas patológicas; aborto acidental, que ocorre por fatores externos, como uma queda ou acidente sofrido pela mulher; aborto criminoso, decorrente da interrupção voluntária da gestação, que ocasiona a morte do feto ou do embrião; aborto eugênico, decorrente da interrupção da gravidez a fim de evitar que o bebê nasça com determinados defeitos genéticos considerados graves.
Existem ainda, na conceção de Guilherme Nucci (2018), o aborto econômico-social, que acontece por razões econômicas ou sociais, pelo fato de a mãe não possuir condições financeiras de criar a criança e por fim, o aborto legal, que são casos em que a lei permite que a mulher interrompa a gestação sem que sua conduta seja punida criminalmente.
Ainda, para Guilherme Nucci (2018), no aborto legal, há duas subdivisões, sendo o aborto necessário, quando é realizado por recomendação médica a fim de preservar a vida da gestante e ainda o humanitário, que são os casos em que há autorização legal para que a gestação seja interrompida, a citar como exemplo, os casos de estupro.
Passada a fase conceitual do aborto, conforme definição trazida por Farah, o aborto possui duas fases distintas no âmbito penal: “a visão penal divide as fases do aborto em ovular (nos primeiros dois meses); e embrionário (no terceiro e quarto mês), fetal (nos períodos seguintes). O objeto da conduta tem como condição a existência da gravidez” (FARAH, 2015).
Assim, para o Direito Penal, independente do período em que a gravidez se encontra, seja ovular ou embrionária, em todas elas o ato de abortar é considerado como conduta criminosa.
A fim de interromper a gestação indesejada, as mulheres utilizam de vários métodos perigosos, como a combinação de medicamentos e chás caseiros ou ainda a técnica de curetagem realizada em clínicas privadas, de forma clandestina.
A propósito, Mirabete e Fabbrini, destacam algumas possibilidades de aborto, classificando os processos em químico, orgânico, físico ou psíquico. Nesse sentido os autores destacam:
São substâncias que provocam a intoxicação do organismo da gestante e o consequente aborto o fósforo, o chumbo, o mercúrio, o arsênico (químicos), e a quinina, a estricnina, o ópio, a beladona etc (orgânicos). Os meios físicos são os mecânicos (traumatismo do ovo com a punção, dilatação do colo do útero, curetagem do útero, microcesária), térmicos (bolsas de água quente, escalda-pés etc) ou elétricos (choque elétrico por máquina estática). Os meios psíquicos ou morais são os que agem sobre o psiquismo da mulher (sugestão, susto, terror, choque moral etc. (MIRABETE, FABBRINI, 2009, p.58-59)
No entanto, é importante ressaltar que o aborto nem sempre foi visto como algo criminoso.
A atual tipificação criminal do aborto se construiu com o passar dos anos, vez que na Mesopotâmia, o aborto não era considerado um crime contra a vida e sim contra os interesses do pai e do marido.
Na antiguidade, os filhos eram tidos como propriedade do pai e somente ele tinha algum direito sobre a vida e a morte dos filhos (VERARDO, 1989, p. 79).
Em diversos países a prática do aborto é legalizada como na França, na Alemanha, quando o aborto for praticado até o terceiro mês de gestação.
Ainda, no estado do Colorado e da Califórnia, nos Estados Unidos da América, no ano de 1965, o aborto foi legalizado em alguns casos e no estado de Nova Iorque, em 1970, admitiu o aborto até a 24ª semana de gestação. Em Portugal, no ano de 2007, o aborto foi autorizado até as 10 primeiras semanas de gravidez, a pedido da mulher, sem qualquer motivação; até 16 semanas em caso de estupro; até 24 semanas quando há malformação do feto; e em qualquer caso quando houver risco de morte para a gestante (TORRES, 2012).
No Brasil, a discussão acerca do aborto teve início no século XIX e ao longo dos anos, o tema passou por diversas alterações legislativas, incluindo casos em que o aborto era visto como um ato que atentava à segurança das pessoas e à vida, mas não era criminalmente punido.
Posteriormente, no ano de 1890, o aborto era punido apenas quando praticado por terceiros, ainda que houvesse anuência da gestante e caso o resultado fosse a morte da mulher. No entanto, naquela época, caso restasse comprovado que o aborto teria sido realizado a fim de preservar a honra da mulher, algo de extrema importância na época, a pena era reduzida.
No entanto, até os dias atuais o aborto é um tema que gera inúmeras discussões e apesar das diversas opiniões sobre o tema, é uma prática que sempre foi realizada, seja ela legalizada ou não, sendo que, em alguns momentos da história, a depender da situação, o aborto era inclusive recomendado.
2.2. Legislação Brasileira e Aborto
Apesar de toda a evolução da sociedade e da legislação, e ainda mesmo diante da grande discussão que o tema gerou e ainda gera, atualmente, a prática do aborto até o presente momento é considerada crime no Brasil, e tal conduta está devidamente tipificada nos artigos 124, 125 e 126 do Código Penal, a saber:
Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento (grifo do autor)
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena - detenção, de um a três anos.
Aborto provocado por terceiro (grifo do autor)
Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de três a dez anos.
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. (BRASIL, 1940)
No entanto, a legislação brasileira prevê algumas hipóteses em que o aborto não será punível, portanto, quando realizado, não é considerado crime. Esses casos estão previstos no artigo 128 do Código Penal:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário (grifo do autor)
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro (grifo do autor)
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. (BRASIL, 1940)
Nos casos previstos no artigo mencionado acima, estão previstas as hipóteses em que, prosseguir com a gravidez pode causar algum risco de vida para a mulher que está gerando uma vida ou ainda permitir o aborto em casos de estupro.
Inclusive, cabe aqui abrir um parêntese para elencar que há um terceiro caso em que o aborto não é tido como um ato criminoso aos olhos da legislação brasileira.
Para tanto, cabe mencionar o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, que trata dos casos em que a mulher está gerando um feto anencefálico, ou seja, aquele em que não houve formação do cérebro que, até chegar em uma conclusão, muito se discutiu acerca da possibilidade de aborto desse tipo de feto (GRECO, 2014).
Aqui cabe mencionar que, nos casos em que a mulher está gerando um bebê anencefálico, de acordo com a medicina atual, não existe nenhum tratamento capaz de curar e fazer com que a criança nasça e tenha uma vida normal. Nesses casos, a morte do bebê é algo inevitável, vez que, apesar de o coração funcionar, nenhum corpo sobrevive sem atividade cerebral.
Em decorrência disso, no dia 17 de junho de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CTNS), propôs a referida Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, onde restou questionada a aplicabilidade dos artigos 124 a 128 do Código Penal, no que concerne à mulher que está gerando um feto anencefálico.
Após oito anos, aproximadamente, vale dizer, em 12 de abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal decidiu a questão por maioria e nos termos do voto do Relator, Ministro Marco Aurélio, a fim de declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos arts. 124, 126, 128, I e II, todos do diploma repressivo (GRECO, 2014, p. 264).
No julgamento da ADPF 54, restou determinado que é possível que a mulher decida prosseguir com a gravidez ou abortar o feto nos casos de gestação de um feto anencefálico, ou seja, o que possui malformação congênita de feto, por ausência de crânio.
A propósito:
ADPF - ADEQUAÇÃO - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - FETO ANENCÉFALO - POLÍTICA JUDICIÁRIA - MACROPROCESSO. Tanto quanto possível, há de ser dada sequência a processo objetivo, chegando-se, de imediato, a pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Em jogo valores consagrados na Lei Fundamental - como o são os da dignidade da pessoa humana, da saúde, da liberdade e autonomia da manifestação da vontade e da legalidade -, considerados a interrupção da gravidez de feto anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a configuração do crime de aborto, adequada surge a arguição de descumprimento de preceito fundamental. ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - GLOSA PENAL - PROCESSOS EM CURSO - SUSPENSÃO. Pendente de julgamento a arguição de descumprimento de preceito fundamental, processos criminais em curso, em face da interrupção da gravidez no caso de anencefalia, devem ficar suspensos até o crivo final do Supremo Tribunal Federal. ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - GLOSA PENAL - AFASTAMENTO - MITIGAÇÃO. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao qual guardo reserva, não prevalece, em arguição de descumprimento de preceito fundamental, liminar no sentido de afastar a glosa penal relativamente àqueles que venham a participar da interrupção da gravidez no caso de anencefalia. (BRASIL, 2005)
Assim, além das hipóteses de aborto permitidas pelo Código Penal Brasileiro, quais sejam, o necessário e o que ocorre nos casos de estupro, também é permitido que a mulher, caso queira, aborte o feto anencefálico, com base na decisão do Supremo Tribunal Federa.
A discussão acerca do tema “aborto” no Brasil é de extrema importância vez que, em decorrência da criminalização do aborto, diversas mulheres buscam medidas alternativas e que, na maioria das vezes, colocam suas vidas em risco, mas com o intuito de praticar o aborto.
Analisando o fato dessa ótica, percebe-se que a criminalização do aborto não inibe tal prática, mas causa diversas lesões e morte de diversas mulheres que realizam esses procedimentos de maneira insegura.
2.3. Dados do Aborto
De acordo com os dados colhidos pela Organização das Nações Unidas (ONU, 2017) no ano de 2017, mais de 25 milhões de mulheres fizeram procedimentos inseguros com o intuito de interromper uma gravidez indesejada.
Ainda conforme os dados obtidos no estudo realizado pela ONU, a maioria dessas mulheres que praticaram abortos inseguros residem em países ainda em desenvolvimento da América Latina, Ásia e África.
Em análise aos dados da pesquisa realizada pela ONU, o fato de a legislação de determinado país proibir ou restringir a prática do aborto não é eficaz de modo que não há diminuição no número de abortos quando comparado aos números obtidos nos países em que a prática é permitida.
Além disso, em pesquisa mais recente, realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), e ainda com confirmação dos dados pelo Instituto Guttmacher, “entre 2015 e 2019 foram realizados em média 73,3 milhões de abortos não espontâneos por ano; uma média de 6,10 milhões de abortos por mês” (MELLO, 2021).
De acordo com os últimos dados apresentados na Pesquisa Nacional de Aborto realizada no ano de 2016, os abortos no Brasil não são praticados apenas por mulheres de uma faixa etária específica, vez que ocorrem tanto na juventude quanto em mulheres adultas jovens.
Coadunando com o resultado obtido na pesquisa, Diniz (2016) conclui que o aborto é extremamente comum no Brasil e que possui resultados estáveis quando comprado aos números obtidos nos anos de 2010 e 2016.
No entanto, nem por isso o aborto deixa de ser tido como um problema de saúde pública. Para tanto, a título de conhecimento, segue o levantamento realizado que demonstra com clareza as taxas de aborto segundo as características das mulheres no Brasil anos de 2010 e 2016:
Tabela 1. Taxas de aborto de acordo com as características das mulheres brasileiras 2010 e 2016.
Fonte: PNA, 2010 e PNA, 2016.
Apesar de não haver grande diferenciação entre a idade das mulheres que optam por realizar o aborto, o mesmo não se observa quanto ao nível de escolaridade. Nota-se que o aberto é praticado com maior frequência por mulheres que possuem apenas até o quarto ano do ensino fundamental (23%) e por volta de 12% por mulheres que possuem apenas o ensino médio concluído.
É notório o fato de que mesmo havendo legislação que trata do aborto como um ato criminoso, essa prática ocorre em grande escala em todo o mundo e ainda coloca em risco a vida de milhares de mulheres, sejam elas adolescentes ou adultas, geralmente de classe baixa e com baixo nível de escolaridade.
Esses dados deixam evidentes que o aborto é um problema de saúde pública e justiça social, que envolve questões éticas e morais que precisam ser revistas por toda a sociedade a fim de que haja o avanço necessário na legislação brasileira.
Não ter a prática do aborto voluntário como um ato criminoso é uma forma de fazer valer os direitos e garantias fundamentais das mulheres, tendo em vista que as diversas consequências negativas, diga-se de passagem, são assustadoras, principalmente no que concerne à saúde das mulheres.
3. Violação dos Direitos Humanos
No texto da Constituinte de 1988 estão elencados os direitos fundamentais, sendo que estes englobam os direitos individuais, políticos e sociais dos indivíduos. Além mais, é importante ressaltar que tais direitos são patrimônio comum da humanidade e ainda reconhecidos no âmbito internacional pela Organização das Nações Unidas.
Os direitos previstos no rol do artigo 5º da Constituição Federal são fundamentais e têm o condão de garantir a todos tratamento igualitário e ainda direito à vida, liberdade, segurança e propriedade.
Analisando-se a Constituição Brasileira, infere-se que o Estado Democrático de Direito implica a realização de uma política de atuação que tenha como fundamentos a liberdade e a dignidade da pessoa humana4 não podendo desconsiderá-los a ponto de converter as pessoas em meros instrumentos ou sujeitos de tutela. Assim, convém ressaltar que a pessoa deve ser reconhecida como ente autônomo e sujeito de direitos e garantias (DICK, 2016, p. 24-25).
Verifica-se que os direitos fundamentais são garantidos a todos e ao passo que se debate o tema da descriminalização do aborto voluntário, é necessário analisar estes direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988 à luz do princípio da dignidade da pessoa humana.
3.1. Direito à Vida Pelo Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
A questão da criminalização do aborto voluntário está em colisão com direitos fundamentais de idêntica valoração axiológica, de acordo com Tessaro (2006, p. 90), “de um lado figura o direito à vida do feto, de outro, os direitos fundamentais da gestante, devendo o princípio da dignidade da pessoa humana ser o vetor de interpretação desse conflito”.
O princípio da dignidade da pessoa humana está consagrado no artigo 1º, inciso III5 da Constituição Federal e é um dos fundamentos do país. Acerca deste princípio, importante lição nos dá Geisa de Assis Rodrigues:
No art. 1º, inciso III, da Constituição da Republica de 1988 consta como um postulado central do nosso ordenamento pátrio, um fundamento axiológico sobre o qual está construído o Estado Democrático de Direito: dignidade da pessoa humana, um dos princípios fundamentais da República. Este é parâmetro orientador de aplicação e interpretação, é, portanto, a exegese de tal ordenamento. É um valor constitucional que irradia luzes sobre todo o ordenamento, em todos os âmbitos seja ele cível, penal, administrativo, eleitoral, trabalhista e qualquer outro que se originar. Ele é basilar e orientador à todas as atividades estatais, inclusive dos três poderes, executivo, legislativo e judiciário, como eficácia vertical dos direitos fundamentais. Contudo não apenas das atividades públicas, mas também, de todas as atividades privadas, consagrando a eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Atua, assim, como piso protetivo mínimo da sociedade. (RODRIGUES, 2006, p.94)
Denota-se que o princípio da dignidade da pessoa humana é usado como norteador das ações do poder legislativo, executivo e judiciários, portanto, é dever do Estado, dentro de suas limitações, garantir o bem-estar social, a proteção da vida e todos os direitos fundamentais. Embasando este entendimento:
É um princípio regente, base e meta do Estado Democrático de Direito, regulador do mínimo existencial para a sobrevivência apropriada, a ser garantido a todo ser humano, bem como o elemento propulsor da respeitabilidade e da autoestima do indivíduo nas relações sociais (NUCCI, 2011, p.92).
O conceito de democracia está ligado, diretamente, com a capacidade de preservar, garantir e promover os direitos humanos dos cidadãos. Segundo Sarlet:
[...] a dignidade da pessoa humana, enquanto eixo central do ordenamento jurídico pátrio, possui estreita interface com os princípios da igualdade e liberdade, sendo a ofensa a esses princípios um ataque direto ao fundamento primário do Estado Democrático de Direito (SARLTET apud DOMINGUES, 2008, p.101).
A dignidade da pessoa humana é um direito irrenunciável e inalienável, tratando-se de um atributo referente ao próprio ser, ou seja, a dignidade não pode ser criada, concedida ou retirada, mas sim, deve ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida. Inclusive, o princípio da igualdade e o respeito à diversidade são oriundos do princípio em comento.
[...] o dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes constitui um dos elementos essenciais do conceito de dignidade da pessoa humana, sem o qual se põe em risco o edifício social, já que se configura pela exigência de o indivíduo reconhecer e respeitar a dignidade de seu igual da mesma forma que a Constituição impõe que a sua seja respeitada [...] (MORAIS apud DOMINGUES, 2008, p.92).
Após as explicações acerca do princípio da dignidade da pessoa humana e sua contextualização no mundo jurídico, abordaremos como a criminalização do aborto está ligada à violação dos direitos humanos da mulher, em especial o direito à vida, à saúde, a não-discriminação de gênero, à liberdade e a autonomia, todos decorrentes do princípio da dignidade da pessoa humana.
É notório que, grande parte, a sociedade brasileira é contra o aborto, todavia, a criminalização dele coloca em risco o direito à vida. Já que muitas mulheres, que escolhem abortar, por vários motivos, buscam clínicas e procedimentos clandestinos, o que colocam suas vidas em risco.
A interrupção da gravidez, de forma clandestina, é considerada como responsável pela terceira causa de mortalidade materna no país, e a cada ano este número tem aumento mais.
Infelizmente, a maioria das mulheres que se submetem aos procedimentos clandestinos são oriundas de classes mais baixas da sociedade, estando neste grupo: mulheres jovens pobres, negras, com baixa escolaridade e em sua maioria, solteiras. Denota-se que quem mais sofre com a criminalização do aborto são aquelas que não têm acesso aos serviços básicos de saúde e educação.
Sabe-se, que a maioria das mulheres que buscam o procedimento abortivo em clínicas clandestinas, o fazem por receio em procurar os serviços públicos de saúde e serem reprovadas socialmente ou de terem sua intimidade e privacidade violadas, quando o ideal seria que essas mulheres fossem acolhidas e orientadas de acordo com o princípio da dignidade humana garantidos pela constituição.
Ao analisar o direito fundamental à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana, é notório que ambos possuem muitos aspectos em comum, todavia são dois bens jurídicos distintos e que podem entrar em conflito em várias questões do cotidiano, como quando se discute o tema do aborto. Um exemplo deste conflito ocorre quando se obriga que uma mulher prossiga com uma gravidez indesejada, uma vez que isso ferem o princípio da dignidade da pessoa humana.
É nítido que a questão do aborto gera conflito com os direitos fundamentais, devendo tal situação ser resolvida pelo princípio constitucional de maior hierarquia axiológico-valorativo, ou seja, a dignidade da pessoa humana deve nortear a interpretação e concretização dos direitos fundamentais, conferindo, assim, unicidade à Constituição Federal brasileira.
Por fim, como forma de garantir as mulheres a proteção ao princípio da dignidade da pessoa humana é necessário que se assegure a ela o direito de decidir sobre a interrupção ou não da gravidez, sem levar em conta dogmas religiosos ou preconceituosos que oprimem a liberdade feminina de decidir sobre uma gestação, sob o pretexto de proteção a vida. Somente quando isto se tornar uma realidade é que veremos que os valores democráticos estão sendo assegurados.
3.2. Direito de Autodeterminação
No primeiro capítulo deste artigo, foi abordado como a mulher esteve subordinada ao poder masculino, demonstrando que sua função dentro da família e da sociedade era o da procriação, da manutenção do lar e da educação dos filhos, ou seja, tinha-se o modelo de família patriarcal, onde mulher e filhos deviam submissão ao pai.
Insatisfeitas com o modelo de família até então adotado e buscando o reconhecimento por igualdade de direitos, surgiu no Brasil em meados do século XX os movimentos feministas, nos quais as mulheres passaram a lutar para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária, sem preconceitos e discriminação de gêneros.
Foi através destes movimentos que às mulheres começaram a ter suas conquistas, passando a serem reconhecidas perante a sociedade como sujeitos titulares de direitos. As primeiras reivindicações dos movimentos foram o direito ao voto, ao trabalho, a remuneração, divórcio e mais tarde as garantias de proteção em casos de violência doméstica.
Mesmo com a conquista dos direitos elencado acima, a busca pela igualdade de gênero, pela liberdade sexual e pelos direitos reprodutivos, como na questão do aborto, ainda precisa ser alcançada. Ressalta-se primeiro movimento feminista que tinha por objetivo a descriminação do aborto, a proteção à violência doméstica, o controle da sexualidade feminina, entre outros direitos sobre as mulheres e o fim de alguns padrões impostos foi chamado de “marcha das vadias”, movimento esse ainda atuante em busca de reconhecimentos dos direitos às mulheres.
Um grande avanço para a liberdade sexual e pelo reconhecimento dos direitos reprodutivos das mulheres se deu com o surgimento do anticoncepcional oral nos anos 50, o que provocou uma revolução na vida sexual feminina; já que o uso da pílula anticoncepcional foi tida como percussora da liberdade sexual, já que as mulheres poderiam utilizar dela como método contraceptivo, tornando o sexo como algo recreativo.
Mesmo com todas as conquistas alcançadas pelos movimentos feministas do século XX, é perceptível a desigualdade de direitos entre homens e mulheres, principalmente no exercício da sexualidade e da reprodução. Para corroborar o exposto, insta transcrever a lição de Emmerick:
Não obstantes as grandes conquistas do feminino no século XX, chegamos ao novo milênio com uma significativa e lamentável desigualdades de direitos entre homens e mulheres. Essa desigualdade torna-se ainda mais evidente e gritante quando o tema em questão refere-se ao exercício da sexualidade e reprodução. Grande parte do poder exercido sobre a mulher e as formas de controle social das mesmas ainda dá-se através do seu corpo, sua sexualidade e sua reprodução. Dito controle se manifesta através dos mais diferentes instrumentos de controle social no contexto das relações sociais, em que a criminalização do aborto exerce grande poder simbólico no controle social do feminino (EMMERICK, 2008, p.2).
A partir do momento em que se proíbe que a mulher escolha se quer manter ou interromper uma gravidez há a expressa violação aos direitos constitucionalizados, em especial ao direito da autonomia, da vida, da saúde, da liberdade sexual e o direito da mulher a autodeterminação sobre seu corpo, sendo que tal atitude é uma afronta direita aos direitos fundamentais explícitos na Carta Magna Brasileira.
Com a criminalização do aborto voluntário há também o óbice aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, sendo estes garantidos por documentos internacionais que foram reconhecidos pelo Estado Brasileiro.
No plano jurídico, a criminalização do aborto viola os chamados direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, amparados pela Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento do Cairo de 1994, bem como pelas Conferências de Copenhague de 1995 e de Pequim de 1995. A criminalização do aborto resulta, assim, como uma violação a direitos humanos internacionalmente protegidos, em particular nas esferas da sexualidade e reprodução (EMMERCIK, 2008, p.15).
Os direitos sexuais e reprodutivos são fundamentais para a concretização dos direitos humanos e estão protegidos por documentos internacionais, sendo que tal assertiva foi estabelecida na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada em Cairo no ano de 1994, e na IV Conferência Mundial da Mulher, realizada no ano de 1995 em Beijing na China.
É importante destacar que na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada em Cairo no ano de 1994, foi estabelecido um documento que representa o avanço na garantia dos direitos humanos das mulheres, sendo um divisor de águas no que diz respeito à saúde de homens e mulheres, aos direitos sexuais e direitos reprodutivos, tendo como um de seus princípios:
Princípio 4: O progresso na igualdade e equidade dos sexos, a emancipação da mulher, a eliminação de toda espécie de violência contra ela e a garantia de poder ela própria controlar sua fecundidade são pedras fundamentais de programas relacionados com população e desenvolvimento. Os direitos humanos da mulher e da menina são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. A plena e igual participação da mulher na vida civil, cultural, econômica, política e social, nos âmbitos nacional, regional e internacional, e a erradicação de todas as formas de discriminação com base no sexo são objetivos prioritários da comunidade internacional (CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE POPULAÇÃO E DESENVOLVIMENTO, 1994).
Outro avanço trazido nesta conferência foi o consenso internacional acerca da consagração do direito de mulheres e homens tomar decisões sobre reprodução, sendo e efetivado o direito à autodeterminação, à privacidade, à intimidade, à liberdade e à autonomia, sem que haja a interferência do Estado. Inclusive, o Brasil participou deste evento e se comprometeu, juntamente com os outros países participantes, a criar políticas públicas de diminuição das taxas de mortalidade decorrente de abortos clandestinos, os quais foram reconhecidos como um problema de saúde reprodutiva.
Mais um documento internacional que dá garantia aos direitos humanos das mulheres, mais especificadamente, o direito reprodutivo e sexual foi elaborado na IV Conferência Mundial da Mulher, realizada em de 1995 na cidade de Beijing, China, que ratificou o conceito de saúde reprodutiva do Plano de Ação de Cairo:
96. Os direitos humanos das mulheres incluem os seus direitos a ter controle sobre as questões relativas à sua sexualidade, inclusive sua saúde sexual e reprodutiva, e a decidir livremente a respeito dessas questões, livres de coerção, discriminação e violência. A igualdade entre mulheres e homens no tocante às relações sexuais e à reprodução, inclusive o pleno respeito à integridade da pessoa humana, exige o respeito mútuo, o consentimento e a responsabilidade comum pelo comportamento sexual e suas consequências (CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE POPULAÇÃO E DESENVOLVIMENTO, 1994.).
Com as Conferências de Cairo e Beijing, a comunidade internacional passou a reconhecer o aborto inseguro como um grande problema de saúde pública e recomendou aos governos que considerem a possibilidade de reformar as leis que estabelecem medidas punitivas contra as mulheres que tenham sido submetidas a abortos ilegais, bem como garantam às mulheres, em todos os casos, o acesso a serviços de qualidade para tratar de complicações derivadas destes procedimentos ilegais.
Além das conferências citadas acima, o Brasil também ratificou os principais tratados internacionais de direitos humanos, tais como: a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Convenção da Mulher, ONU, 1979) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, OEA, 1994).
Ademais, mesmo que não haja na Constituição Federal de 1988 um capítulo dedicado aos direitos sexuais e reprodutivos, é importante destacar que estes têm respaldo jurídico através da ratificação do Brasil em tratados e convenções.
O fato do sistema penal brasileiro, que urge por uma reforma, proibir que a mulher opte ou não por continuar uma gestão é um ato discriminatório e coercitivo, que vai contra todos os documentos assinados pelo Brasil. Esta restrição da liberdade feminina à sexualidade e à reprodução, especialmente no tocante ao aborto, evidencia o quanto é tolhido direitos fundamentais.
Ao se criminalizar o aborto voluntário tem-se uma afronta ao princípio da igualdade entre homens e mulheres e uma discriminação em razão de gênero, já que tal ato isenta a responsabilidade do homem em relação a gravidez indesejada e faz-se um controle indireto no quesito da sexualidade da mulher, confirmando, ainda, a presença de traços da família patriarcal.
Ao fim e a cabo, podemos chegar à conclusão de que criminalização sistemática do aborto é uma estratégia moral e legal de controle da sexualidade das mulheres, já que, inquestionavelmente, apenas elas podem engravidar nas relações sexuais. Ao se observar que em vários países, como no Brasil, o aborto é permitido no caso de estupro, conforma-se esse traço de controle. Na origem, tal exceção não tinha como objetivo precípuo proteger a integridade das mulheres, mas evitar o nascimento de uma criança cuja existência poderia ameaçar a “honra” e o patrimônio de seus pais, maridos e irmãos (DOMINGUES, 2008, p.95).
Reconhecer a da competência da mulher para decidir sobre sua sexualidade e reprodução tem fundamento nos direitos humanos constitucionais. Sobretudo no que tange ao respeito dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, ou seja, a mulher deve ter garantido a possibilidade de exercer a sexualidade livre da discriminação, coerção ou violência, bem como, ter assegurado o direito à concepção, à proteção da maternidade, à anticoncepção, e à interrupção de uma gravidez não desejada ou não planejada.
A descriminalização do aborto voluntário não deve ser tida como impedimento para a proteção do direito à vida e direitos do feto, todavia, tais direitos não podem eliminar ou inviabilizar os direitos assegurados as mulheres, principalmente os direitos humanos das mulheres.
Nesse contexto e dentro de um Estado Democrático de Direito, limitar a liberdade das mulheres, o direito de autodeterminação, acaba por violar todo e qualquer projeto de democracia.
[...] o que se pode verificar é que nem sempre uma postura de liberdade de escolha em relação à interrupção da gestação revela uma opção de respeito aos direitos humanos. Da mesma forma, a criminalização do aborto não implica salvaguarda do direito à vida. Mas fica evidente que o tratamento dado a liberdade das mulheres, no que se refere ao aborto, revela o modo como determinada sociedade concebe e organiza a própria democracia. (BUGLIONE E CAVALCANTE, 2008, p.16)
Em conclusão, a partir do momento em que a sociedade entender que a mulher tem o direito de decidir sobre manter ou interromper uma gestação, teremos a efetivação de todos os direitos humanos e fundamentais de forma igualitária, no que tange a este assunto.
4. Projetos de Lei e Entendimentos Jurisprudenciais
Em relação ao assunto abordado neste artigo, devemos destacar que o entendimento do Supremo Tribunal Federal vem sofrendo algumas modificações. Contudo, ainda existem diversas ações que estão com o julgamento pendente sobre a criminalização do aborto, a citar como exemplo a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 442, que pretende descriminalizar o aborto.
Denota-se das novas decisões judiciais que para a Suprema Corte, manter o entendimento que a prática de aborto é crime, haverá ofensa ao princípio da independência, vez que nega à mulher o direito de tomar uma decisão que é cunho estritamente pessoal.
Como exemplo, cabe aqui destacar algumas passagens de grande relevância de pronunciamentos judiciais que tratam da escolha da mulher em realizar um aborto ou não:
A criminalização viola, em primeiro lugar, a autonomia da mulher, que corresponde ao núcleo essencial da liberdade individual, protegida pela dignidade humana [...] a autonomia expressa a autodeterminação das pessoas, isto é, o direito de fazerem suas escolhas existenciais básicas e de tomarem as próprias decisões morais a propósito do rumo de sua vida [...] Quando se trate de uma mulher, um aspecto central de sua autonomia é o poder de controlar o próprio corpo e de tomar as decisões a ele relacionadas, inclusive a de cessar ou não uma gravidez. Como pode o Estado - isto é, um delegado de polícia, um promotor de justiça ou um juiz de direito - impor a uma mulher, nas semanas iniciais da gestação, que a leve a termo, como se tratasse de um útero a serviço da sociedade, e não de uma pessoa autônoma, no gozo de plena capacidade de ser, pensar e viver a própria vida? (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Relator Ministro Marco Aurélio. Brasília, DF, 12 de abril de 2012. Diário da Justiça Eletrônico, nº 80, 30 de abril de 2013)
Abaixo colaciona o ementário do Habeas Corpus nº 124.306, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, que afirma que o papel do Estado é permitir que as mulheres façam suas escolhas de forma autônoma, sem interferência de grupos religiosos ou por quem que seja:
[...] a reprovação moral do aborto por grupos religiosos ou por quem quer que seja é perfeitamente legítima. Todos têm o direito de se expressar e de defender dogmas, valores e convicções [...], no entanto, o papel adequado do Estado não é tomar partido e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam sua escolha de forma autônoma. (HC nº 124.306. Relator Ministro Marco Aurélio. Brasília, DF, 29 de novembro de 2016).
É clarividente que no Supremo Tribunal Federal, há a inicialização de um entendimento diferente do disposto em lei, percebe-se que o entendimento do STF é no sentido de que não haveria fundamento para a criminalização do aborto até o terceiro mês de gestação.
Há ainda no Brasil um movimento recente acerca do tema aborto, podendo ser citado como exemplo a Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, que busca a descriminalização do aborto. A ação foi ajuizada pelo Partido PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), alegando que os artigos 124 e 126 violam os princípios e direitos fundamentais da Constituição Federal. O partido alega que a criminalização do aborto demonstra o poder coercitivo do Estado, tornando a gravidez uma obrigação. Também destacam que a criminalização do aborto fere a dignidade da pessoa humana e a cidadania das mulheres. Nesse ponto, o partido assinalou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3510, que permitiu a pesquisa com células-tronco embrionárias, a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, citada acima, que permitiu a realização do aborto nos casos de feto anencefálico e o Habeas Corpus 124.306, que em 2016, afastou a prisão preventiva de réus acusados de praticar o aborto.
O partido requereu a concessão de medida liminar com o fim de suspender prisões em flagrante, inquéritos policiais e processos em andamento ou decisões judiciais com relação à aplicação dos artigos 124 e 126 do Código Penal caso o aborto fosse realizado nas primeiras 12 semanas de gestação. Com relação ao mérito, requereu a declaração de não recepção parcial dos dispositivos pela Constituição, excluindo do âmbito de sua incidência a interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 semanas.
Ao contrário da mudança de entendimento do STF e da Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442, existem alguns projetos de lei, em trâmite na Câmara dos Deputados que visam a inclusão do crime de aborto no rol de crimes hediondos e também a pena de reclusão nos casos de aborto eugênico, quando há comprovação de que o feto irá nascer com anomalias, sendo os projetos de Lei nº 4.703/1998 e 1.459 de 2003, respectivamente.
Há também o Projeto de Lei nº 478 de 2007, que prevê o Estatuto do Nascituro, trazendo direitos ao ser humano concebido, mas não nascido e o Projeto de Lei nº 1545/ 2011 que trata do crime de aborto, com o fim de recrudescer a pena ao médico que pratica o aborto fora das condições permitidas por lei, ou seja, aumentar a punição do médico que pratica o aborto em condições que não sejam de risco de vida da gestante, nem em casos de estupro ou de feto anencefálico.
Além mais, existe a Proposta de Emenda à Constituição 164/2012, que trata do direito à vida desde a concepção, sendo que nesta modalidade retiraria qualquer possibilidade de interrupção da gravidez. O Projeto de Lei nº 5069/2013, que tipifica o anúncio de meio abortivo como crime contra a vida e prevê penas específicas para quem induz a gestante à pratica do aborto.
É notório que a aprovação de quaisquer destes projetos de lei irão ser um retrocesso aos direitos das mulheres e uma afronta aos tratados ratificados pelo Brasil.
Por outro lado, há a Sugestão Legislativa nº 15/2014 que pretende a permissão do aborto dentro das doze primeiras semanas de gestação pelo Sistema Único de Saúde. No entanto, conforme consulta aos andamentos da Sugestão nº 15/2014 no site do Senado Federal, esta consta como em tramitação encerrada, sendo remetida ao arquivo em razão do fim da legislatura da época, o que ocorreu em 18/12/2018.
Devemos levar em consideração que há uma dualidade entre os defensores da descriminalização do aborto e os que são contrários a tal fato, todavia, o que deve prosperar é a manutenção dos direitos adquiridos pelas mulheres, visto que são elas que passarão por todos os problemas advindos de uma gestação não desejada.
Com o fito de concluir este trabalho, é de todo oportuno trazer alguns entendimentos jurisprudenciais do judiciário brasileiro:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. REMESSA NECESSÁRIA. CONCESSÃO DE HABEAS CORPUS. ART. 574, I, CPP. REQUERIMENTO DE SALVO-CONDUTO PARA INTERRUPÇÃO DE GRAVIDEZ. POSSIBILIDADE. ART. 128, I, CP. REMESSA CONHECIDA E DESPROVIDA. 1. Remessa necessária, com fulcro no art. 574, I, do Código de Processo Penal, em face da decisão que concedeu ordem de Habeas Corpus preventivo (pp. 44/50), para assegurar à paciente "o direito de tomar, caso essa seja a sua vontade, a decisão de assistida por médico (s), interromper a gravidez, desde que isso ainda seja viável do ponto de vista médico". (pp. 50). 2. Na hipótese, entende-se que a remessa necessária não merece provimento, pois observa-se nos autos, pela documentação médica apresentada que a manutenção da gravidez era inviável, implicando em sérios riscos à saúde e à vida da paciente. Ficou demonstrado também, pelos pareceres médicos especializados, que as chances de desenvolvimento de vida extrauterina dos fetos era improvável. 3. Assim, verifica-se que a paciente possuía interesse real em salvaguardar direito específico de realização de interrupção de gravidez com base no art. 128, inciso I do Código Penal 4. Remessa Necessária conhecida e desprovida. ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos os presentes autos de Remessa Necessária, ACORDAM os Desembargadores da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, à unanimidade, em CONHECER da Remessa Necessária, para NEGAR-LHE provimento, nos termos do voto da Relatora. Fortaleza, 20 de julho de 2021. MÁRIO PARENTE TEÓFILO NETO Presidente do Órgão Julgador DESEMBARGADORA MARIA EDNA MARTINS Relatora (TJ-CE - Remessa Necessária Criminal: 01352899320198060001 CE 0135289-93.2019.8.06.0001, Relator: MARIA EDNA MARTINS, Data de Julgamento: 20/07/2021, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 20/07/2021) (Grifei)
HABEAS CORPUS. Pedido de interrupção de gravidez. Nascituro portador de grave anomalia - "Síndrome de Edwards". Laudo médico que atesta anomalia do tipo letal (...) é uma emergência obstétrica grave, associando-se a sangramento excessivo (hemorragia puerperal) e colocando em risco a vida materna. Risco concreto à vida da gestante. Atendimento aos princípios da dignidade da pessoa humana, em sua perspectiva da liberdade, intimidade e autonomia privada da mulher, e do direito à saúde. Precedentes. ORDEM CONCEDIDA, COM DETERMINAÇÃO. (TJ-SP - HC: 21369447720208260000 SP 2136944-77.2020.8.26.0000, Relator: Camargo Aranha Filho, Data de Julgamento: 18/08/2020, 16ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 18/08/2020) (Grifei)
Habeas Corpus – Aborto provocado pela gestante – Atipicidade por alegada não recepção do tipo penal do art. 124 do CP pela CF/88 – Princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88) que não se sobrepõe ao direito à vida (art. 5º, caput, da CF/88) Não se concebe a alegação de atipicidade da prática de auto aborto, sob o fundamento de que o tipo previsto no art.1244 doCPP não teria sido recepcionado pela atual ordem constitucional, que possuiria como fundamento, entre outros, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), do qual decorreriam a autodeterminação corporal como forma de exercício de autonomia individual de vontade da mulher e o seu poder de escolha acerca da maternidade, com direito potestativo ao aborto; a pretensão não se justifica igualmente sob o argumento de que a Constituição assegura aos cidadãos a inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X, da CF/88), o planejamento familiar e intervenção estatal mínima (art. 226, § 7º, da CF/88), e a laicidade do Estado brasileiro (art. 5º, VI, da CF/88). Referidos direitos da mulher, conquanto realmente previstos no texto constitucional, efetivamente não se sobrepõem ao direito fundamental à vida do feto, que possui igualmente amparo constitucional (art. 5º, caput, da CF/88). Não se cuida tampouco de violação à laicidade do Estado brasileiro (art. 5º, VI, da CF/88), mas sim de conflito aparente entre direitos fundamentais: de um lado, o direito à vida do feto e, de outro, a dignidade da pessoa humana da gestante, devendo, pelo critério do sopesamento ou da ponderação, prevalecer o primeiro, em detrimento dos direitos da gestante acima referidos. Pondere-se que o Pleno do Col. Supremo Tribunal Federal, ao manifestar-se, em 2012, sobre pedido de declaração de inconstitucionalidade dos arts. 124, 126 e 128, I e II, todos do CP (ADPF n. 54), realmente julgou procedente ação de descumprimento de preceito fundamental, mas apenas para declarar a inconstitucionalidade da interpretação, segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta que se subsumiria aos tipos penais supramencionados. O Pretório Excelso valeu-se, nesse caso, de técnica de decisão pela qual se declara inconstitucionalidade sem que haja pronúncia de nulidade, permitindo-se concluir que, excetuados os casos legais (art. 128, incisos I e II, do CP) e, doravante, também o da gravidez de feto anencéfalo (ADPF nº 54/DF), permanece típica a conduta da gestante de provocar em si mesma o aborto, prevista no art. 124 do CP. É certo que há decisão posterior, datada de 2016, que, conferindo interpretação conforme a Constituição aos mesmos arts. 124 a 126 do CP, excluiu de seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. Cuida-se, contudo, de habeas corpus concedido de ofício pela 1ª Turma da Corte Suprema, cujo efeito foi meramente incidental, não tendo se dado erga omnes, mesmo porque inexiste notícia de que tenha o Senado Federal, logo após, suspendido a execução, no todo ou em parte, do tipo penal em questão. Habeas Corpus – Aborto provocado pela gestante – Ausência de elementos probatórios mínimos – Análise que exige apreciação aprofundada do mérito do conjunto probatório – Descabimento de discussão em sede de Habeas Corpus A atipicidade da conduta pode lastrar eventual concessão da ordem de Habeas corpus apenas na hipótese de ser manifesta, uma vez que o remédio heroico não se presta ao exame detalhado de questões atinentes ao mérito da demanda, atividade que deve ser reservada ao julgamento da ação penal pela autoridade coatora. (TJ-SP 21889064720178260000 SP 2188906-47.2017.8.26.0000, Relator: Grassi Neto, Data de Julgamento: 14/12/2017, 8ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 19/12/2017) (Grifei)
Direito processual penal. Habeas corpus. Prisão preventiva. Ausência dos requisitos para sua decretação. inconstitucionalidade da incidência do tipo penal do aborto no caso de interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre. Ordem concedida de ofício. 1. O habeas corpus não é cabível na hipótese. Todavia, é o caso de concessão da ordem de ofício, para o fim de desconstituir a prisão preventiva, com base em duas ordens de fundamentos. 2. Em primeiro lugar, não estão presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar, a saber: risco para a ordem pública, a ordem econômica, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal (CPP, art. 312). Os acusados são primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação. 3. Em segundo lugar, é preciso conferir interpretação conforme a Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal que tipificam o crime de aborto para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. 4. A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais; a integridade física e psíquica da gestante, que é quem sofre, no seu corpo e no seu psiquismo, os efeitos da gravidez; e a igualdade da mulher, já que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria. 5. A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os casos de automutilação, lesões graves e óbitos. 6. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas impedindo que sejam feitos de modo seguro; (ii) é possível que o Estado evite a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas; (iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios. 7. Anote-se, por derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha, Portugal, Holanda e Austrália. 8. Deferimento da ordem de ofício, para afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-se a decisão aos corréus. (STF - HC: 124306 RJ - RIO DE JANEIRO 9998493-51.2014.1.00.0000, Relator: Min. MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 09/08/2016, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-052 17-03-2017) (Grifei)
É mister salientar a latente mudança jurisdicional em relação a descriminalização do aborto, uma vez que pelas ementas trazidas denota-se que os magistrados têm levado em consideração a conservação dos direitos das mulheres e sua associação ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Foi feita uma busca no site do Tribunal de Justiça de Goiás e não foi encontra nenhuma ementa que seja favorável a descriminalização do aborto, o que nos leva a crer que, infelizmente, ainda há um pensamento arcaico dos magistrados acerca do assunto.
Finalmente, ao trazer este tema em discussão não se deve observar questões éticas, morais ou religiosas, mais sim, ter-se a consciência de que além de ser um direito da mulher é, também, questão de saúde pública que deve ser rebatida por jurista e sociedade, com o fito de alcançar um avanço no Estado Democrático Brasileiro.
5. Considerações Finais
Este trabalho abordou a questão da descriminalização do aborto no Brasil, uma vez que ao criminaliza-lo é colocado em risco diversos direitos que são assegurados as mulheres, que deveriam ter o direito de escolher ou não manter uma gravidez indesejada. Ao criminalizar o aborto é concedido a intervenção do patriarcalismo na estrutura do Estado Democrático de Direito.
A partir do momento que se criminaliza o aborto, o Judiciário e a sociedade viram as costas para quase um milhão de abortos ilegais que são feitos no Brasil, dos quais, aproximadamente, 200 mil levam a internações por conta dos procedimentos mal feitos. Ressalta-se que grande parte das mulheres que praticam abortos são pobres, pretas, faveladas, mães solos, que não tem o apoio do genitor e tampouco da família.
Não mudar a legislação brasileira é ir contra todos os princípios garantidos na Constituição Federal de 1988 e também tirar a responsabilidade dos homens em casos de estupro e gravidez indesejadas, principalmente pelo fato de que a saúde pública no país não consegue atender a todos que precisam dela.
A criminalização do aborto é legislar de forma injusta, já que delimita o direito de uma mulher decidir o que fará do seu corpo, deixando que juízes decidam por elas.
É importante destacar que fazer um aborto não é uma decisão fácil ou leviana, a mulher que chegou a esta decisão pensou bem em todas as consequências desta gravidez, não queremos também usar o aborto como método contraceptivo, mas é notório que estes falham.
Condenar uma mulher que decidiu interromper uma gravidez é uma injustiça, visto que ninguém conhece a condição ou os sentimentos que a levaram a este ato.
A legalização do aborto não significa que todas as mulheres irão abortar ou sejam a favor dele, apenas dará legitimidade aos direitos fundamentais das mulheres, principalmente ao direito de decidir, sem terem que se sujeitar a procedimentos clandestinos e duvidosos, que marcam não somente o corpo, mas o consciente também.
Por fim, o presente trabalho teve como escopo demonstrar que a criminalização do aborto é um crime contra a mulher.
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